hero_Giorgia Meloni busca consolidar o poder refazendo a Itália corporativa

Giorgia Meloni, líder do partido Irmãos da Itália, durante evento de campanha ao governo da Itália, no ano passado: visão estatizante do capitalismo (Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

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Giorgia Meloni busca consolidar o poder refazendo a Itália corporativa

A primeira-ministra conservadora quer recuperar a terceira maior economia da União Europeia com a aposta em campeões nacionais. Por quê?

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Giorgia Meloni busca consolidar o poder refazendo a Itália corporativa

A primeira-ministra conservadora quer recuperar a terceira maior economia da União Europeia com a aposta em campeões nacionais. Por quê?

Giorgia Meloni, líder do partido Irmãos da Itália, durante evento de campanha ao governo da Itália, no ano passado: visão estatizante do capitalismo (Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

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Por Bloomberg Businessweek

Publicado em 01/07/2023, às 08:01.

Última atualização em 09/08/2023, às 16:13.

Ministério do 'Made In Italy'

Em seu primeiro dia no cargo, a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni, renomeou o departamento de desenvolvimento econômico do país como “Ministério da Indústria e do Made in Italy”. Parecia ser um pequeno ajuste burocrático. Uma mudança de marca simples para um governo que herda quase € 3 trilhões (US$ 3,2 trilhões) de dívida que reduzirá os gastos com novas iniciativas de política econômica. Em vez disso, foi uma declaração de intenção da primeira primeira-ministra da Itália de seu plano de introduzir o que alguns apelidaram de uma visão nacionalista para a Itália corporativa — uma que vê dezenas de empresas estatais como uma maneira de consolidar o poder e direcionar a mudança na economia.

De um acordo de €  20 bilhões para comprar a rede da Telecom Italia à recente venda de uma participação na ITA Airways, além das tentativas de restringir o papel dos proprietários chineses na Pirelli, o governo Meloni já vem intervindo na Itália. O objetivo: influenciar e reformular a estratégia de longo prazo e as instituições industriais do país. Meloni não é a primeira pessoa no cargo de premiê da Itália a intervir em empresas estatais. Mas a outsider, que chegou ao poder como líder de um pequeno partido de extrema-direita, está determinada a garantir o controle sobre a infraestrutura estratégica.

No topo de sua agenda “Itália primeiro” está a criação de campeões nacionais nos setores de energia, moda e luxo, além do lançamento de um fundo soberano para financiá-los. Contudo, a primeira-ministra está envolvida em um delicado ato de equilíbrio, se transformando da ativista populista — anti-imigrante, desdenhosa dos direitos LGBTQ e protetora da soberania italiana — para pró-investimentos, firme em seu apoio à Ucrânia em sua luta contra a Rússia e navegando em uma coalizão de direita de interesses reivindicados.

Como parte dessa mudança, Meloni está supervisionando negócios financeiros complexos que só seguem em frente com sua aprovação, segundo várias pessoas envolvidas no processo, que pediram para não serem identificadas. O acordo para vender a participação da ITA à Deutsche Lufthansa AG foi de fato selado durante as discussões entre Meloni e o chanceler alemão, Olaf Scholz, na reunião do Grupo dos 7 no Japão em maio, dias antes de ser decidido.

Houve erros. O ⁠mais notável foi a má gestão da troca da guarda na Enel, o grupo de energia que é 24% de propriedade do Estado e crucial para o sucesso da Itália corporativa. A nomeação de um novo presidente se tornou emaranhada em negociação intensa dentro da coalizão de Meloni, com o resultado final interpretado por alguns como uma derrota para ela. O movimento irritou alguns investidores preocupados com possíveis ameaças à estabilidade financeira do país.

O maior sucesso de Meloni até hoje é algo que não aconteceu. Apesar das previsões generalizadas de que os mercados reagiriam mal à sua eleição em setembro passado, o infame “spread” da Itália — a diferença entre os rendimentos dos títulos italianos e alemães, que é fundamental para a sustentabilidade de cerca de € 2,8 trilhões da dívida do país — tem permanecido praticamente inalterado. “Todo mundo estava prevendo uma calamidade bíblica, com queda do mercado de ações”, disse Meloni segunda-feira à TV italiana em uma rara entrevista. “Mas agora, o mercado de ações está indo bem, o spread é menor do que o governo anterior e os fundos de hedge pararam de apostar contra a dívida pública da Itália”.

