Karin Pichara, Matías Muchnick e Pablo Zamora: os três fundadores da empresa chilena (The Not Company/Divulgação)
Mariana Fonseca
Publicado em 22 de março de 2019 às 06h00.
Última atualização em 22 de março de 2019 às 11h15.
Uma maionese que não é maionese; um leite que não é leite; um sorvete que não é sorvete; um queijo que não é queijo; e um hambúrguer que não é hambúrguer. Parece uma publicidade que tem tudo para dar errado, mas existe uma startup chilena que leva o contrário até no nome. Até Jeff Bezos, o homem mais rico do mundo, injetou dinheiro nessa ideia de negócio. Ela chegará ao Brasil nas próximas semanas, com o objetivo de transformar o país em seu maior mercado.
A The Not Company (ou “a não-companhia”) foi criada há quatro anos pelo economista Matías Muchnick, pelo cientista da computação Karim Pichara e pelo especialista em biotecnologia Pablo Zamora. Os empreendedores desenvolveram um algoritmo próprio, dotado de inteligência artificial, capaz de combinar diversos produtos a base de plantas para gerar sabor, consistência e textura iguais aos produtos de origem animal.
A NotCo, como é mais conhecida, obteve um investimento de 30 milhões de dólares de nomes como Jeff Bezos no início de março. O criador do comércio eletrônico Amazon possui uma fortuna de 131 bilhões de dólares, segundo a revista Forbes. Seu capital será usado para o desenvolvimento de produtos e para a expansão da startup chilena pela América Latina e pelos Estados Unidos.
Em visita ao Brasil, os fundadores falaram a EXAME sobre o começo do negócio e seus próximos passos, na companhia de Bezos, e apresentaram seus produtos à imprensa. Adiantamos: as não-comidas são saborosas e passariam por produtos comuns em um teste cego. Mas alguns itens podem não agradar os viciados na consistência gordurosa dos alimentos industrializados.
Cerca de um bilhão de pessoas dependem da criação e produção animal para sua sobrevivência e a demanda por tais alimentos deve crescer 70% até 2050, segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura. Em 2017, 323 milhões de toneladas de carne foram produzidas globalmente, número que deve chegar a 367 milhões de toneladas nos próximos dez anos. O Brasil é um dos cinco maiores produtores de carne do mundo, ao lado de China, Estados Unidos, União Europeia e Rússia.
Porém, há consequências graves dessa atividade na sobrevivência do planeta. O setor ocupa um terço das terras aráveis em todo o mundo, com a decorrente degradação de 20% dos pastos e de 70% das áreas sem vegetação. A criação e produção animal usa um décimo do consumo total de água por humanos no mundo e gera poluição pelo uso de fertilizantes, hormônios e pesticidas ou pela emissão de gás carbônico em uma taxa maior do que a vista combinando todas as emissões de meios de transporte.
A NotCo surgiu a partir da soma desses dados à desilusão do futuro empreendedor Matías Muchnick com o mercado financeiro. Graduado em Economia, ele passou alguns meses no banco J.P.Morgan e percebeu um denominador comum nas famílias abastadas que atendia: ao menos um dos membros havia empreendido. “Eu também queria resolver um grande problema e percebia a desconexão entre o que comemos e o que achamos que comemos. Você sai de um supermercado mais confuso do que entrou”, afirma.
Para o chileno, a indústria alimentícia deveria aplicar a análise científica a nível molecular em sua linha de produção, de forma similar ao que ocorre com o setor farmacêutico. “Considerando-se a tecnologia disponível, nossos avós faziam mais pela alimentação do que fazemos hoje. As companhias não investem em pesquisa e desenvolvimento porque não conseguem resultados justificáveis. E não conseguem resultados justificáveis porque não fornecem apoio suficiente. É um ciclo vicioso.”
Cursando uma pós-graduação na Universidade de Harvard (Estados Unidos), Muchnick acabou conhecendo os outros dois sócios da NotCo: Karim Pichara, doutor em ciência da computação e especialista em machine learning, e Pablo Zamora, doutor em biotecnologia e especialista em bioquímica de plantas e genética. Também chilenos, eles estabeleceram o centro de pesquisa e desenvolvimento do que viria a ser a The Not Company em Santiago, no ano de 2015.
