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O publicitário que irritou as mulheres

David Cohen  “Eu sou um quebrador de regras serial. Quanto mais regras infringi na vida, mais sucesso eu tive”, escreveu o publicitário Kevin Roberts no livro 64 Shots: Leadership in a Crazy World (64 tiros: liderança num mundo louco), lançado este ano nos Estados Unidos. A última regra que ele quebrou, porém, não lhe trouxe […]

KEVIN ROBERTS: ele deixou a empresa depois de dizer que as mulheres não assumem mais cargos de chefia porque não têm “ambição vertical” / Divulgação

KEVIN ROBERTS: ele deixou a empresa depois de dizer que as mulheres não assumem mais cargos de chefia porque não têm “ambição vertical” / Divulgação

DR

Da Redação

Publicado em 16 de agosto de 2016 às 15h58.

Última atualização em 22 de junho de 2017 às 18h15.

David Cohen 

“Eu sou um quebrador de regras serial. Quanto mais regras infringi na vida, mais sucesso eu tive”, escreveu o publicitário Kevin Roberts no livro 64 Shots: Leadership in a Crazy World (64 tiros: liderança num mundo louco), lançado este ano nos Estados Unidos.

A última regra que ele quebrou, porém, não lhe trouxe muito sucesso. No início do mês, Roberts foi afastado dos cargos de presidente do conselho da agência de publicidade Saatchi & Saatchi e de treinador chefe do grupo Publicis, que controla a agência. Seu pecado foi ter menosprezado o peso da discriminação de gênero no mercado publicitário – afirmando que o debate sobre diversidade estava superado e que as mulheres não assumem mais cargos de chefia porque não têm “ambição vertical”.

O caso de Roberts é exemplar porque seu comentário não foi de misoginia explícita. Ele não disse que as mulheres são menos capazes. O que afirmou, em entrevista ao site Business Insider, foi que não se preocupava com a falta de mulheres em cargos de liderança “porque elas estão muito felizes, são muito bem-sucedidas e fazem um ótimo trabalho”.
O motivo para elas não alcançarem os mais altos postos, segundo ele, é que não só as mulheres, mas também os homens das novas gerações não estariam mais aceitando “nossas bobagens antiquadas”, exibindo uma ambição “intrínseca, circular”, de ser feliz – o que poderia ser incompatível com gerenciar equipes.

Em suma: Roberts menosprezou a campanha feminista por políticas deliberadas de inclusão (queixou-se de que esse discurso estava “por todo lado”) e atribuiu a exígua participação de mulheres em cargos de chefia na publicidade, basicamente, à falta de vontade delas próprias.

É até possível que a vontade de galgar postos mais altos seja mais proeminente nos homens. Uma pesquisa feita na Universidade Harvard no ano passado, com 4.000 homens e mulheres, apontou que as mulheres têm mais objetivos de vida, mas um número menor deles está ligado a poder. Elas avaliam um posto de comando como menos desejável que os homens, e preveem mais consequências negativas de adquirir poder.

Mas isso pode ser efeito do próprio preconceito. Segundo uma pesquisa da professora britânica Michelle Ryan, da Universidade de Exeter, muitas mulheres são tão ambiciosas quanto os homens no início da carreira – só que ficam tão cansadas de lutar contra múltiplas barreiras ao sucesso que sua ambição desvanece.

O resultado dessas barreiras, em publicidade, é que os CEOs de todas as seis principais agências dos Estados Unidos são homens. As mulheres ocupam 46,4% dos cargos na publicidade, mas só 11,5% dos postos de diretor criativo, segundo uma pesquisa da organização Conferência 3%, criada em 2010 justamente para lutar pela igualdade de representação de gêneros na indústria. (O nome do grupo é uma alusão à participação das mulheres em cargos de chefia, que era de 3% em 2010; a taxa quase quadruplicou, portanto, em seis anos, mas ainda falta muito para algo próximo da paridade.)

“Fracasse rápido”

Em uma entrevista em 2004 ao jornal britânico Financial Times, Roberts disse que “nada é politicamente incorreto demais na Saatchi, porque nós somos rebeldes e vagabundos, este é o nosso DNA, nossa herança, nosso legado”. Estava enganado.

No atual clima do debate feminista, especialmente nos Estados Unidos, a batalha não é mais pelo mero direito de ocupar cargos. É pela adoção de medidas corretivas, como a proposta de cotas para mulheres ou minorias nos conselhos das empresas.

Um dia depois da entrevista politicamente incorreta veio uma enxurrada de críticas, e o grupo Publicis o colocou sob licença. Na semana seguinte, o próprio Roberts anunciou sua renúncia, a valer a partir do início de setembro. Não chega a ser uma demissão. Depois de 17 anos como CEO da Saatchi & Saatchi, até 2014, Roberts – cuja carreira incluiu postos de prestígio na Mary Quant Cosmetics, na Gillette, na Procter & Gamble e na Pepsi Cola – já tinha aposentadoria prevista para maio do ano que vem, quando terá 67 anos.

