Revista Exame

Estados Unidos quer remover cigarro eletrônico das prateleiras

A ordem para remover o Juul, o popular cigarro eletrônico, das prateleiras das lojas americanas, é um ataque pungente à startup do Vale do Silício. Qual é o futuro possível para os cigarros tecnológicos?

Vaping em ação: em 2019, quase 30% dos estudantes do ensino médio nos Estados Unidos relataram usar cigarros eletrônicos, a maioria fabricada pela Juul (Gabby Jones/Bloomberg/Getty Images)

Vaping em ação: em 2019, quase 30% dos estudantes do ensino médio nos Estados Unidos relataram usar cigarros eletrônicos, a maioria fabricada pela Juul (Gabby Jones/Bloomberg/Getty Images)

B

Bloomberg

Publicado em 22 de julho de 2022 às 06h00.

O anúncio de 23 de junho da agência reguladora de medicamentos dos Estados Unidos (Food and Drug Administration — FDA, na sigla em inglês), de que está ordenando a remoção do Juul, o popular cigarro eletrônico, das prateleiras das lojas, é um ataque pungente à startup do Vale do Silício, que prometeu revolucionar o fumo, mas, em vez disso, ajudou a preparar a nova geração de adolescentes viciados em nicotina.

Quando os cigarros eletrônicos feitos pela empresa que se tornaria a Juul Labs chegaram ao mercado, no verão de 2015, com cartazes chamativos na Times Square de Nova York e modelos joviais do Instagram ostentando o elegante dispositivo de nicotina, ficou claro que a empresa em alguma hora seria chamada para um acerto de contas. Uma geração antes, a indústria do tabaco foi denunciada por vender cigarros aos jovens e por mentir ao público americano sobre a natureza mortal e viciante de seu produto.

Entrou em cena, então, a Juul, ideia de dois formados de Stanford que impuseram a clássica estratégia de crescimento do Vale do Silício. Os dois seguiram uma versão pós-moderna da cartilha da indústria do tabaco, empacotando uma poção de nicotina altamente viciante em uma concha de cromo (a princípio, sem deixar muito claro que a concha continha nicotina) e comercializando-a para uma nova geração de jovens que cada vez mais vinha rejeitando os cigarros. De repente, bem no momento em que as taxas de tabagismo dos jovens caíam para mínimos recordes, adolescentes em toda a América ficaram viciados em nicotina atomizada. Pais, autoridades de saúde pública e a FDA ficaram escandalizados. Embora a nicotina por si só não seja o agente mortal nos cigarros (a combustão é que é), ela é terrivelmente viciante — tanto quanto a heroína — e pode interferir no desenvolvimento do cérebro adolescente.

A decisão da FDA, após uma revisão científica que durou dois anos, foi mais do que um acerto de contas: a agência responsável por proteger a saúde do público americano infligiu um potencial golpe mortal a uma empresa americana que apenas alguns anos atrás atingira uma avaliação de 38 bilhões de dólares e vinha dominando mais de 70% do mercado.

Defensores e legisladores anti-vaping comemoraram a decisão, dizendo que a devida punição à empresa demorou muito para chegar. “Aplaudo a FDA por seguir a ciência e por limpar o mercado dos produtos Juul, que levaram inúmeros jovens americanos a um potencial vício em nicotina que pode durar o resto de sua vida”, afirmou o parlamentar Raja Krishnamoorthi (democrata de Illinois), presidente do subcomitê de política econômica e de consumo e adversário declarado da Juul. “Se você não conhece a história por trás dos cigarros eletrônicos e do vaping, pergunte a um estudante do ensino médio na América”, disse o senador Dick Durbin (democrata de Illinois) em discurso no plenário do Senado americano.

Em 2019, quase 30% dos estudantes do ensino médio relataram usar cigarros eletrônicos, a maioria fabricada pela Juul. O ex-comissário da FDA Scott Gottlieb alertou que o uso de cigarros eletrônicos estava se tornando uma “tendência quase onipresente — e perigosa — entre os adolescentes”. De lá para cá, a parcela de vaping entre alunos do ensino médio caiu para 11%, e o produto mais popular é um novo entrante no mercado, de nome Puff Bar, e não mais a Juul.

