Linha-dura em outro patamar
Nayib Bukele assumiu a Presidência de El Salvador em 2019 e quis mudar muitas coisas. Primeiro, deixou a gravata de lado e passou a usar roupas mais relaxadas, como blusas pretas e boné. Em seguida, apertou as leis e adotou linha-dura para valer contra o crime. Tanto que, atualmente, cerca de 2% da população do país está atrás das grades. Em um país de 6,3 milhões de pessoas, seu governo fez mais de 70.000 prisões.
No domingo, 4, Bukele conquistou um segundo mandato, em um sinal claro de que o combate à violência é uma das questões mais preocupantes na América Latina hoje. O discurso de linha-dura contra o crime não é novidade na política, mas o líder salvadorenho levou o modelo a outro patamar, tanto em termos de mudanças de lei quanto de resultados e de exposição midiática. O próprio Bukele se descreve como um "ditador cool" e responde às críticas dizendo apenas que o país melhorou.
Um dos símbolos da gestão Bukele é a construção de uma megaprisão, com capacidade para 40.000 presos, aberta em 2023. O local foi mostrado muitas vezes em vídeos bem produzidos, que exibiam detentos sem camisa sentados no chão ou sendo levados pelos guardas. As celas, que podem manter até cem pessoas cada, não têm colchões nem travesseiros e possuem poucos banheiros. Os familiares dos presos precisam pagar pela comida fornecida a eles.
Assim, a votação de domingo confirma a escolha dos salvadorenhos por mais segurança em troca de menos direitos. Com as medidas de Bukele, o governo passou a ter autonomia para prender pessoas sem mandado e mantê-las detidas por até quatro anos sem uma acusação formal.
Desde a mudança nas regras, em 2022, foram mais de 75.000 detenções. Entre elas, mais de 7.000 pessoas foram capturadas e depois soltas, e há risco que muitas outras estejam presas injustamente.
No entanto, as medidas deram resultados. Em 2015, o país centro-americano tinha 106,3 homicídios para cada 100.000 habitantes. Em 2023, o índice foi de 2,4 homicídio por 100.000, segundo estatísticas oficiais. Gangues deixaram de atuar nas ruas e os moradores se sentem à vontade para circular, inclusive de noite, algo que muita gente tinha medo de fazer há décadas.
Com isso, o "bukelismo" ganha admiradores em outros países do continente que sofrem com a violência. O Equador, que vive uma forte crise na segurança, também anunciou que fará uma megaprisão em breve, como resposta para tentar conter a disputa de facções no país.
"A preocupação com a violência tem o nível mais alto do mundo na América Latna. E não é só muito alto, como está crescendo, também em países como Equador, Chile e Peru, que antes não tinham o tema como preocupação principal", diz Jean-Christophe Salles, CEO da Ipsos para a América Latina.
Como começou a crise em El Salvador
El Salvador teve uma história tumultuada na política no século 20. Entre 1930 e 1970, houve ditaduras militares. Em 1979, começou uma guerra civil, entre as Forças Armadas e uma guerrilha de esquerda, a FLMN. O conflito durou 13 anos e fez com que milhares de salvadorenhos deixassem o país, muitos deles indo para os Estados Unidos.
Nos anos 1990, gangues de salvadorenhos se formaram em Los Angeles e passaram a atuar no tráfico de drogas, roubos e assaltos. Eram dois grupos principais, MS-13 e Barrio 18. O governo americano agiu e deportou 5.000 integrantes dos dois grupos de volta a El Salvador, em 1995, e os criminosos recomeçaram suas atividades em seu país de origem.
Nos anos 2000, o governo buscou criar uma política de linha-dura e prendeu milhares de pessoas. Mas isso teve um efeito contrário: as quadrilhas ganharam ainda mais força e se organizaram melhor a nível nacional, ao trocar informações e se organizarem nas cadeias.
Em 2009, um novo governo, ligado à ex-guerrilha de esquerda, tentou negociar com as gangues e fez concessões. Mas isso fez com que elas aumentassem seu poder, ao lucrar com extorsões e taxas de proteção. Ao mesmo tempo, havia confrontos mortais entre as gangues e atos de violência contra moradores, que podiam ser agredidos ou tomar tiros apenas por usar símbolos associados a facções rivais, por exemplo.
"Nossa vida era difícil. Ameaçaram matar a minha mãe e um irmão, e minha empresa de ônibus tinha que pagar 560 dólares (2.763 reais na cotação atual) por mês às gangues. Agora há tranquilidade", disse à AFP um motorista de ônibus que não quis ser identificado.
A situação foi piorando tanto que, na década passada, El Salvador era um dos países mais violentos do mundo. Bukele se elegeu em 2019 com a promessa de mudar isso, com métodos diferentes.
A trajetória de Bukele
Nascido em 1981, o atual presidente é filho de Armando Bukele, empresário de origem palestina. Nayib cursou direito, mas não concluiu o curso e foi trabalhar com o pai em uma agência de publicidade que atuava com comunicação política. Depois, também presidiu a filial da Yamaha no país.
