De Sandy e Júnior a Marília Mendonça: lives ajudam a popularizar QR Code
O fenômeno das lives na quarentena pode ter um ganhador extra: as carteiras digitais, que vêm angariando doações para boas causas e usuários para seus apps
Carolina Riveira
Publicado em 9 de maio de 2020 às 08h00.
Última atualização em 10 de maio de 2020 às 20h40.
Levantamento do YouTube divulgado nesta semana mostra que, das dez transmissões de música mais assistidas na plataforma, os artistas brasileiros respondem por sete. O fenômeno daslives tomou conta do Brasil e do mundo na quarentena e vem ajudando os artistas a se aproximar de seu público, ao mesmo tempo em que milhões de reais são arrecadados em doações durante as apresentações.
Mas além dos artistas, das plataformas e dos beneficiados pelas doações, um dos ganhadores do movimento pode estar relativamente escondido, no cantinho da tela e sem chamar atenção. É o código QR , também conhecido pelo termo em inglês QR code. A tecnologia, que é basicamente um código de barras mais complexo, vem sendo usada nas telas das lives para viabilizar as doações.
Carteiras e bancos digitais têm se movimentado para fazer parcerias e transacionar o máximo possível de doações em seus apps. Nomes como PicPay, Ame, PagSeguro e Stone já imprimiram seus logotipos -- e seus QR codes -- em lives de todos os estilos musiciais durante a quarentena.
O movimento é de ganha-ganha: enquanto a tecnologia viabiliza doações, os apps, no fim, angariam alguns milhões de novos usuários. O objetivo é que todas essas pessoas baixem o app, façam seu primeiro pagamento e, com uma boa experiência, fiquem depois para novos usos.
Em algumas lives, as doações também podem ser feitas por transferência bancária, mas o QR Code, que há mais de um ano vem tentando engrenar no Brasil em pontos de venda físico, se provou a tecnologia ideal. Depois de ser usada nas primeiras transmissões, no começo de abril, a ferramenta virou presença garantida na agenda de lives desta quarentena, de artistas com milhões de fãs a cantores menos conhecidos.
"Todo dia aparece uma live com o nosso QR code, de artistas amadores, profissionais autônomos, professor de dança, de idioma. Tem live que usa a nossa tecnologia e nem sabíamos", diz Gueitiro Genso, co-fundador e presidente do PicPay.
O PicPay foi parceiro de lives como a da dupla Sandy e Junior, cujo show online foi a quinta transmissão mais assistida no Brasil, segundo o YouTube, com 2,54 milhões de acessos. Só essa transmissão, feita da casa da cantora Sandy em Campinas, no interior de São Paulo, angariou 1,3 milhão de reais em doações -- destinadas ao projeto "Fome de Música", campanha que está convertendo as doações das lives em alimentos.
A carteira digital fundada em 2012 também já participou de lives de nomes como Thiaguinho, Fernanda Brum, Paula Fernandes, Ivete Sangalo, Luan Santana e Jorge e Mateus. O PicPay afirma que já esteve presente em mais de 15 lives grandes e arrecadou mais de 5,5 milhões de reais em doações.
Já a Ame Digital, controlada pelas varejistas B2W (dona de Americanas.com, Submarino e Shoptime) e Lojas Americanas, já participou de mais de 35 lives. Foram parcerias com artistas como Fernando e Sorocaba, Bruno e Marrone, Chitãozinho e Chororó, Pabllo Vittar, Belo, Simone e Simaria, Raça Negra e Ludmilla.
A empresa diz ter sido a primeira a colocar uma tarja de doação em parceria com sua carteira digital em uma live musical, com a transmissão de pagode dos cantores Tiee e Ferrugem, em 5 de abril. Ao todo, foram 150 milhões de visualizações nas lives parceiras da Ame e mais de 250 milhões de pessoas alcançadas nas redes sociais. A empresa não revela os valores exatos transacionados, mas Thiago Barreira, diretor de operações da Ame Digital e responsável pela fintech, diz que as doações cresceram 1.000% em abril em relação à março e que foram doados via Ame Digital "alguns bons milhões de reais".
