Revista Exame

Churchill e políticos brasileiros são do mesmo planeta?

Num tempo em que princípios e integridade são conceitos em extinção no meio político, é hora de lembrar do legado do ex-primeiro-ministro britânico Winston Churchill


	 

	Winston Churchill durante a segunda guerra mundial: a célebre frase “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor” está na nota de 5 libras que circulará a partir de 2016
 (Morris (Sgt), No 5 Army Film & Photographic Unit/Wikimedia Commons)

  Winston Churchill durante a segunda guerra mundial: a célebre frase “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor” está na nota de 5 libras que circulará a partir de 2016 (Morris (Sgt), No 5 Army Film & Photographic Unit/Wikimedia Commons)

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Da Redação

Publicado em 31 de maio de 2013 às 14h27.

São Paulo - Foram apenas quatro palavras ditas em inglês, há mais de 70 anos, na Câmara dos Comuns do Parlamento britânico; desde então, fazem parte da linguagem mundial da decência do ser humano.

São palavras que não vão morrer nunca. Elas resumem, com perfeição, até aonde pode chegar a coragem pessoal de um líder político, sua recusa em agir contra as próprias convicções e uma determinação absoluta para jogar tudo, mas tudo mesmo, na defesa de um valor moral.

“We shall never surrender”, disse o primeiro-ministro Winston Churchill em 4 de junho de 1940, menos de um mês depois de assumir o cargo — 10 de maio, justamente o dia em que a Alemanha de Adolf Hitler tinha invadido, e rapidamente derrotado, a França, completando na prática a ocupação militar da Europa inteira.

A Inglaterra, nesse momento, estava totalmente isolada. Não tinha nenhum aliado; os Estados Unidos só entrariam na guerra 18 meses depois. Seus recursos militares eram imensamente inferiores aos da Alemanha. Os poucos países não ocupados da Europa, como Espanha, Portugal ou Suécia, eram amigos íntimos dos nazistas.

A Inglaterra não tinha meios eficazes de se defender e muito menos de atacar. Um “entendimento” com Hitler, “costurado” por alguma grande obra de “engenharia política”, estava na mente e na boca dos profissionais — isso que se chama no Brasil de “gente do ramo”. Foi essa a hora que Churchill escolheu para informar à Alemanha e ao mundo: “Nós não vamos nos render nunca”.

Não era um discurso. Não era um anúncio de obras do PAC nem do Brasil Carinhoso. Não era palavrório demagógico, irado e grosseiro contra as elites. Não era um truque de oratória nem uma frase escrita por seu diretor de relações públicas. Não era uma ameaça.

Era apenas o aviso de um fato concreto: a Inglaterra, pura e simplesmente, não iria se render. No caso, o que Churchill acabara de fazer era assumir um compromisso, e o aval de que ele seria 100% cumprido estava nos motivos reais que o levaram a assumi-lo — as noções de “valor” ou “princípio”.


Quando uma e outra existem de verdade num pronunciamento público, é bom levar a sério o que está sendo dito — os atos prometidos ali vão realmente acontecer, pois são o resultado de uma decisão que não vai mudar.

Dava para suspeitar que Churchill, na hora mais dramática de seu país, tinha optado sem a menor hesitação por colocar valores acima de habilidades ou conveniências políticas. Três dias depois de assumir seu cargo, logo no primeiro discurso que fez, já começou com tudo: “Não tenho nada a oferecer senão sangue, trabalho, lágrimas e suor” (trecho normalmente citado como “sangue, suor e lágrimas”).

Quem tem a coragem de começar um governo dizendo uma coisa dessas? Não, com certeza, esses pigmeus que passam hoje por “líderes” dotados de superior “faro político” ou outra bobagem qualquer saída do mesmo angu.

Os alemães não acreditaram no discurso de Churchill. Cinco anos depois, seu país estava reduzido a ruínas. É no que acabou dando essa história de tomar uma decisão motivada por valores.

“Ora (direis), ouvir Churchill! E em pleno ano de 2013? Certo perdeste o senso”, poderia dizer Olavo Bilac se ainda estivesse vivo e calhasse de ler este artigo. Mas, da mesma forma que em seu poema faz todo o sentido ouvir estrelas, também é perfeitamente lógico pensar em 2013 o que Churchill falou em 1940.

Desde que foram ditas nos Comuns, suas palavras jamais deixaram de ser atuais, e continuarão assim para sempre; fazem parte do patrimônio universal da humanidade, como as pirâmides do Egito ou o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo.


Há momentos, porém, que parecem pedir mais do que em quaisquer outros a presença de valores na vida política. Quanto a isso vivemos, hoje, o “nada absoluto” de que nos falam os metafísicos. Qual seria, por exemplo, o grande princípio filosófico ou moral de Barack Obama, presidente do maior país do mundo?

