Revista Exame

Empresas travam nova batalha do leite

A disputa põe frente a frente a família Benedictis, dona da marca Shefa, e um dos mais agressivos, e misteriosos, investidores do país: Francisco Silveira.

Leite Shefa: a transferência de controle da empresa levou a processo na Justiça | alexandre battibugli /  (Alexandre Battibugli/Exame Hoje)

Leite Shefa: a transferência de controle da empresa levou a processo na Justiça | alexandre battibugli / (Alexandre Battibugli/Exame Hoje)

NB

Naiara Bertão

Publicado em 20 de outubro de 2017 às 09h50.

Última atualização em 20 de outubro de 2017 às 13h04.

O mercado brasileiro de leite é pródigo em histórias de falências, quebradeiras, disputas societárias, processos judiciais. A mais nova batalha coloca frente a frente uma das famílias mais tradicionais do setor, a Benedictis, dona da marca Shefa, e a gestora de investimento Kobold, de um lado, e o investidor Francisco Benedito da Silveira Filho, dono da empresa de crédito BS Factoring, de outro.

Desde fevereiro, corre na Justiça de Amparo, cidade a 140 quilômetros de São Paulo e sede da Shefa, um processo iniciado pela Kobold que questiona a intromissão da BS Factoring nos negócios do laticínio, atualmente em recuperação judicial. O processo traz à tona um dos investidores mais agressivos, e misteriosos, do setor: Francisco Silveira.

Fundada em 1976 pela família Benedictis, de Amparo, a Agropecuária Tuiuti S.A., conhecida pela marca Shefa, começou a ter dificuldade financeira em 2012, quando os bancos diminuíram as linhas de crédito para o setor de leite e aumentaram os juros. Sem dinheiro para pagar fornecedores e funcionários, a empresa reduziu a produção e, consequentemente, as receitas caíram de 550 milhões de reais, em 2014, para menos da metade, em 2016 — e as dívidas bateram um recorde de 220 milhões de reais.

Sem muita saída, a Shefa colocou os ativos à venda. A suíça Emmi se interessou pelo negócio. Mas, durante as negociações, a Shefa foi ficando sem dinheiro. Se as operações parassem, a empresa perderia muito valor, o que forçou seus controladores a buscar alternativas a toque de caixa. Foi quando Eduardo Benedictis, um dos três irmãos à frente dos negócios, aceitou se encontrar com Francisco Silveira, aconselhado por Ernani Ponce, da consultoria Magma, que prestava serviços de auditoria à Shefa e auxiliava no processo de venda. A combinação de uma marca forte com um negócio com água no pescoço era ideal para o investidor, conhecido por seu apetite para o risco.

Mas a ajuda tinha um preço alto. A BS Factoring se dispôs a antecipar recebíveis do laticínio, mas pediu como garantia a marca Shefa, já que os outros bens da empresa tinham sido dados como garantia para bancos credores. No dia 25 de março de 2015, a BS assinou um contrato de prestação de serviços com a Shefa e liberou um crédito de 20 milhões de reais (o passivo depois bateria em 82 milhões de reais). Era o suficiente para a empresa manter as atividades enquanto a venda para os suíços estivesse avançando.

O problema foi que a venda nunca saiu. E a Shefa não teve outro jeito senão pedir recuperação judicial em fevereiro deste ano. A marca, uma das mais tradicionais em supermercados da Região Sudeste, como combinado, passou para a BS Factoring. De lá para cá, Tuiuti, Kobold e a família Benedictis são partes em uma batalha judicial com o investidor que chegara para salvar o negócio.

 

O maior ponto de discórdia é o controle da companhia. Em depoimento à Justiça a que EXAME teve acesso, os fundadores da Tuiuti afirmam que, vendo que a situa­ção da empresa se agravava, Silveira ofertou mais crédito e propôs um novo acordo à família. A BS compraria o negócio e assumiria as dívidas. Sem alternativa, a família, segundo relatado à Justiça, aceitou as condições e transferiu o controle da Tuiuti em maio de 2016. A Kobold, contratada pelos Benedictis, alega no processo que quem assumiu o negócio não foi a BS, mas, sim, supostos funcionários e conhecidos de Silveira: João Edson Sorio e João Sidnei Silveira Leite, ambos moradores de Itu, mesma cidade de Silveira.

De acordo com a Kobold, os novos proprietários reconheceram uma dívida de 47 milhões de reais com a BS pouco antes do pedido de recuperação judicial, mas suspeitam que o valor supostamente nunca teria entrado no caixa da empresa. Ou seja, acusam Silveira de fabricar dívidas para ganhar mais dinheiro em cima da companhia e de pôr em marcha uma estratégia para assumir seu comando — e minimizar o prejuízo com a recuperação. EXAME apurou que Silveira conduziu pessoalmente reuniões com fornecedores e credores, identificando-se como o novo dono da Tuiuti.