Uma inspiração clara da Notco é a Impossible Foods, startup californiana criada quatro anos antes e especializada em hambúrgueres feitos a base de plantas -- o sangue da carne, por exemplo, é replicado com beterrabas. A Impossible Foods já obteve 387,5 milhões de dólares em investimentos, ou 1,46 bilhão de reais. Em resposta, a NotCo está investindo no poder de seu algoritmo e em verticais que vão além da maionese, como leite, manteiga, queijo e até mesmo hambúrgueres, o carro-chefe da californiana.
“Apesar de a Impossible ser uma inspiração, estou olhando hoje mais para negócios como a Nike, que possuem um grande poder de branding. Queremos ser a marca mais lembrada em todas as categorias que atuarmos. O sabor dos produtos e a qualidade dos processos são apenas os primeiros passos”, afirma Muchnick.
As grandes redes de alimentação também estão tentando oferecer alternativas alimentares. O fast food americano McDonald’s já criou um lanche vegetariano, com queijo coalho no lugar do hambúrguer, e está testando um nugget vegano, feito de grão-de-bico, milho e batata.
A NotCo afirma já ter tentado trabalhar com gigantes alimentícias, sem sucesso, e ter recebido ofertas de compra de sua tecnologia. “As grandes companhias estão em um impasse. Se a Kraft-Heinz lançasse uma maionese vegana, por exemplo, as pessoas ainda iriam associar o condimento a uma empresa de comida processada. Ao mesmo tempo, não usar uma marca com décadas de história em seu novo produto parece ilógico”, analisa o CEO da NotCo.
A NotCo possui um algoritmo por trás de seus alimentos à base de plantas. Giuseppe, o robô, analisa alimentos em nível estrutural e cruza informações de tabelas nutricionais, revistas científicas e os próprios testes em laboratório da startup chilena. Ao usar as informações corretas, replica sabores, texturas e consistências vistos nos produtos de origem animal.
Há muito material para ser usado: o mundo possui 300 mil espécies de plantas comestíveis, mas só consumimos 200 delas. “Por exemplo: o leite vem das plantas, na verdade, porque é isso que usamos para alimentar as vacas. Nosso sistema vê ligações que humanos não enxergariam e tira o intermediário dessa cadeia de produção, que é o animal”, explica Zamora.
Com a variedade de combinações, a não-maionese consegue ter gosto de maionese usando óleo de canola, grão-de-bico, sementes de mostarda, vinagre de uva, suco de limão, açúcar mascavo, pimenta branca e alho em pó. Ao mesmo tempo, a empresa diz usar 83% menos água e emitir 37% menos gás carbônico em sua produção em relação ao processamento de uma maionese comum.
A não-maionese da NotCo chegou aos mercados chilenos em março de 2017, pela rede de supermercados Jumbo. Depois, foi às prateleiras da concorrente Walmart. Até hoje, a startup vendeu mais de um milhão de não-maioneses no Chile, em 1.000 pontos de venda. Possui 10% de participação de mercado no setor chileno de maioneses e acredita que pode dobrar o market share nos próximos anos.
Na apresentação dos produtos à imprensa, as maiores surpresas anotadas por EXAME estão nas réplicas de hambúrguer e de queijo da NotCo: o primeiro mantém um gosto de grelha, enquanto o segundo tem o sabor forte de um queijo rico em gordura animal. O não-chocolate com avelã da startup possui um sabor um pouco menos doce e até melhor do que o da marca italiana Ferrrero, criadora da Nutella. Já a não-maionese, o não-leite e o não-sorvete são um pouco mais leves e líquidos do que os concorrentes industrializados, sendo similares aos produtos artesanais, como gelatos italianos. A textura pode não agradar quem está acostumado a produtos com consistência gordurosa e pesada, e o não-sorvete talvez seja doce demais.