O plano dela para a Itália corporativa depende de mantê-la assim, com as finanças públicas sob controle. Por um acaso de timing — as posições são alternadas a cada três anos —, Meloni tem a chance de escolher dezenas de pessoas com afinidades com ela para cargos seniores no topo dos principais ativos públicos. Em tese, tal envolvimento daria ao governo dela influência maior sobre tudo, desde novos contratos de energia assinados pela Eni até esforços de criação de empregos ou redução da dívida em outros setores.

Uma forma de seguro, talvez, de que as políticas econômicas de Meloni serão realizadas em nível corporativo, mesmo que ela perca o poder num país em que nenhum governo do pós-guerra cumpriu um mandato completo de cinco anos. Isso também significa se mover politicamente em direção ao centro, potencialmente afastando alguns dos eleitores de direita — atraídos por suas implacáveis mensagens anti-imigrantes — que a levaram ao poder.

“A narrativa nacionalista de Meloni é demagogia destinada a agradar os eleitores dela”, afirma Laura Orlando, sócia-gerente da Herbert Smith Freehills, “em vez de projetar uma estratégia sólida para construir gigantes corporativos italianos”.

Seu partido, Irmãos da Itália, teve só 26% dos votos, mas faz parte de uma coalizão de direita que controla ambas as casas do Parlamento. Muitos acreditam que a desordem na oposição e os instintos de sobrevivência de seus parceiros de coalizão podem dar a Meloni um mandato completo no poder.

“Meloni é, em última análise, uma conservadora nacional e sua política envolve respostas pragmáticas aos desafios externos”, diz Giovanni Orsina, diretor da Escola de Governo da Universidade Luiss, em Roma. “Ela tem uma boa chance de ficar o mandato inteiro de cinco anos. E tem a sorte de poder colocar seu pessoal no mundo corporativo. É natural que ela se aproveite disso.”

O CEO da Telecom Italia, Pietro Labriola: governo de Meloni vê a telefônica como um ativo estratégico (Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

A⁠ aposta na China vai sair pela culatra?

A equipe em torno de Meloni — um híbrido de família e amigos de uma década, além de tecnocratas que atuaram nos governos de Silvio Berlusconi, o ex-primeiro-ministro — deve ajudá-la agora a lidar com decisões que podem definir sua duração no poder e o lugar da Itália no mundo.

Principalmente no que diz respeito às relações com a China. O governo deve decidir até o fim do ano se renova seu envolvimento na Iniciativa do Cinturão e da Rota (ICR), o pacto de investimento da China projetado para aprofundar laços econômicos com aliados no mundo todo. A Itália é o único país membro do G7 no programa e sua líder de 46 anos — descrita por apoiadores próximos como assertiva, autoconsciente e estratégica — está sob pressão para tomar um lado na rivalidade cada vez mais intensa entre a China e os EUA, que suspeitam das ambições de Pequim.

Para as empresas italianas que investiram na China ou que têm investidores chineses — desde a Pirelli até o clube de futebol Inter de Milão —, há medo de uma reação de Pequim em caso de qualquer movimento abrupto.

A decisão sobre a China é um campo minado, admite um funcionário sob condição de anonimato. “Precisamos desarmar o acordo de forma silenciosa, e não detoná-lo na cara da China”, acrescenta o funcionário. “É impossível pensar que podemos evitar fazer negócios com a China”.

A Itália aderiu à ICR em 2019, decisão tomada por um governo peculiar apoiado tanto pelo populista Movimento Cinco Estrelas quanto por Matteo Salvini — hoje um membro-chave da coalizão de Meloni e líder da Liga, partido de direita. O presidente da China, Xi Jinping, foi recebido em Roma para anunciar o acordo em meio a estardalhaço, mas também em meio a críticas da UE e dos EUA, preocupados com a crescente proximidade da Itália com a China e a Rússia.

O governo apostou que a adesão à ICR transformaria a Itália numa porta de entrada para o investimento chinês na Europa. No entanto, de acordo com dados compilados pelo Rhodium Group, a Itália não está experimentando um aumento tão grande no investimento quanto poderia imaginar. Entre 2000 e 2022, a China investiu cerca de € 16 bilhões na Itália, comparado a € 17 bilhões na França e € 32 bilhões na Alemanha. Dados do Banco da Itália mostram que o estoque de investimento direto da China no país não mudou de modo significativo após 2019, pairando pouco abaixo de € 5 bilhões por ano até 2022. No entanto, o país asiático continua sendo um destino importante para as exportações italianas — os embarques para a China subiram acima de € 7 bilhões durante o primeiro trimestre deste ano, complicando ainda mais a decisão de Meloni.

