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A agenda Guedes

Joel Pinheiro da Fonseca: o liberalismo ajudou a eleger Jair Bolsonaro. A dúvida é se ele resiste ao presidente

Ilustração (Richard Drury/Getty Images)

Ilustração (Richard Drury/Getty Images)

BC

Beatriz Correia

Publicado em 4 de junho de 2020 às 05h30.

Última atualização em 12 de fevereiro de 2021 às 12h52.

Entre as prioridades, alcançar o equilíbrio fiscal viria em primeiro lugar. Para esse fim, e lembrando que aumentar impostos está fora de questão, tornar o Estado mais eficiente no uso de seus recursos é condição necessária. Ao mesmo tempo, tornar o mercado mais eficiente, melhorando a eficiência alocativa e a produtividade da economia. Por fim, trabalhar na integração do Brasil à economia global por meio da abertura econômica.

Em 2019, os ventos sopravam a favor do projeto de Guedes: ele era a única autoridade dentro do governo quando o assunto era economia. Bolsonaro gozava do capital político de um governo recém-eleito, com a boa vontade para mostrar a que veio. O Brasil queria crescer e o resultado das urnas, assim como as manifestações de rua, mostrava adesão ao receituário liberal (compare-se com a França e a oposição massiva que a reforma da Previdência recebeu por lá). Por fim, o Congresso, nas mãos de Rodrigo Maia, aderiu à agenda reformista.

Algo dessa agenda foi feito em 2019. O passo mais importante foi a reforma da Previdência. Sem a capitalização com que Guedes sonhava, mas com um substancial impacto fiscal nos próximos anos. Outras medidas que podem ser citadas: a MP da liberdade econômica, que desburocratizou a vida de micro e pequenos empreendedores, a indicação para a entrada na OCDE e a negociação do acordo entre União Europeia e Mercosul. No Banco Central, Campos Neto seguiu na política de queda dos juros e tem levado adiante medidas para tornar o setor bancário mais moderno e competitivo.

Muito, contudo, ficou para trás. A agenda das privatizações, que na promessa renderia 1 trilhão de reais, ficou basicamente intocada. Nem a EBC entrou. Ficamos restritos a subsidiárias. A abertura econômica também não se alterou. As reformas tributária e administrativa, prometidas repetidamente, não foram enviadas. Em outros casos, medidas foram mandadas ao Congresso e estão em lenta tramitação: a PEC do pacto federativo, o PL da cabotagem, a independência do Banco Central e outros.

Ficamos, assim, aquém das promessas ambiciosas feitas no início. Guedes previa crescimento do PIB de 2% em 2019. Algumas apresentações da Secretaria de Política Econômica (SPE) no início do ano passado chegaram a prever 3,9% caso o Brasil aprovasse uma “boa reforma da Previdência”. Aprovamos uma boa reforma. Contudo, o crescimento ficou em 1,1%. Outra promessa que não se cumpriu foi a do superávit primário já em 2019. Com mais realismo, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, já alertava em meados de 2019 que superávit mesmo só viria em 2023. E isso foi antes de a pandemia chegar.

Em 2020, os ventos sopram decididamente contra. Em primeiro lugar, o resultado decepcionante da economia já tirou parte da boa vontade popular para com a agenda Guedes. Dentro do próprio governo, um grupo de ministros (Rogério Marinho, Tarcísio e Braga Netto) já compõe um projeto econômico rival, que enxerga no investimento estatal o caminho para o crescimento. A rivalidade entre Guedes e Marinho foi ilustrada de forma muito eloquente pela discussão entre os dois na reunião ministerial de 22 de abril.

No Congresso, Rodrigo Maia rompeu com os deputados do centrão, de modo que mesmo com sua ajuda ficou mais difícil aprovar projetos. A relação do governo com DEM e MDB, ademais, se desgastou muito. Buscando a própria sobrevivência, Bolsonaro tem se abraçado ao centrão, que não tem nenhum comprometimento com a agenda reformista. Ao contrário, num ano eleitoral como este, querem mais gasto.

E isso tudo sem falar na pandemia. Ela, por si só, já exige gastos extraordinários numa magnitude inédita e ainda não totalmente previsível. Já há quem projete a dívida/PIB passando dos 100% nos próximos anos (IFI). Aqui, o desafio dos fiscalistas não é impedir o aumento dos gastos, mas garantir que esse aumento seja transitório. O auxílio emergencial, por exemplo, custa cerca de 50 bilhões de reais por mês. É inviável ser mantido assim. Mas será que o governo terá pulso firme para enfrentar o descontentamento popular quando a redução a 200 reais for sentida pela população?

Para completar, a postura do presidente Bolsonaro na saúde pública e no meio ambiente durante a crise tem sido desastrosa para a imagem do governo no exterior. O acordo com a UE subiu no telhado.

A bolsa sobe quando Guedes defende a privatização do Banco do Brasil (reunião de 22 de abril) ou quando promete que a economia se recuperará em V e o Brasil “surpreenderá o mundo”. Mas o próprio secretário de Desestatização, Salim Mattar, publicou em rede social que não se privatizará o banco (assim como a Caixa e a Petrobras): “Não serão privatizados neste governo” (tuíte de 26 de maio).

As palestras de Guedes têm a capacidade de encantar empresários, traders e economistas liberais. Mas o mundo da política e o restante da população não aderem a essas doutrinas sem reservas. A grande pergunta é quanto de sua agenda Guedes topará sacrificar para preservar algum poder de influenciar os rumos do governo. Na fatídica reunião, vimo-lo tentando convencer Bolsonaro de que o equilíbrio fiscal vale a pena porque garantirá sua reeleição. Não parece o argumento mais convincente. Ter lido Keynes três vezes também não é um diferencial neste momento. Se o que foi feito em 2019 decepcionou, como acreditar que de 2020 em diante, quando tudo parece ir contra, as entregas serão maiores?


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