Revista Exame

10 mil horas de prática? Não precisa

No mundo da ultraconcorrência, busca-se cada vez mais a especialização. Mas esse é o caminho errado para se destacar, diz o escritor americano David Epstein

Time da Alemanha comemora a conquista da Copa de 2014: a maioria dos jogadores só se tornou profissional após os 22 anos de idade (Matthias Hangst/Getty Images)

Time da Alemanha comemora a conquista da Copa de 2014: a maioria dos jogadores só se tornou profissional após os 22 anos de idade (Matthias Hangst/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 26 de setembro de 2019 às 05h30.

Última atualização em 9 de outubro de 2019 às 10h01.

Durante muito tempo, os gênios mais admirados do mundo eram polivalentes. O exemplo máximo era Leonardo da Vinci, pintor, cientista, engenheiro, o renascentista por excelência. Nas últimas décadas, no entanto, o mundo foi se tornando cada vez mais complexo, mais competitivo e naturalmente mais especializado. Num mundo de concorrência globalizada e amplas possibilidades de ganhos de escala, a disputa pelos lugares privilegiados se dá entre uma multidão de candidatos. Avançou então a noção de que o sucesso exige foco, dedicação exclusiva, muitas vezes precoce, uma espécie de obsessão por alguma atividade em particular.

Não à toa, dois dos maiores sucessos de autoajuda são os conceitos das 10.000 horas de treino e, um pouco mais recentemente, da importância da garra. É contra esses conceitos que o jornalista científico americano David Epstein investe no livro Range — Why Generalists Triumph in a Specialized World (numa tradução livre, “Abrangência: por que os generalistas triunfam num mundo de especialistas”). O combate é travado com as mesmas armas de seus oponentes: algumas histórias bem contadas reforçadas por pesquisas, para apontar conclusões de como agir. O conjunto parece ter desmontado os adversários.

“Por motivos que eu não consigo explicar, David Epstein consegue me fazer gostar da experiência de ouvir que tudo o que eu pensava sobre algo estava errado”, escreveu o também jornalista científico Malcolm Gladwell, em recomendação estampada na capa do livro. Normalmente, elogios impressos na capa não querem dizer muito mais do que uma declaração de amizade. Nesse caso, é uma retirada estratégica. Gladwell foi o principal popularizador da tese das 10 000 horas de prática deliberada, em seu livro Fora de Série — Outliers. A tese é basicamente o que o nome diz: para atingir o ápice de seu campo é preciso treinar, treinar, treinar.

Não faltam narrativas de gente que se dedicou desde muito cedo a alguma atividade. Mozart é o exemplo mais lembrado, com suas turnês desde os 5 anos de idade. Epstein narra a história de Tiger Woods, que aos 2 anos de idade apareceu na TV acertando uma bola de golfe com um taco que lhe batia nos ombros e aos 4 anos costumava ser levado pelo pai a um campo para treinar 8 horas seguidas contra garotos mais velhos. A esse exemplo de foco precoce, Epstein contrapõe a história de Roger Federer. Na infância, Federer treinou esqui, luta, natação, -skate, basquete, handebol, tênis de mesa, futebol e, claro, tênis. Só na adolescência começou a dar preferência ao tênis.

A diferença entre as duas estrelas, sustenta Epstein, é que o golfe é um jogo mais previsível, mais estruturado, mais “suave”: há menos variantes, especialmente porque o adversário não interfere em suas – jogadas. Daí que o treino focado tem mais resultados. O tênis seria um jogo mais “malvado”, menos estruturado. Em ambientes “malvados”, as regras são incertas ou incompletas, padrões podem ou não se repetir, e o feedback para suas ações é muitas vezes impreciso, retardado ou ambas as coisas. Ou seja, o tênis seria um pouco mais próximo da vida real, de forma que o treino concentrado fica menos eficiente. Federer teria se beneficiado dos reflexos adquiridos em outras atividades físicas para se tornar o tenista mais dotado de recursos técnicos do mundo.

Trata-se de uma ideia quase tautológica: em ambientes flexíveis, mutáveis, a especialização pode prejudicar, pois condiciona a pessoa a respostas que já não valem mais. Essa argumentação está no espírito de um velho chiste, segundo o qual treinar xadrez torna a mente muito mais capaz de… jogar xadrez. No outro extremo, há quem acredite que o xadrez é a quintessência do treino para raciocínio. Assim foi que o psicólogo húngaro László Polgar, para provar sua teoria de que gênios são produzidos, não inatos, treinou suas três filhas, desde muito cedo, para que se tornassem campeãs de xadrez. Foi bem-sucedido. Aos 4 anos, Susan Polgar já vencia adultos. Aos 21, tornou-se a primeira mulher grande mestre. Sofia, sua irmã, venceu aos 14 anos um torneio na Itália repleto de grandes mestres. A caçula, Judit, tornou-se grande mestre aos 15 anos e cinco meses, um recorde entre homens e mulheres.

Ocorre que o xadrez também é um jogo estruturado, de regras rígidas. Há muito se acreditava que os grandes enxadristas desenvolviam uma memória privilegiada, símbolo de um raciocínio superior. Prova disso era um experimento em que as pessoas deviam recolocar as peças no tabuleiro depois de enxergá-lo por alguns instantes. Quanto maior a habilidade do enxadrista, mais fácil lhe era recompor o jogo. Em 1973, no entanto, os psicólogos William Chase e Herbert Simon (este, um futuro prêmio Nobel de Economia) refizeram o teste, com uma pequena variante: havia ocasiões em que a disposição das peças era impossível de acontecer num jogo. Nesses casos, a memória dos mestres era tão ruim quanto a dos demais.