No entanto, aparentemente não foi o apelo da empresa aos jovens que levou a agência a retirar o Juul do mercado. Uma norma de 2016 deu à FDA poder para conceder ou negar “ordens de marketing” para cigarros eletrônicos e outros produtos alternativos de tabaco levando em conta se eles se enquadram ou não no critério de serem “apropriados para a proteção da saúde pública”. A agência descobriu que a Juul não atendia a esse critério porque a empresa não forneceu evidências suficientes “para avaliar os potenciais riscos toxicológicos do uso dos produtos Juul” — embora a Juul tivesse gastado mais de 150 milhões de dólares e contratado um exército de cientistas para defender o argumento da companhia.

Ainda que a FDA tenha enfatizado que não acreditava que o Juul representasse um “perigo imediato” à saúde humana, é difícil saber exatamente quais receios a agência manifestou, porque suas chamadas ordens de negação de marketing não ficam disponíveis para o público. O órgão mencionou que “algumas das descobertas do estudo da empresa levantaram preocupações por causa de dados insuficientes e conflitantes” sobre questões como genotoxicidade, o que, em essência, mostra que a agência não achava o método científico que a Juul tinha apresentado suficiente para descartar a possibilidade de o produto da empresa causar dano celular.

Anúncio do Marlboro: em 2018, o Altria Group, dono da marca, pagou 12,8 bilhões de dólares por uma participação de 35% na Juul; hoje o grupo avalia o investimento em 1,6 bilhão de dólares (Bill Nation/Sygma/Getty Images)

A agência também disse que os dados da Juul sobre “produtos químicos potencialmente prejudiciais” que poderiam vazar das cápsulas eram insuficientes e que “impediram a FDA de concluir uma avaliação completa do risco toxicológico”. Embora esses produtos químicos não tenham sido nomeados na nota da FDA à imprensa, houve estudos mostrando que os usuários de Juul podem estar inalando metais pesados, uma vez que há um pequeno elemento de aquecimento — feito de cromo, níquel e ferro submerso nas cápsulas — que transforma a nicotina líquida em vapor.

Em 24 de junho, um juiz federal concedeu à Juul uma ordem de emergência permitindo que os produtos da empresa permanecessem nas prateleiras das lojas até o julgamento do recurso contra a decisão da FDA. “Continuamos comprometidos em fazer tudo o que estiver a nosso alcance para seguir servindo os milhões de fumantes adultos americanos que têm usado com sucesso nossos produtos para se afastar dos cigarros combustíveis”, disse Joe Murillo, diretor regulatório da Juul.

A Juul é a maior empresa de cigarros eletrônicos dos Estados Unidos — com quase 40% do mercado — e faturou 1,3 bilhão de dólares em vendas anuais no ano passado, abaixo de seu pico de 2 bilhões em 2019. Mais de 90% dos negócios da empresa estão nos Estados Unidos, com o restante principalmente no Canadá e no Reino Unido, e um pouco na França, na Itália e nas Filipinas. Sem o mercado americano, a empresa não passa de um sopro de vapor.

Empresas de investimento, como Tiger Global Management e Fidelity Investments, que despejaram dinheiro na Juul em sua ascensão, viram suas apostas naufragar ao longo dos anos, à medida que a avaliação da empresa despencava em meio a novas regulamentações sobre cigarros eletrônicos, uma série de controvérsias de saúde pública e um mercado cada vez mais competitivo. O Altria Group, que fabrica os cigarros Marlboro, pagou 12,8 bilhões de dólares por uma participação de 35% na Juul em 2018. Hoje, o grupo avalia esse investimento em cerca de 1,6 bilhão de dólares. O possível lado positivo para a Altria, segundo a analista de pesquisa de tabaco Bonnie Herzog, do Goldman Sachs Group, é que mais usuários de Juul que se veem diante de um mundo “desajuulzado” podem voltar a fumar Marlboro. A competição da Juul pode se beneficiar da decisão. Os dois maiores rivais da empresa, R. J. Reynolds Vapor e NJOY, já conseguiram autorização da FDA para manter alguns de seus produtos no mercado. O Vuse Alto, da Reynolds, cigarro eletrônico mais popular da empresa, ainda está em revisão pela FDA. 