Em 2011, ele se filiou ao FMLN, partido ligado à ex-guerrilha de esquerda. No ano seguinte, foi eleito prefeito de Nuevo Cuscatlán, cidade pequena nos arredores da capital, San Salvador. Em 2015, foi eleito prefeito da capital. No cargo, um de seus principais projetos foi a revitalização do centro da cidade, com ampliação de ruas, remoção de ambulantes e reforma de monumentos.
Ao fim de quatro anos, disputou a Presidência. Ele foi expulso do FMLN após uma desavença com uma vereadora e criou o Movimento Novas Ideias, que se posicionava como algo diferente da política tradicional. O partido teve dificuldade para obter o aval da Justiça Eleitoral a tempo e ele competiu por outra legenda, chamada Gana. Bukele venceu no primeiro turno, com 53% dos votos, e colocou fim a 30 anos de bipartidarismo no país.
Ele tomou posse em junho de 2019 e buscou se aproximar do então presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para buscar recursos para conter a violência no país, algo que ajudaria a reduzir a imigração aos EUA. No entanto, a Assembleia do país não quis aprovar um empréstimo dos americanos para esse fim. Em um domingo, em fevereiro de 2020, Bukele foi até o Plenário, acompanhado de soldados armados, se sentou na cadeira de presidente do Congresso e pediu uma insurreição popular. Depois, pediu calma e disse que não queria um golpe.
Em 2021, houve eleições para renovar o Congresso, e o partido de Bukele ganhou mais assentos. Agora com os poderes da maioria ampla, a coalizão governista determinou a destituição de cinco juízes da Corte Suprema do país, que limitaram medidas do governo durante a pandemia, como confinamentos e prisões administrativas. Também aposentou outras centenas de juízes à força. Em outro gesto, reduziu o número de cadeiras no Congresso, com a justificativa de cortar gastos. Opositores viram nisso um gesto para cercear a participação democrática.
Ao mesmo tempo em que tomava medidas autoritárias, Bukele buscou projetar uma imagem de modernidade. Ele fez com que o país fosse o primeiro do mundo a aceitar bitcoins em transações oficiais. Ao discursar na Assembleia-Geral da ONU, tirou uma selfie e postou em uma rede social. Ele possui uma presença forte nas redes sociais, onde seus apoiadores fazem ações para enaltecer sua imagem e detratar opositores.
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Como a crise começou
Segundo reportagens da imprensa de El Salvador, nos primeiros anos de gestão, o governo de Bukele teria feito um acordo informal com líderes de facções para conter a violência. Esse acerto teria caído por terra em março de 2022, quando a polícia prendeu líderes do MS-13 que tentavam deixar o país de carro, pela Guatemala, em um carro do Ministério da Justiça.
Em resposta à prisão, gangues fizeram um dia de terror e mataram mais de 60 pessoas em apenas um sábado, a maioria delas inocente. Depois disso, o governo convocou uma sessão do Congresso e aprovou uma situação de exceção. Com a mudança, os direitos de liberdade de reunião, de defesa e de sigilo nas comunicações foram suspensos. Pelas novas regras, qualquer pessoa pode ficar presa até quatro anos sem receber uma acusação formal.
A policia fez ações duras nas periferias: invadiu casas sem mandado e prendeu milhares de pessoas por acusação de relação com as facções. As prisões seguiram sendo feitas nos meses seguintes, em grandes quantidades, suficiente para encher a nova megapenitenciária, chamada Cecot (Centro de Confinamento do Terrorismo), com capacidade para 40.000 pessoas.
Uma das questões levantadas por ONGs de direitos humanos, no entanto, é que muitos dos detidos são inocentes. Há relatos de familiares de criminosos que foram presos, de pessoas capturadas após vizinhos terem feitas denúncias falsas após desavenças banais e de manifestantes que foram presos apenas por protestar contra as medidas do governo. Há também muitas denúncias de desaparecimentos e tortura que envolvem as forças de segurança.
Dúvidas sobre a economia
El Salvador não permite a reeleição presidencial. Para contornar isso, Bukele fez uma manobra: se afastou do cargo no fim do ano passado e conseguiu que o drible nas regras fosse validado pela Justiça.
Na campanha, ele diz que uma vitória dos rivais significará uma volta ao passado. "A oposição sera capaz de atingir seu verdadeiro plano, de libertar os membros das gangues", disse em um vídeo de campanha. Seus rivais negam as acusações e dizem apenas querer que os acusados tenham julgamentos justos e que inocentes não sejam presos.
Além da segurança, Bukele ainda precisa resolver problemas na economia. A pobreza atinge 29% da população, segundo dados da Cepal, e muitos salvadorenhos continuam emigrando para os Estados Unidos em busca de trabalho.
El Salvador também tem fortes laços comerciais com a China. Bukele já inaugurou diversas obras, incluindo um estádio, feito em parceria com o país asiático. O esfriamento do crescimento chinês poderá adicionar uma dose de incerteza ao seu provável segundo mandato.
Com AFP.
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Créditos
Rafael Balago
Repórter de macroeconomia
Foi correspondente em Washington, repórter e editor-assistente na Folha de S.Paulo e fez mestrado em jornalismo pela Universidade da Coruña (Espanha).