Quem é capaz de citar uma única convicção verdadeira de Angela Merkel, regularmente citada como a mais firme “liderança” da Europa? Existiria algum remoto vestígio da noção de valor nas ações do presidente Vladimir Putin? Não vale, aí, ficar falando de planos de assistência médica ou apoio ao casamento gay, de firmeza no combate à inflação ou valentia no rigor fiscal.

A questão é saber, nessa gente toda, quem estaria disposto a arriscar a própria vida na defesa de uma convicção moral, na recusa em aceitar o mal no lugar do bem ou na intransigência total em favor da integridade e contra a safadeza.

É isso, apenas — é o que Churchill fez e o que qualquer pessoa pode fazer, na guerra ou na paz, se colocar os valores da decência comum como mandamento número 1 de seus atos.

Se o mundo em geral está assim, imagine onde fomos amarrar nosso burro aqui no Brasil. Num artigo recente em sua coluna quinzenal na revista VEJA, o jornalista Roberto Pompeu de Toledo descreveu o universo político brasileiro como um deserto sem fim, onde é impossível a existência de qualquer forma de vida — ou, melhor dizendo, qualquer forma de vida pública capaz de ter um mínimo de utilidade para o país e para sua população.

O ovo da serpente é que não existe política no Brasil, mas, sim, um “conceito de política”, peculiar à nossa terra e à nossa gente; esse “conceito”, escreve Pompeu, nega a possibilidade de uma vida pública em que os embates envolvam a diferença de ideias, programas ou modelos propostos para a gerência da educação, dos transportes ou seja lá o que for. Tudo, absolutamente tudo, é feito na exclusiva defesa de interesses particulares.

Valores? Princípios? Integridade? Separar o certo do errado? Abolir os acordos indecentes para obter apoio? Tomar alguma decisão, uma apenas, motivada pela obediência a um mandamento moral?


O “conceito de política” no Brasil não apenas ignora essas coisas mas tem certeza de que todas elas são estupidez em estado puro. A presidente da República pensa e age assim; e, abaixo dela, todos vão exatamente pela mesma trilha.

Há exceções, é claro — sempre há. Mas o que comanda de fato a vida pública brasileira é o tráfico de emendas parlamentares, a compra e venda de cargos no governo e em estatais, a criação de ministérios absurdos para atrair o apoio dos que vão recebê-los, o comércio de minutos de propaganda obrigatória na TV, a submissão sem limites aos “índices de popularidade” e assim por diante.

Fábrica de ministérios

Como é possível, por exemplo, a presidente Dilma Rousseff nomear para o Ministério da Agricultura, em sua última “reforma ministerial”, um político ligado a um sinistro matadouro clandestino em Minas Gerais? Justo para o Ministério da Agricultura? Não haveria nenhum outro disponível para ele e seu partido?

E não haveria, em 190 milhões de brasileiros, nenhum cidadão um pouquinho mais adequado para ser o ministro da Agricultura do Brasil? Se fosse um caso isolado, ainda daria para engolir. Infelizmente, como mostra a experiência, não há casos isolados nesse tipo de decisão — muito menos depois de dez anos seguidos de aplicação do “conceito de política” hoje em vigor no país.

A presidente criou, para contratar aliados, e só para isso, um Ministério da Micro e Pequena Empresa. Será que estaria pensando em criar, mais adiante, um Ministério da Média Empresa ou mesmo um Ministério da Grande Empresa? Criou um Ministério da Aviação Civil. E por que não um da Marinha Civil?

Marinheiro também é filho de Deus — e, de mais a mais, já existe um Ministério da Pesca, cujo ministro confessa que não sabe colocar um anzol na linha. O interesse do país, em todas essas decisões, é zero. Só importa quem vai ganhar o quê e qual o potencial de aproveitamento material dos cargos criados.


O resultado, ao mesmo tempo, é aquele sugerido pela aritmética elementar. Quanto mais ministérios — e mais cargos —, tanto mais vai se roubar. Dilma sabe disso melhor do que ninguém.

Já teve de colocar no olho da rua, por exposição indecente em público, uma dúzia de ministros e talvez centenas de delinquentes que instalou na máquina pública, inclusive seu braço direito, secretária executiva e sucessora na Casa Civil, a inesquecível Erenice Guerra. É claro, portanto, que sabe — só que não liga.

Troca os que não dá para segurar por farinha do mesmo saco, que só serve para assar um tipo de pão. A consequência é o que está aí — um governo aberto ao primeiro batedor de carteira que se apresentar como reforço para a “base aliada”.

O buraco até que não seria tão fundo se o “conceito de política” praticado pela presidente, pelo copresidente Lula e por seus fiéis fosse o único problema. Mas não é. Onde acaba essa tropa toda começa o resto do mundo político brasileiro — a oposição e os que, pelo menos, não têm emprego doado pela gente que manda.

De novo: alguém conseguiria mencionar um, apenas um, pensamento legítimo do governador Eduar­do Campos, declarado pelos meios de comunicação como o “novo fator” da vida pública nacional?