Crítica do acordo original da ICR, a primeira-ministra deve agora decidir se permite que ele seja renovado automaticamente durante mais cinco anos em 22 de dezembro ou se opta por sair sabendo que o fim do acordo arrisca a retaliação comercial de Pequim, e potencialmente os planos da premiê de remodelar a Itália corporativa.

Cerca de duas mil empresas italianas estão ativas na China, de acordo com a Fundação Itália-China, empregando cerca de 157 mil pessoas e negócios no valor de € 17 bilhões. Grandes empresas industriais, como a construtora naval Fincantieri e a fabricante de freios Brembo, além de algumas empresas estatais, podem correr riscos em caso de qualquer reação olho-por-olho.

Autoridades italianas insistem em privado que sua filiação à ICR não será renovada. Esperava-se que Meloni usasse a cúpula do G7 do mês passado na cidade japonesa de Hiroshima para informar os Estados-membros sobre a posição da Itália, mas nenhuma decisão foi tornada pública até agora.

“Ainda temos tempo para pensar o que fazer com a Cinturão e Rota da China”, disse a primeira-ministra numa coletiva de imprensa em Hiroshima. “Qualquer decisão que tomarmos terá consequências. Vocês sabem qual era a minha opinião, e eu não mudei de ideia sobre ela. Mas as condições mudaram”.

Com as taxas de juros ainda subindo em toda a Europa e o crescimento econômico apagado, está ficando cada vez mais difícil pagar a dívida da Itália, que está em 145% da produção econômica em meio à crescente preocupação de que o sistema financeiro do país continue dependente do apoio cada vez menor do Banco Central Europeu. Meloni prometeu proteger os italianos das dificuldades e reconstruir a economia pós-covid-19, e o país não consegue dar conta de um conflito com um grande parceiro comercial.

Esse sentimento é agudo nas empresas italianas. No Raffles Hotel de Cingapura, em maio, vários executivos italianos se reuniram informalmente para discutir o impacto de seu governo deixar a ICR. Todos pediram anonimato por medo de retaliação de Pequim, mas disseram que estão pressionando o governo Meloni a adiar a decisão. Um executivo, cuja empresa tem bilhões investidos na China, disse que uma saída este ano não permitirá que as empresas tenham tempo suficiente para reduzir sua exposição à China, algo que várias estão lentamente fazendo. Muitos temem ser excluídos do mercado chinês.

Assessores do governo em Roma estão investigando concessões a Pequim — desde uma flexibilização de algumas tarifas de importação e exportação a acordos comerciais e investimentos ligados a setores específicos — para reduzir os danos de qualquer retirada.

“Como Meloni resolverá seu dilema sobre o papel da Itália no Cinturão e Rota será um momento decisivo para seu governo”, diz Nathalie Tocci, diretora do think tank Istituto Affari Internazionali e ex-integrante da diretoria da Eni SpA. “Ela usou um apoio inabalável à Ucrânia e aos EUA como forma de ganhar a confiança de parceiros internacionais”.

“Até agora”, acrescenta Tocci, “isso tem funcionado”.

Presidente chinês Xi Jinping (esquerda) ao lado do primeiro-ministro italiano Giuseppe Conte (à direita) na assinatura do acordo para entrada da Itália na iniciativa chinesa 'Belt and Road', em 2019: conexão com a China é incerteza na agenda econômica de Meloni (Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

O⁠ malabarismo de Meloni

O apoio de Meloni à Ucrânia a colocou em rota de colisão com dois de seus principais aliados políticos: Berlusconi, amigo pessoal de Vladimir Putin, e Salvini, que disse que o presidente da Rússia é um líder melhor do que Angela Merkel, ex-chanceler da Alemanha. Alguns meios-termos com Salvini têm sido fáceis — concordar em construir uma ponte entre a Itália e a Sicília, um plano que esteve em discussão desde os tempos romanos antigos —, enquanto outros vêm custando capital político a Meloni.