Tanto Tiger Woods quanto as irmãs Polgar foram personagens do livro Desafiando o Talento, de Geoff Colvin. Apareciam como evidência de que a prática deliberada é a chave para o sucesso em virtualmente qualquer atividade. Mas o experimento de Simon e Chase mostra que os enxadristas treinam para reconhecer situações do jogo. Na vida real, eles frequentemente deparam com ocasiões em que as peças estão dispostas sem conformidade com seu treino.

Duke Ellington: seu treino para a música incluiu beisebol, desenho e pintura | Mary Evans/AF Archive/Agb photo

Claro, você poderia se lembrar que mesmo no tênis há casos de ídolos que começaram cedo. Serena Williams e sua irmã, Venus, começaram antes de nascer. Seu pai desejou ter filhas campeãs, aprendeu a jogar, comprou livros e vídeos tutoriais e iniciou os treinos assim que elas conseguiram segurar a raquete. Mas aí entram as pesquisas, para sustentar os casos escolhidos pelo autor. E as pesquisas mostram que os atletas de elite realmente gastam mais tempo nos treinos focados do que os atletas menos gabaritados… mas só a partir da adolescência. Até os 13 anos, a maioria deles treina menos que os atletas menos premiados. Em vez disso, passam por um período de experimentação.

Tome-se o caso, por exemplo, do time de futebol da Alemanha, aquele que venceu a Copa do Mundo de 2014, disputada em certo país da América do Sul, tendo vencido os donos da casa nas semifinais por um placar que não vem ao caso. Um estudo de pesquisadores alemães revelou que a maioria dos jogadores do time só começou a atuar profissionalmente a partir dos 22 anos. Antes, praticavam futebol amador e outros esportes.

O mesmo vale para a música. O pesquisador John Sloboda analisou as trajetórias de estudantes de uma escola britânica. Aqueles classificados como excepcionais, com base nas audições, vinham de famílias menos musicais, não começaram a tocar muito jovens, tinham tido menos aulas em média que os concorrentes e praticavam menos. Mas eram crianças que haviam treinado com pelo menos três instrumentos, em vez de focar um só.

No jazz, caracterizado pelo improviso, o efeito é ainda mais marcante. Duke Ellington é um dos poucos grandes músicos do gênero que tiveram aulas. Mas largou-as aos 7 anos, antes de aprender a ler partituras. Dedicou-se a beisebol, desenho e pintura. Só aos 14 anos voltou a se interessar por música, ao ouvir o estilo ragtime. Então sentou-se ao piano e começou a tentar copiar o que ouvia. Como disse o pianista brasileiro Nelson Freire, em uma entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, há três anos: “Eu vejo com preocupação jovens que ficam estudando 10 ou 12 horas por dia. O que eles vão transmitir? O estudo?! Música é sentimento, é preciso ter experiências de vida.”

Sofia (à esq.) e Judit Polgar: no xadrez o plano de produzir gênios dá certo | Peter Kohalmi/AFP

O fenômeno se repete no campo dos estudos e do trabalho, afirma Epstein. Ele cita uma pesquisa do psicólogo James Flynn, que comparou as notas de universitários americanos com seu desempenho em um teste de pensamento crítico. A correlação foi zero: quase nenhum estudante foi capaz de aplicar em outras áreas os métodos de interpretação de fatos aprendidos nas próprias disciplinas. É uma descoberta desconcertante, dado que a maioria dos estudantes termina por trabalhar em áreas não relacionadas à profissão que cursaram na faculdade.

Desistir faz parte do caminho

Outro mito moderno que Epstein trata de desconstruir é o da perseverança. Como diz o conselheiro de carreira Seth Godin, é falsa a noção de que “quem desiste nunca ganha”. Ao contrário. Os vencedores sabem desistir rapidamente e testar outro caminho até encontrar sua vocação. No livro Garra, a psicóloga Angela Duck-worth diz que o melhor indicador de que os cadetes da Academia Militar dos Estados Unidos chegariam ao final do extenuante curso era a nota num teste de perseverança e consistência de interesses. No entanto, a maioria dos oficiais desiste da carreira cinco anos depois de formados. É possível que a persistência seja, afinal, contraproducente. A estratégia de tentativa e erro parece ser óbvia, mas há uma forte indústria prometendo ajudar as pessoas a descobrir sua voz interior pelo mero exercício da introspecção.

Mesmo com tantos bons argumentos e pesquisas, porém, talvez Malcolm Gladwell tenha aceitado a derrota um pouco cedo demais. Afinal, há um problema na argumentação de Epstein, como apontou o filósofo e escritor Jim Holt em um artigo no jornal The New York Times. Ele dá duas razões para o generalista levar vantagem sobre o especialista: por navegar melhor em ambientes “malvados” e por conseguir encontrar seu encaixe perfeito. “Só que essas duas razões implicam prescrições contraditórias”, diz Holt. “Se a vida é ‘malvada’, você deveria se manter generalista para sempre. Se o objetivo é encontrar o encaixe perfeito, você deveria experimentar e depois se especializar.”

De certa forma, o confronto entre generalização e especialização é insolúvel. Se o generalista sabe pouco sobre muitas coisas e o especialista sabe muito sobre poucas coisas, no limite estaremos diante do confronto entre saber nada sobre tudo ou tudo sobre nada. Aristóteles diria que a virtude está no meio do caminho. Mas talvez ela esteja nos dois extremos. Já há quem fale em “generalistas profundos”, uma solução que provavelmente quer dizer que você tem de ser tudo ao mesmo tempo. Boa sorte.

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