A live mais assistida do YouTube foi da cantora Marília Mendonça, com 3,3 milhões de visualizações. As doações foram feitas em parceria com a Stone, que viabilizou os pagamentos -- embora sem exigir o download de um app exclusivo.
As doações dos fãs são, no geral, complementadas por novas doações das próprias carteiras digitais e alguma dose de dinheiro de volta, como se tornou praxe aos usuários desses produtos, como forma de angariar novos consumidores. Em algumas lives, a Ame chegou a oferecer porcentagens de até 50% do dinheiro da doação de volta.
As empresas não revelam quanto do percentual de doações vem de novos usuários baixando os apps. Entre os mais de 8 milhões de reais arrecadados nas lives contabilizados pela reportagem, se cada espectador tiver doado 5 reais (o valor mínimo estabelecido pela campanha Fome de Música), terão sido mais de 1,6 milhão de usuários que viabilizaram uma doação via QR Code desde o começo de abril. Só nos usuários do PicPay, seriam mais de 1 milhão de usuários, entre novos e antigos, que precisaram usar o app para doar.
Entre lives, doações e a própria digitalização forçada gerada pela quarentena, três milhões de pessoas abriram a conta digital do PicPay em abril, segundo a empresa. Meses antes da pandemia, a média era de 500.000 novas aberturas ao mês. O produto está perto de 19 milhões de usuários.
Algumas das lives não exigem um app específico. Foi o caso do festival "Fome de Música", que reuniu dezenas de artistas por quase dez horas em abril e arrecadou mais de 1,5 milhão de reais. Mas mesmo as doações livres de exclusividade com os apps já implicam uma maior familiaridade do consumidor com o código QR, o que pode ser benéfico para as carteiras digitais passada a pandemia.
"Essa curva de uso do QR Code vai ser muito acelerado em função dos efeitos da pandemia, e as lives são uma das frentes. É criada uma familiaridade do consumidor com a tecnologia que é essencial", diz Barreira, da Ame.
A hora de brilhar para o QR Code?
O ano de 2019 ficou marcado pelo que se chamou de "guerra das maquininhas", com bancos e fintechs disputando espaço nos pontos de vendas. O QR Code também entrou na briga, mas em menor escala. Ainda assim, tornou-se comum em grandes cidades, como São Paulo, encontrar os códigos de pagamento posicionados sobre o balcão de restaurantes e padarias.
Agora, o isolamento social pode se mostrar um momento ideal para alavancar a tecnologia. Além dos pagamentos durante o isolamento, mesmo quando as cidades reabrirem, o consumidor pode estar reticente a fazer pagamentos em que precise encostar nas maquininhas.
O PicPay tem o QR Code em 2,5 milhões de pontos de venda no Brasil, mais da metade deles após uma parceria com a Cielo para pagamento via QR Code nas maquininhas da adquirente, que estão em mais de 1,5 milhão de estabelecimentos. Em Vitória, no Espírito Santo, terra natal da empresa, Genso diz que 70% dos locais já usam QR Code do PicPay. "É uma Xangai brasileira", diz, fazendo referência ao alto uso de código QR na China.
A Ame também fez parceria com a Cielo para QR code nas máquinas. A carteira digital de B2W e Americanas também fechou, durante a pandemia, uma parceria para pagamento por QR code em cerca de 11.000 postos de combustível e lojas de conveniência da BR Distribuidora. A ferramenta atingiu 7,5 milhões de downloads, segundo balanço da B2W divulgado nesta semana.
Diante da integração com a B2W, que tem 20% do e-commerce brasileiro, Barreira diz que foi responsável por 17% de todos os pagamentos de e-commerce da Black Friday de 2019, ou por um em cada cinco televisores e celulares comprados. No carnaval do Rio, a empresa treinou 10.000 ambulantes neste ano para usar o QR Code nos pagamentos e foi responsável por 15% das vendas do evento.