Quando ela se curvou para Salvini sobre as nomeações na Enel, os investidores prestaram atenção. Até abril, a Enel, maior empresa da Itália e avaliada em mais de € 60 bilhões, era comandada por Francesco Starace, irmão do embaixador da Itália na Rússia. Starace cuidou da saída da empresa da Rússia após a invasão da Ucrânia. Mas ele estava entre um punhado de executivos que foram a um fórum de negócios com Putin em fevereiro de 2022, apesar de um pedido do governo para não comparecer.

Quando ele deixou o cargo de CEO da Enel em abril de 2023, isso provocou semanas de manobras políticas que culminaram em Meloni trancada numa sala com Salvini e um punhado de assessores para selecionar o sucessor de Starace e uma nova diretoria. A expectativa era que o cargo fosse para um aliado de Meloni. Em vez disso, após várias horas de negociações, Flavio Cattaneo, próximo da Liga e de Salvini, emergiu como CEO e Paolo Scaroni como presidente da empresa. Escolher gerentes da velha escola como Scaroni — com conexões com Moscou e Berlusconi — irritou alguns investidores, muitos dos quais acreditaram que a decisão enfraqueceu a premiê.

Após as nomeações surpresas, as ações da Enel caíram até 4,5%, mas desde então se recuperaram e agora estão sendo negociadas no mesmo nível de 12 meses atrás.

A Covalis Capital, sediada em Londres, contestou a nomeação de Scaroni e acusou o governo de realizar um processo “opaco” de nomeação. Embora o impasse de um mês tenha chegado ao fim com investidores apoiando a primeira-ministra, o episódio feriu a credibilidade de Meloni e levantou dúvidas sobre a capacidade dela de forçar mudanças no topo de outras empresas estatais importantes.

Vários acordos corporativos também vêm atraindo atenção sobre o governo. Meloni está sob pressão da associação de lobby automotivo para comprar uma participação na montadora franco-italiana Stellantis para combater a influência da França, que detém 6% da empresa.

Mas Giancarlo Giorgetti, ministro das Finanças da Itália, tem rejeitado qualquer sugestão para que o governo compre a empresa. “O Estado deve intervir apenas quando o mercado falhar ou para proteger interesses nacionais estratégicos”, afirmou ele na segunda-feira ao Fórum Bloomberg de Mercados de Capitais da Itália.

A Telecom Italia tem sido o alvo mais controverso. O antigo monopólio está no centro das negociações sobre a venda de sua rede e o futuro papel de seu maior acionista, o conglomerado francês Vivendi. Embora o governo tenha dito diversas vezes que quer manter o controle da rede, a estrutura de qualquer acordo ainda não deu as caras.

Negociadores no Palazzo Chigi, residência oficial da premiê — desde o chefe de gabinete de Meloni até assessores e ministros da coalizão, incluindo Salvini — estão discutindo vários cenários. Isso poderia levar a Cassa Depositi e Prestiti SpA — que já possui uma participação de 9,8% — a comprar os ativos, ou a uma venda para a empresa de private equity americana KKR & Co. Apesar das preocupações de soberania sobre a venda a um grupo dos EUA, a opção KKR poderia ter sucesso se a Cassa Depositi ou algum outro órgão de investimento do governo assumisse uma participação minoritária, a fim de salvaguardar os interesses italianos, segundo fontes familiarizadas com as negociações em andamento.

“Para Meloni, uma série de nomeações corporativas altamente políticas é uma maneira de distribuir poder sem ser envolvida demais no debate público”, diz Martina Carone, analista política da YouTrend. “Embora o destino de empresas que valem bilhões seja fundamental para os investidores, ele não é acompanhado de perto pelo eleitorado de direita dela. Meloni parece estável, e a oposição a ela está em frangalhos”.

“Mas sua estratégia também tem um risco”, acrescenta Carone. “É provável que, quando a novidade que Meloni dá a impressão de passar perder o brilho, tensões dentro de sua coalizão apareçam, e isso pode acontecer mais cedo do que se imagina”.

— Colaboraram Giovanni Salzano, Alberto Brambilla, Jody Megson e Carla Canivete.

Tradução por Fabrício Calado Moreira

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O presidente ucraniano Volodymyr Zelensky e Giorgia Meloni, em Roma, em maio: primeira-ministra conservadora afastou temores de Itália alinhar-se com a Rússia em meio à guerra na Ucrânia (Alessia Pierdomenico/Bloomberg)

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Conteúdo da revista de negócios Bloomberg Businessweek, dos Estados Unidos

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