Surpreendentemente, o público da NotCo não é o nicho crescente de veganos -- nove a cada dez clientes da empresa comem produtos derivados de animais e o cliente mais comum é de classe média. “Colocamos nosso produto na categoria 'premium acessível'. Quem procura maionese no atacado não é nosso público, mas ainda precisamos ser mainstream para termos o impacto que desejamos. Não adianta querer vender uma supercomida vegana de nicho, que faça bem ao consumidor e ao meio ambiente, se ela não for saborosa a ponto de ter adoção generalizada”, afirma Muchnick.
A NotCo começou com um investimento de 250 mil dólares dos três fundadores. No final de 2017, obteve um investimento de 3 milhões de dólares do fundo KaszeK Ventures, criado pelos fundadores do marketplace Mercado Livre.
Neste mês, conseguiram um série B de mais 30 milhões de dólares. O aporte foi liderado pelo fundo The Craftory. Com sede em Londres (Reino Unido) e São Francisco (Estados Unidos), a instituição financeira possui 300 milhões de dólares e é focada em investimentos de estágio inicial em marcas de consumo de grande impacto. Outros investidores incluem o fundo IndieBio e o Bezos Expeditions, family office do criador da Amazon (e atual homem mais rico do mundo) Jeff Bezos.
“Bezos trouxe a inteligência artificial para o varejo online, e acredito que é por isso que ele vê potencial em nossa solução e uma sinergia com o grupo Amazon”, diz Pichara. A gigante do comércio eletrônico comprou a rede de supermercados com alimentos saudáveis Whole Foods em junho de 2017 e os fundadores chilenos esperam em breve uma entrada dos produtos da NotCo em tais unidades. Muchnick destaca a equipe, a execução com recursos escassos e a ambição como pontos adicionais para a obtenção do novo aporte.
O dinheiro será usado principalmente para o desenvolvimento das novas verticais e para a expansão internacional. Os lançamentos mais próximos são o não-leite, o não-sorvete e o não-queijo, mas a NotCo já testa seus hambúrgueres em uma lanchonete chilena.
Geograficamente, o próximo alvo de expansão é o Brasil. A NotCo deve chegar por aqui no dia 15 de abril, vendendo não-maionese em 190 lojas do Grupo Pão de Açúcar espalhadas pelo país. O não-leite deve ser lançado em dois meses e o não-sorvete ficará para agosto. A não-maionese custará "a partir de 10 reais" por aqui, em uma embalagem de 350 gramas.
Até 2020, o Brasil se tornará o maior mercado da NotCo. Dois dos 70 funcionários da equipe estão no país. A startup espera firmar parcerias e produzir suas não-comidas localmente, com uma indústria próxima à cidade de São Paulo.
É um esforço necessário: um dos maiores desafios da empresa é aumentar a vida útil de seus produtos nas prateleiras. A não-maionese possui validade de oito meses, se permanecer fechada e bem armazenada. Mais um desafio será integrar tais produtos com o delivery de restaurantes e supermercados, contornando o tempo fora da geladeira e o agitamento do produto durante o trajeto em motocicletas.
Ainda neste ano, os próximos destinos da NotCo serão Argentina em México. Em 2020, será a vez dos Estados Unidos. O primeiro cliente da startup chilena por lá é a gigante de tecnologia Google, em acordo de food service já firmado.
Diante dos planos ambiciosos, a NotCo espera aumentar seu tamanho em 10 vezes neste ano, na comparação com 2018. No ano passado, expandiu seis vezes em relação a 2017. A startup não abre números absolutos de receita. A NotCo ainda não olha para o ponto de equilíbrio, diante do apoio de Bezos. Afinal, ele é o empresário que esperou anos até ver os lucros da Amazon. Mas os chilenos também não pretendem deixar o resultado no azul de lado. “Queremos ser competitivos, mas também sustentáveis financeiramente. Bezos não olha muito para os lucros, mas precisamos mostrar aumento na nossa participação de mercado e impactos em longo prazo”, diz Muchnick.
Para dar essas boas notícias, a NotCo precisa ser pop -- e já está anotando os conselhos da Nike.