Executivos do MercadoPago também afirmaram que mais de 170.000 pontos de venda no Brasil já aceitam QR Code da fintech, segundo dados de janeiro, a maior parte (cerca de 70%) no setor de alimentação. A empresa também fechou parceria com pet shops, lavanderias e salas de cinema. Mais de seis milhões de usuários já fizeram pagamento com QR Code, segundo dados de 2019. O MercadoPago tem a vantagem de ser acoplado ao Mercado Livre, que tem mais de 30 milhões de usuários no Brasil.
Já o Movile Pay, do iFood, está presente em mais de 10.000 restaurantes e bancas de jornal. A empresa não revela o número de usuários específicos da carteira digital, que fica acoplada ao app do iFood, que recebe mais de 26 milhões de pedidos por mês.
No ano passado, um dos marcos do avanço das carteiras digitais foi a política de desconto agressiva. O mesmo acontece agora, com as carteiras se movimentando para atrair em meio à pandemia um público que vá além das classes A e B de grandes cidades. Quase todas já instituíram ferramentas para que quem recebeu os 600 reais de auxílio emergencial do governo os deposite nas carteiras digitais, que oferecem rendimento a 100% do CDI e política de dinheiro de volta, que pode chegar a descontos de mais de 10%.
"Desconto sempre fez parte da alavanca do varejo. Mas é muito melhor canalizar esse desconto para uma carteira e conseguir estabelecer esse relacionamento mais frequente com o consumidor, do que dar desconto em boleto", diz Barreira, da Ame. O executivo afirma que um cliente que usa a Ame gasta três vezes mais nas plataformas da B2W.
A bagunça dos códigos
O desconhecimento em como usar a tecnologia segue sendo um dos entraves -- que movimentos como o das lives podem ajudar a atenuar. O estudo “Novos Meios de Pagamento”, realizado em 2019 pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), ouviu 500 pessoas de diferentes idades, rendas e regiões do país e apontou que 17% utilizou QR code para pagamentos em lojas físicas em 2019 (a margem de erro é de quatro pontos percentuais).
Os campeões seguem sendo dinheiro e cartões, com mais de 50% dos usuários cada. Mas, no mesmo estudo feito no ano anterior, em 2018, o QR Code sequer obteve respostas, o que mostra um crescimento expressivo. O QR code também está entre os meios de pagamento que outros 17% dos usuários responderam que mais gostariam de utilizar, mas não utilizam.
Uma das barreiras é que a própria aceitação dos estabelecimentos ainda é baixa se comparada a cartões ou dinheiro, mostra o estudo.A exclusividade dos pagamentos é parte desse entrave. Um totem do iFood, por exemplo, não aceita um pagamento do PicPay. Uma solução para este problema está sendo projetada pelo Banco Central, que vai inaugurar em novembro o PIX, plataforma de pagamento instantâneo que inclui o QR Code.
Bruno Chan, fundador e presidente da fintech CrediGO, que centraliza contas bancárias de clientes em um só aplicativo, diz que a arbitragem do Banco Central será positiva para o Brasil. Chan, que morou por anos na China (e tem por lá parte da equipe da CrediGO), afirma que no ecossistema chinês há um duopólio de WeChat, da Tencent, e AliPay, da Alibaba.
Ambos tinham milhões de usuários vindos de seus negócios centrais -- as redes sociais e jogos e o e-commerce, respectivamente. Com isso, conseguiram transportar esses usuários para suas carteiras digitais sem uma grande interferência do governo.
"No Brasil, com a alta concorrência e nenhum player vencedor ao certo, essa disseminação orgânica seria mais difícil. A presença do Banco Central vai acelerar o desenvolvimento ao criar um sistema unificado", diz Chan. "Em termos de segurança jurídica, também é importante: as empresas agora sabem que podem investir nisso e que não serão barradas no futuro."
A China conseguiu disseminar o QR Code antes mesmo das maquininhas, e hoje tem mesmo a população antes desbancarizada e de classe baixa usando essas ferramentas. Não será só com lives ou com o próprio coronavírus que o QR Code superará as maquininhas ou mesmo o dinheiro no Brasil, um país onde há mais de 40 milhões de desbancarizados. Mas, como em outro setores, a digitalização de pagamentos em meio ao isolamento avançou em algumas semanas o que avançaria em anos.