Procurado por EXAME, o investidor não deu entrevista. Gilmar Donizete Menighini, advogado de Silveira e responsável legal pela BS Factoring, afirma que a empresa atua exclusivamente como credora no processo de recuperação judicial da Tuiuti. Nega, portanto, que Silveira ou qualquer pessoa ligada a ele tenha assumido o controle da companhia. No processo, Menighini refuta todas as acusações. Roberto Adabo, executivo que assumiu a Tuiuti após a troca do controle, disse a EXAME que Silveira não é dono do laticínio. O advogado da família Benedictis, Fernando Zilveti, e a Kobold não quiseram comentar.

La Macca: o restaurante italiano em São Paulo é um dos negócios de Silveira | CLAYTON VEIRA

No processo, a Kobold relembra outros processos da BS e de seu fundador, argumentando que disputas e transferências de controle contestadas fazem parte de seu histórico. Roberto Adabo, assim como João Leite, trabalharam também na Líder Alimentos (Leite é, inclusive, um dos sócios). A Líder foi um dos três ativos que a produtora de leite LBR vendeu, durante seu processo de recuperação judicial, em 2014, à ARC Medical Logística, empresa de Raquel e Renata da Silveira Fontoura, sobrinhas de Silveira.

Na ocasião, Silveira afirmou que não tinha vínculo com a ARC. A BS era uma das principais credoras da LBR, com passivos de aproximadamente 150 milhões de reais. Em 2016, os antigos donos da empresa capixaba de transportes Patagônia questionaram a transferência do controle do negócio, feito em 2011, antes do pedido de recuperação judicial, para Diego da Silveira Pavanelli, também sobrinho de Silveira, como pagamento pelo valor devido à BS. Em 2015, a indústria de produtos de higiene Cria Sim, de Diadema, na região metropolitana de São Paulo, acusou a BS de não dar baixa em dívidas já pagas, com o objetivo de assumir o comando da companhia.

Em seus 23 anos no mercado, a BS Factoring já assinou dezenas de contratos com empresas em dificuldade nos mais diversos setores, como produtos de limpeza, carnes e óleo de soja. Mas o segmento de lácteos é um de seus preferidos. “É um setor em que não há espaço para erro. As margens são apertadas e a necessidade de caixa é alta”, diz Maurício Nogueira, coordenador da consultoria de agronegócio Agroconsult.

Silveira é conhecido por ter mantido durante anos uma linha de crédito com a Parmalat e, posteriormente, com a LBR. Além da BS, ele é sócio direto em outras sete factorings. Aos 57 anos, mora com a família em Itu, onde também tem participação em companhias de transporte turístico, indústria de polpa de suco, corretora de seguros e gestoras de propriedades imobiliárias. Na capital paulista, é um dos investidores, junto com o filho, no restaurante La Macca, localizado na Rua Haddock Lobo, nos Jardins. Chegou a trabalhar durante alguns anos em bancos, mas foi a BS Factoring Fomento Comercial, fundada em abril de 1994, que lhe deu projeção no mercado financeiro. Sua especialidade? Emprestar a quem ninguém mais quer dar crédito. “Ele tem um bom faro para encontrar quem tem potencial, mas está na pior”, afirma um consultor do mercado de reestruturação que já assessorou dezenas de empresas.

O grande apetite para o risco e a disposição de fechar contratos vultosos, muitas vezes sem toda a documentação pedida por outros possíveis credores, renderam-lhe no mercado o apelido de “Chico Louco”. Em geral, fundos de fomento não gostam de dar mais de 50 milhões de reais em crédito para um mesmo cliente. Silveira aposta mais alto (muitas vezes acima de 100 milhões) e gosta de concentrar suas fichas. “Quando ele acredita em um negócio, vai até o último centavo”, diz um advogado especialista em reestruturação de dívidas.

Para assumir tamanho risco, cobra caro. Seus serviços podem custar até o dobro de outras factorings, em torno de 3% do valor total do crédito. Mas é quando a empresa não paga que Silveira se destaca, segundo EXAME apurou. Ele não recua na hora de pedir garantias em caso de calote, como carros de luxo, imóveis, fazendas e fábricas. E não se intimida com processos complexos e longos.

A ação de Kobold contra a BS Factoring e Silveira ainda corre na Justiça. Caso se verifique que Silveira de fato assumiu o controle da Tuiuti e que os créditos da BS são forjados, como alega a Kobold, ele poderá ser denunciado por crimes falimentares, especialmente por fraude contra os credores no processo de recuperação judicial e numa eventual falência. Além de perder o direito de exercer atividade empresarial, se condenado por crimes falimentares, Silveira pode até ser preso. Enquanto o processo não se desenrola, a Tuiuti segue produzindo laticínios e sucos com a marca Shefa.

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