Não está claro se o revés afetará o bolso de Roberts. Em 2015, ele ganhou cerca de 3,5 milhões de dólares, contando salário e bônus. Seu contrato prevê um pacote de 120% do total de sua compensação anual, mais o limite superior de sua faixa de bônus e o equivalente em dinheiro dos seus benefícios – a não ser em caso de “grave falha de conduta”. Mesmo se não perder dinheiro, o deslize lhe custou vários pontos.

“Promover a igualdade de gêneros começa no topo e o grupo não vai tolerar nenhum porta-voz da nossa organização que não valorize a importância da inclusão”, disse o líder do grupo Publicis, com sede na França, Maurice Lévy.

Roberts, em especial, não podia ser desculpado. Seu cargo como treinador chefe lhe conferia a missão de inspirar e motivar os líderes do grupo. Ele viajava o mundo dando conselhos às marcas, a equipes esportivas, estudantes e políticos sobre como ser um líder melhor. Ignorar o deslize faria o grupo inteiro ser visto como insensível à disparidade entre gêneros. No caso de uma agência de publicidade, isso poderia significar a perda de contratos.

Lévy também mandou uma mensagem as todos os funcionários do grupo reiterando sua política de não tolerância a qualquer “comportamento ou comentário contrário ao espírito do Grupo Publicis e sua celebração da diferença”.

“Fracasse rápido, conserte rápido, aprenda rápido é uma máxima que eu sempre advoguei”, disse Roberts em um comunicado separado para a firma. “Ao discutir prioridades de carreira e novas formas de equilíbrio entre a vida e o trabalho com a Business Insider, eu fracassei excepcionalmente rápido.”

O caso da Thompson

Roberts não é o único publicitário ligado a comentários machistas, é claro. O próprio Maurice Lévy, seu chefe, deu uma escorregada em maio, quando deu pouca importância ao escândalo de assédio sexual que derrubou o CEO da J. Walter Thompson, uma agência do grupo rival WPP.

Em março, o CEO da Thompson, Gustavo Martinez, que estava no cargo desde 2015, foi obrigado a renunciar, depois que a chefe de comunicações da agência, Erin Johnson, entrou com uma ação na justiça contra ele, acusando-o de constantemente fazer declarações insultuosas às mulheres, a negros e judeus.

Segundo Erin, Martinez a chamava de “minha mulher do trabalho” e certa vez colocou a mão em seu pescoço dizendo que iria levá-la ao banheiro para estuprá-la. Também costumava se referir a negros como macacos e disse não gostar de morar no condado de Westchester, em Nova York, porque odiava “aqueles malditos judeus”. Martinez nega as acusações, mas foi afastado assim mesmo – e substituído por uma mulher, Tamara Ingram.

Numa conferência em Miami, Lévy afirmou não acreditar que o que aconteceu na Thompson seja um exemplo do que acontece na indústria. “Foi um engano, um enorme engano, mas não é representativo da indústria”, afirmou – para desagrado das ativistas que enxergam o caso como bastante representativo do clima geral da publicidade.

O caso de Roberts é bem menos dramático que o de Martinez. E demonstra que as feministas não estão dispostas a aturar nenhuma incorreção política. Se no Brasil a atriz e escritora Fernanda Torres se sentiu impelida a se desculpar por um artigo em que considerava a batalha feminista um pouco exagerada e se dizia a favor do fiu-fiu quando uma mulher passa, nos Estados Unidos os ânimos são muito mais acirrados.

Kat Gordon, fundadora da Conferência 3%, disse esperar que Roberts não receba um “paraquedas dourado” (o jargão para um pacote generoso quando um executivo cai), porque “que tipo de mensagem isso enviaria?”. O mais provável é que Roberts receba sua compensação prevista em contrato, mas seja marcado pela controvérsia pelo resto da vida – a julgar pelo exemplo de Lawrence Summers.

Economista e professor de Harvard, Summers era presidente da universidade em 2005, quando proferiu um discurso sobre as diferenças de gênero nas ciências e na engenharia. Sua hipótese, “que ele gostaria que estivesse errada”, era que havia mais variação na inteligência dos homens do que nas das mulheres. Isso explicaria que os homens ocupam os extremos – mais deles são idiotas, mais são geniais. E a concorrência exacerbada pelo talento na ponta genial seria a principal causa de haver mais homens de destaque nesses campos.

O discurso levou a uma intensa campanha negativa, dentro e fora de Harvard, que colaborou para sua renúncia no ano seguinte. Após um ano sabático, sua carreira continuou, e Summers teve papel fundamental na equipe do presidente Barack Obama responsável por reativar a economia após a crise de 2008.

Em 2013, ele foi cotado para o cargo de presidente do Fed, o banco central americano. Não foram seus comentários sobre as mulheres, e sim sua inclinação pelo mercado desregulado, que acabaram fazendo Obama preteri-lo. A escolhida foi Janet Yellen, a primeira mulher a chefiar o banco central americano.

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