Revista Exame

A IA muda o jogo climático?

Avanços na inteligência artificial podem oferecer soluções à crise ambiental, mas dependem da humanidade

Protesto em Amsterdã, no último dia 22 de novembro: exigência para que o governo tome medidas para enfrentar a crise climática (SOPA Images/Getty Images)

Protesto em Amsterdã, no último dia 22 de novembro: exigência para que o governo tome medidas para enfrentar a crise climática (SOPA Images/Getty Images)

Publicado em 12 de dezembro de 2023 às 06h00.

Última atualização em 18 de dezembro de 2023 às 10h58.

O Political Science Quarterly apresenta regularmente previsões de pensadores influentes e comentaristas que se posicionam de forma única sobre um tópico de preocupação global. Após o lançamento público de novos e poderosos modelos de IA generativa no fim do ano passado, houve uma onda de prognósticos sobre o potencial da tecnologia de transformar setores econômicos inteiros, pesquisa científica, educação, planejamento de políticas públicas e muito mais. Com esse debate mais amplo em mente, pedimos aos colaboradores que respondessem à seguinte pergunta:

A IA será um divisor de águas para alcançar as metas globais do acordo climático de Paris. Concorda ou discorda?

Nicholas Agar

Se entendermos a inteligência artificial como um amplificador humano, não devemos esperar que ela corrija as mudanças climáticas num passe de mágica. Embora ela possa melhorar de modo significativo a modelagem climática e ajudar a encontrar novas soluções, também se pode esperar que ela ofereça muito mais do status quo atual. Que cara isso pode ter? Uma dica vem do livro de 2019 do jornalista Christopher Leonard, Kochland, que descreve como as indústrias Koch lucraram ao atrasar o desmantelamento de antigas usinas de energia por meio de uma combinação de lobby e negação das mudanças climáticas.

A IA não é uma panaceia de política econômica. Ela não pode, por si só, reestruturar instituições que permitem às pessoas lucrar com os riscos do planeta. Se funcionar como um amplificador, ela poderá facilitar formas ainda mais engenhosas e lucrativas de subverter políticas destinadas a cumprir nossas metas climáticas.

De modo geral, devemos evitar o pensamento mágico promulgado pelos bilionários da tecnologia. Ouça-os, e você pode pensar que não precisamos nos preocupar muito com as mudanças climáticas, porque Elon Musk vai construir uma nova civilização em Marte até 2050. É óbvio, a tecnologia fornecerá novas soluções para nossos problemas. Mas, em primeiro lugar, ela também nos ajudou a criar esses problemas.

Espero que capitalizemos os efeitos disruptivos da IA. Em vez de ampliar o business as ­usual, talvez isso possa nos levar a repensar nossas prioridades e a mudar nossas políticas
e instituições de acordo com elas.

Maxwell Gomera

A IA é inegavelmente o divisor de águas necessário para nos ajudar a cumprir as metas do Acordo de Paris. Seu potencial reside em sua capacidade de processar grandes quantidades de dados, discernir padrões e prever comportamentos com precisão incomparável. Ao aproveitar esse poder preditivo, podemos obter insights mais profundos sobre as ligações complexas entre as mudanças climáticas e a crise da biodiversidade. Essas duas questões existenciais alimentam uma à outra e não podem ser resolvidas de modo isolado, mas os acordos internacionais existentes para abordá-las operam de forma independente.

Podemos implantar a IA para desenvolver uma abordagem integrada que combine acordos internacionais sobre mudanças climáticas, biodiversidade e uma série de outros temas. Armados com análises fundamentadas em IA de milhares de tratados, podemos evitar a duplicação, resolver disputas e garantir uma cobertura abrangente de questões críticas. Além disso, as negociações inclusivas são cruciais para um progresso significativo nas mudanças climáticas, e a IA pode ser um grande equalizador, dando aos países em desenvolvimento acesso a análises de dados de última geração. Imagine os resultados se os países menores exercessem o mesmo poder analítico que seus pares maiores na mesa de negociações.

Dito isso, devemos lembrar que a IA não substitui a engenhosidade humana e o juízo moral. A proteção contra preconceitos­ e resultados­ antiéticos precisa ser uma prio­ridade.­ À medida que a crise climática aumentar, deveremos aproveitar todas as oportunidades que se apresentarem. A inteligência artificial expõe possibilidades incomparáveis para moldar a agenda da Semana do Clima da ONU, a COP28 e além. Para o bem do nosso futuro neste planeta, devemos abraçá-la.

Vesna Manojlovic

A IA terá um efeito nocivo em nossas metas climáticas, por ser mais um motor do ecocídio. Como a próxima extensão de um sistema tecnológico capitalista já bastante destrutivo, a IA drenará combustíveis fósseis (pelo uso de energia), metais raros, terra e até água (para resfriar servidores), enquanto externalizará a poluição. Além disso, os sistemas de IA consolidarão ainda mais poder e riqueza nas mãos de algumas corporações, que acumulam dados para uso em vigilância e exploração do trabalho humano — tudo por lucro no curto prazo.

