Um recorde incômodo na Vale
A greve dos mineiros da operação da Vale no Canadá acaba de completar nove meses - a mais longa da história da empresa - e já custou algo em torno de 1 bilhão de reais
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h10.
O filme A Queda - Os Últimos Dias de Hitler se tornou um clássico na internet por servir como base para dezenas de paródias. Uma das mais recentes é um tanto desconfortável para Roger Agnelli, presidente da Vale. A cena em que o ditador explode em fúria diante da derrota iminente ganhou legendas simulando o que estaria dizendo Agnelli sobre a longa greve dos funcionários de suas minas de níquel no Canadá, adquiridas com a compra da Inco em 2006. "Quem esses canadenses pensam que são? Ponham esses fornos para funcionar! Quero fumaça saindo daquelas chaminés!", diz o Fürher em sua versão executivo brasileiro. Apesar de não ser exatamente um sucesso de público - até o fechamento desta edição, o vídeo tinha menos de 16 000 acessos -, a paródia sindicalista da cena hitleriana diz muito sobre o que a greve representa para a empresa. No último dia 6 de abril, os 3 000 mineiros da região de Ontário, na costa sudeste do Canadá, completaram 262 dias de paralisação - a mais longa dos 109 anos de história da Inco e uma das raras greves já enfrentadas pela Vale. (Segundo fontes próximas ao conflito, Agnelli e seus executivos imaginavam inicialmente que a situação estivesse resolvida em, no máximo, três meses.) Restrito à produção de níquel (das minas paradas vêm cerca de 3% do faturamento total da Vale), o movimento grevista tem chamado a atenção tanto pelos prejuízos que já provocou quanto pela natureza do enfrentamento. Acusações de má-fé entre a empresa e os grevistas, processos da Vale contra os funcionários e a proliferação de vídeos e blogs em que ambos se acusam de intransigência e de arrogância dão o tom da disputa, que está se transformando no maior teste para a mineradora brasileira desde a aquisição da Inco. "A questão é se o levante canadense será uma mostra do que está por vir em outras partes do mundo, à medida que as empresas brasileiras aumentam sua musculatura fora do país", escreveu recentemente o jornal britânico Financial Times.
O impasse gira basicamente em torno de dois pontos. O primeiro é a mudança no planos de pensão. Hoje os funcionários da Inco contam com o sistema de benefício definido, no qual preestabelecem o valor que será recebido na aposentadoria. A ideia da Vale é mudar para o plano de contribuição definida, em que o valor da aposentadoria é calculado com base nas contribuições dos empregados, utilizado pela companhia em todas as demais operações. O outro se refere à adoção de um novo sistema de remuneração variável, que considere a performance individual e não apenas a variação do preço do minério. A proposta da Vale, é limitar o chamado "bônus do níquel" a, no máximo, 20% dos ganhos extras - no auge da bolha, em 2007, esses ganhos chegaram a quase 60% do salário. "Do jeito que está, basta o níquel subir que todo mundo ganha, não existe compromisso de geração de eficiência de cada um", diz o brasileiro Tito Martins, presidente da subsidiária canadense. Os mineiros, porém, não querem ouvir falar de mudança. (Esse, aliás, tem sido um comportamento comum entre os trabalhadores de empresas internacionais compradas por companhias brasileiras. A Gerdau teve de lidar com uma longa greve em sua operação americana em 2005. A ABInBev enfrenta resistências enormes na Bélgica e nos Estados Unidos.) O sindicato abandonou a negociação e partiu para a greve assim que o contrato coletivo de trabalho terminou, em 13 de julho do ano passado. "Não havia real disposição da empresa de chegar a um acordo", diz Leo Gerard, presidente do United Steelworkers (USW), que representa os grevistas. "Eles acham que basta dizer o que querem e nós faremos. Não é assim que funciona", diz Gerard. "Nós apresentamos três propostas diferentes, e eles, nenhuma", diz Martins, da Vale. Inco.
Para driblar a paralisação, nos últimos meses a Inco treinou 1 200 funcionários técnicos e administrativos e contratou dezenas de terceirizados. Assim, conseguiu manter as minas operando com pelo menos 50% de sua capacidade. Com o acirramento do confronto, a empresa também demitiu dez grevistas e processou outros 15 por vandalismo, ameaça de morte e linchamento. Num artigo em defesa dos grevistas, o colunista Leo Hindery Jr., do blog americano The Huffington Post, afirmou que a paralisação é resultado da "ganância da Vale e da obstinação de Roger Agnelli". Para John Rodriguez, prefeito de Sudbury, cidade de 160 000 habitantes que reúne as principais minas e também o maior número de grevistas, os dois lados estão inexplicavelmente irredutíveis. "A Vale não ouve o que o sindicato diz, o sindicato não confia na empresa, e, enquanto for assim, não há negociação possível."
Para analistas e executivos ouvidos por EXAME, o que está em jogo não é só o bônus do níquel ou o fundo de pensão mas também a capacidade da Vale de administrar diferenças, reduzir conflitos e manter a sustentabilidade de seus negócios em escala global. Ao longo dos últimos anos, a companhia mostrou não ter medo de enfrentamentos. "Somos uma companhia com atitude", disse Agnelli ao Financial Times em março. Essa atitude, pelo menos no Canadá, está cobrando um preço alto. A Vale já declarou perdas de pelo menos 1 bilhão de reais nos seis últimos meses de 2009 - equivalente a 10% do lucro no ano e 2% do faturamento, de 49,8 bilhões de reais -, dinheiro gasto na compra de níquel de terceiros para cumprir os contratos, na manutenção e na operação das máquinas. A participação da empresa nas vendas mundiais, que era de 20% em 2008, caiu para 17% em 2009. Para o USW, o movimento também não é barato. O sindicato já desembolsou mais de 21 milhões de dólares em auxílios- greve de 800 dólares ao mês e financiou a viagem de seus líderes para 20 países onde a Vale mantém operações, incluindo o Brasil. Dono de um fundo de greve de 125 milhões de dólares, o sindicato diz que pode sustentar a greve o quanto for necessário. Na opinião do prefeito de Sudbury, o que falta são os líderes - Agnelli ou Martins, do lado da Vale, e Gerard, do USW, de outro - conversarem diretamente. "O fato de a negociação ter dependido até agora de consultores e advogados afastou ainda mais a possibilidade de um acordo", diz Rodriguez. Nas últimas semanas, a Inco conseguiu vencer uma batalha ao fechar um acordo com 300 trabalhadores da área técnica e administrativa, que aceitaram um aumento programado de salário e o plano de previdência de contribuição definida. "Para a Vale, vencer no Canadá é uma questão de mostrar quem de fato manda. A questão é até que ponto isso é melhor para os negócios do que chegar a um meio-termo com os sindicalistas", diz um ex-executivo da empresa.