E o senador Aécio Neves, então, escalado para a posição de número 1 dos opositores — no que ele realmente acredita ou no que se compromete de verdade, além de sua briga com o colega de partido e ex-governador José Serra? E os que foram tocados para fora do PT por se recusarem a roubar ou aceitar cambalachos políticos — o que mais têm em comum? Não se sabe.

A impressão é que os parti­cipantes da vida política brasileira e Churchill vieram de planetas diferentes. Mas é só impressão: vieram do mesmo, e o que os separa de forma tão espe­tacular é algo que costumava se chamar, em português comum, “vergonha na cara”.


Trata-se de uma opção de vida. É adotada por pessoas capazes de sentir indignação moral diante de atos repulsi­vos para a própria consciência. É sacrifi­car as circunstâncias do momento, sempre, em favor de suas convicções reais. É a intransigência contra qualquer ação que seus valores não aceitem.

É a recusa em aprovar entendimentos, acordos ou situações em que haja injustiça indiscutível. É, em suma, nunca ser surdo para a voz da consciência nem cego para as consequências de seus atos.

Na política, enfim, significa a capacidade de ver que os governos só fazem sentido se prestarem serviços aos governados, colocarem-se sinceramente como servidores do público e agirem o tempo todo para sustentar direitos legítimos e impedir a vitória da injustiça.

Certezas morais 

Não existe rigorosamente nada, aí, que só um homem como Churchill pudesse fazer ou que só a sua época permitisse fazer — é uma postura aberta a qualquer um, em qualquer tempo. Na verdade, Churchill não era um tipo de político excepcional, privativo das zonas temperadas e pertencente a uma espécie que não sobrevive nos trópicos.

Só chegou ao cargo de primeiro-ministro aos 66 anos de idade. Viveu, antes disso, no entra e sai do governo, como dezenas de outros na Inglaterra de sua época, e chegou a ser demitido de um posto ministerial sob a acusação de incompetência.

Tinha problemas sérios com o al­coolismo, uma vida pessoal conturbada e um notável talento para construir inimizades. Seu triunfo foi o conjunto de certezas sobre o que pensava e o que devia fazer.

Não se trata, por exemplo, de certezas como as do ex-presidente Lula — que acredita ser um equivalente de Abraham Lincoln por causa da quantidade de críticas que recebe na imprensa — ou as da presidente Dilma, para quem a queda de raios não tem nada a ver com as quedas de energia elétrica. Trata-se de certezas morais.


No caso de Churchill, ele tinha certeza de que jamais, em caso algum, aceitaria que seu país fosse ocupado por tropa estrangeira, que os ingleses tivessem de aprender alemão ou que a Gestapo tomasse prédios nas cidades inglesas para instalar neles seus centros de interrogatório e tortura.

Simplesmente não poderia admitir, como afirmou em seu discurso, a presença do “odioso regime nazista” na Inglaterra. Estava falando de valores, que não poderiam ser mudados ou negociados — e é disso, precisamente, que vem a fé extraordinária que demonstrou nas próprias palavras.

“Nós lutaremos na França, nós lutaremos nos mares e oceanos, nós defenderemos nossa ilha, custe o que custar”, disse ele, nas frases que antecederam as suas quatro palavras imortais. “Nós vamos lutar nas praias, nos pontos de desembarque, nos campos e nas ruas; nós lutaremos nas colinas. We shall never surrender”.

Ditas essas palavras, Churchill não fugiu; não foi se exilar no Canadá ou na Austrália. Ficou em Londres, no seu posto, e correu o mesmo risco de morrer nos selvagens bombardeios nazistas contra as cidades inglesas que corriam todos os cidadãos de seu país.

Não quis discutir pontos de doutrina jurídica com os pares, na época, do ministro Marco Aurélio de Mello. Não queria saber se o Ibope ia aumentar ou baixar seus índices de popularidade.

Nunca pensou nas próximas eleições. Apenas considerou, como a primeira-minista Margaret Thatcher faria 42 anos depois na invasão das Malvinas pela Argentina, que a guerra declarada pela Alemanha era algo errado. Se era errado, não podia ser aceito. Se não podia ser aceito, tinha de ser combatido. O que impede, hoje, os homens públicos brasileiros de pensar assim? Nada.

Por que não se comportam como homens que têm valores? Porque não querem. A presidente da República e toda a classe política do Brasil não precisam procurar valores em figuras históricas, ou em outras eras, ou em outros continentes. Têm à sua volta dezenas de milhões de brasileiros que passam a vida inteira sem tirar para si um único centavo que não seja honestamente seu.

Recusam-se a viver na criminalidade; preferem trabalhar duro a cada dia, por salários em geral modestíssimos, a desrespeitar a lei. Sustentam, com esforços muitas vezes heroicos, sua família. Vivem em silêncio. São exemplos perfeitos dos valores e princípios que matam de rir todos os devotos do “conceito de política” que comanda o Brasil de hoje.

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