Para combater o ecocídio da IA, devemos montar intervenções bem-sucedidas em todos os níveis — desde a criação de regras internacionais até nossa própria educação pessoal. A maioria das pessoas não associa o mundo digital à invasão das fronteiras planetárias. E isso precisa mudar. Para reduzir o consumo de energia e recursos em níveis sustentáveis, devemos resistir à produção e operação descontroladas de mais dispositivos digitais, infraestrutura de rede e data centers. O extrativismo e os modelos de negócios orientados para o crescimento devem ser combatidos com políticas econômicas que redistribuam de maneira justa os benefícios da tecnologia. A inovação técnica deve se concentrar mais em manter sistemas e instituições críticas e em reparar danos.

Se o avanço da IA continuar no rumo das aplicações antropocêntricas, hierárquicas e individualistas, não acabará bem. Mas, se reconhecêssemos outras formas de “inteligência real” na natureza — enxames, recifes, colmeias, florestas, polvos —, isso poderia nos infundir a humildade de que precisamos para corrigir a rota.

Elizabeth Reilly

À medida que o mundo lida com as mudanças climáticas e seus efeitos, confrontamos a necessidade de tomar decisões sobre medidas de mitigação e adaptação com informações incertas e incompletas. A inteligência artificial pode nos ajudar a entender o que está acontecendo agora e para onde estamos indo, para que saibamos para onde direcionar nossos esforços e investimentos.

No trabalho do Laboratório de Física Aplicada (APL, na sigla em inglês) da Universidade Johns Hopkins, como parte da coalizão Climate Trace, estamos usando imagens de satélite, redes rodoviárias e aprendizado de máquina para estimar o volume de emissões de gases de efeito estufa (GEE) provenientes do transporte rodoviário no mundo todo. No ano passado, divulgamos estimativas de emissões para 500 grandes áreas urbanas, muitas das quais não tinham esses dados até então. Neste outono, expandiremos o serviço para milhares de cidades — um aumento na cobertura possibilitado pela IA. Essas informações mostram onde há liberação de GEE, para que os formuladores de políticas possam definir metas mais direcionadas e acompanhar o progresso delas.

A IA também pode ser usada para acelerar a compreensão mais ampla das mudanças climáticas, criando, em última análise, um ímpeto para mudanças que nos ajudarão a evitar ou diminuir seu impacto. Uma equipe de pesquisadores da APL está usando IA generativa para descobrir o que impulsiona os pontos de virada do clima, começando com o potencial colapso da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico. Descobrir esses fatores subjacentes produz ideias melhores sobre quais metas de temperatura devemos atingir para evitar chegar a pontos de virada — sem falar no fornecimento de motivação extra para buscar ações climáticas.

Quando incorporamos a IA no monitoramento e na modelagem de nossos sistemas terrestres, aprimoramos nossa compreensão e estamos mais bem posicionados para identificar soluções para um planeta mais saudável.

Dan Blaustein-Rejto

Sem dúvida, a IA nos ajudará a atingir as metas climáticas de Paris. Afinal, ela já tem muitas aplicações comprovadas para monitorar as emissões e o uso de energia. Pesquisadores da Universidade de Maryland contam com técnicas de aprendizado de máquina, desde o início dos anos 2000, para detectar o desmatamento na Floresta Amazônica a partir de dados de satélite. E, em 2016, o Google DeepMind desenvolveu um sistema de aprendizado de máquina que reduziu a energia usada no resfriamento do data center em 40%.

Mas o uso da IA continua baixo em muitos contextos. Sistemas para monitorar muitas fontes de emissões, como o metano agrícola, estão sendo desenvolvidos somente agora, e muitas empresas não têm dados, dinheiro nem pessoal qualificado para adotar a IA. É aí que entram os novos grandes modelos de linguagem, porque eles prometem permitir que muito mais pessoas incorporem o aprendizado de máquina e outros tipos de IA em seu trabalho atual. Na verdade, os profissionais de energia limpa que não têm experiência em codificação já vêm usando ferramentas como o ChatGPT para desenvolver sistemas que otimizem a implantação de armazenamento de bateria em escala de utilidade pública.

Esses usos podem acelerar de modo significativo o desenvolvimento de tecnologias limpas. No ano passado, o Google DeepMind informou que havia treinado um algoritmo de aprendizado por reforço inédito para controlar o plasma em reatores de fusão nu­clear. Imagine os avanços que são possíveis até 2050, à medida que milhões de cientistas, engenheiros, empreendedores e outros ganharem acesso a essas ferramentas, cujas próprias capacidades só continuarão a crescer.

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