A FDA está em um ponto de virada, na medida em que a indústria do tabaco se transforma no setor da Big Nicotine. Mesmo que as vendas de cigarros combustíveis tenham caído alguns pontos percentuais por ano, o mercado de produtos potencialmente menos prejudiciais — como cigarros eletrônicos e palitos, bolsas, chicletes e pastilhas de nicotina — está crescendo. Em 2021, o faturamento do mercado global de nicotina foi de cerca de 935 bilhões de dólares, alta de 25% desde 2016, segundo a empresa de pesquisa de mercado Euromonitor International. A fabricante de cigarros Philip Morris International prometeu eliminar aos poucos as vendas de cigarros combustíveis e tornar-se uma “empresa majoritariamente sem fumo” até 2025. Ela vem comprando empresas com experiência em entrega de remédios para pulmão e indicando que pode desenvolver novos produtos capazes de proporcionar uma variedade de “experiências sensoriais” ­para relaxamento, como a cannabis ou até mesmo botânicos, como a camomila.

Comércio de cigarros e vaporizadores: o faturamento do mercado global de nicotina é de 935 bilhões de dólares, alta de 25% em relação a 2016 (Andrew Lichtenstein/Corbis/Getty Images)

Durante anos, a FDA tentou descobrir como poderia resolver um dos problemas de saúde mais insolúveis da América: fumar. O tabagismo causa 480.000 mortes todos os anos, o que faz dele a maior causa de doenças evitáveis e mortes. Nas últimas duas décadas, um movimento de saúde pública cada vez mais influente tem argumentado que o governo deve fazer tudo o que puder para acelerar o “fim da farra” para os produtos letais. Um pilar dessa estratégia é reduzir a nicotina nos cigarros para níveis não viciantes, ou minimamente viciantes. Em tese, isso não só ajudaria os fumantes atuais a largar o hábito mas também evitaria que uma nova geração adotasse o vício ao longo da vida. (Quase todos os fumantes adultos criam o hábito antes dos 18 anos.) Apenas dois dias antes da decisão da FDA sobre a Juul, o governo Biden elaborou um plano para exigir que as empresas reduzam a quantidade de nicotina nos cigarros.

Mas outro componente da estratégia de fim de farra sempre foi apresentar aos fumantes opções menos prejudiciais em um espectro de risco, incluindo terapias de substituição de nicotina, como adesivos, chicletes e remédios farmacêuticos, como a vareniclina. Além dos cigarros eletrônicos.

A Juul e outros fabricantes de cigarros eletrônicos têm se apresentado como parte da solução para o problema do tabagismo. Agora, com a Juul fora do mercado, os críticos da decisão da agência — além dos defensores dos cigarros eletrônicos — dizem que os fumantes estão perdendo a alternativa mais popular ao cigarro. Grupos anti-vaping dizem que os fumantes já têm opções demais, o que inclui parar de fumar de uma hora para a outra, e que os cigarros eletrônicos representam um risco muito grande de dependência para os jovens.

Durante décadas, a indústria lutou contra qualquer tipo de esforço federal para regular o tabagismo, o tabaco e a nicotina. A FDA, que finalmente obteve autorização para regulamentar produtos de tabaco em 2009, está se vendo no meio de uma série de batalhas travadas desde as guerras do tabaco na década de 1990. Diante de uma empresa que vinha tratando a nicotina como acessório da moda e entrou no mercado com a indiferença clássica do Vale do Silício, a agência tomou uma de suas decisões mais importantes até agora.  


Tradução de Fabrício Calado Moreira

 

Veja também: 

O que é Vape? Entenda os malefícios do uso do cigarro eletrônico

Mulher da Casa Abandonada: Chico Felitti revela spoilers dos próximos episódios

Acompanhe tudo sobre:Cigarros eletrônicosEstados Unidos (EUA)Saúde

Mais de Revista Exame

Linho, leve e solto: confira itens essenciais para preparar a mala para o verão

Trump de volta: o que o mundo e o Brasil podem esperar do 2º mandato dele?

Ano novo, ciclo novo. Mesmo

Uma meta para 2025