Números fantásticos e censuras assustadoras: a saga da “Netflix da China”
A iQiyi conseguiu sobreviver ao seu IPO, realizado há poucos meses. Mas não é tão fácil produzir conteúdo original na República Popular da China
Mariana Fonseca
Publicado em 28 de julho de 2018 às 07h00.
Última atualização em 28 de julho de 2018 às 07h00.
São Paulo - É fácil enumerar quem está surfando a onda do conteúdo original, em uma era em que a paciência com a programação televisiva comum já se esgotou. Amazon, HBO e Netflix são os principais exemplos. Outros tantos players querem correr atrás dessas gigantes, da tradicional Disney até a brasileira PlayKids.
Costumamos nos esquecer, porém, das produtoras que atendem simplesmente metade do planeta Terra. A iQiyi, espécie de “Netflix da China ”, tem números fantásticos de usuários e já começa a desenhar uma expansão global, iniciada com sua oferta inicial pública de ações nos Estados Unidos há quatro meses. Enquanto nada em um oceano chinês azul, sem players ocidentais à vista, a startup tem que conviver com assustadoras censuras em sua terra natal.
O spin-off que virou série
A iQiyi nasceu em 2010, como um spin-off da gigante chinesa de tecnologia Baidu, e apresenta hoje números dignos de uma série de sucesso. Segundo o TechCrunch, a plataforma de streaming de conteúdos audiovisuais acumula 421 milhões de usuários mensais (e 126 milhões a acessam diariamente).
No seu catálogo de séries originais, a iQiyi acumula desde as séries Rap of China, Street Dance of China e Hot Blood Dance Crew até os dramas detetivescos Burning Ice e Tientsin Mystic, que entrarão para o catálogo da Netflix neste ano. A iQiyi também se associou a entidades conhecidas do cinema, como o Festival de Filmes de Veneza.
Em março deste ano, a iQiyi fez sua estreia na NASDAQ, o mercado de ações americano. A plataforma de streaming levantou 2,25 bilhões de dólares (na cotação atual, cerca de 8,3 bilhões de reais), com 125 milhões de ações vendidas a um preço unitária de 18 dólares (56 reais). Após um pico de 46,23 dólares por ação, a iQiyi passou este último mês com ações na casa dos 30 dólares - ainda bem acima do seu valor de estreia na bolsa americana.
Ao mesmo tempo que acumula ganhos financeiros, a iQiyi luta contra a interferência da República Popular da China. Suas séries sobre rap se tornaram muito populares, mas causaram desconforto diante da proibição de veiculação da cultura hip-hop e de tatuagens na televisão chinesa.
Outras séries da iQiyi, como Evil Minds e The Lost Tomb, foram censuradas. Segundo o ChinaFilmInsider, a administradora estatal de mídia, publicações, rádio, filme e televisão possui desde 2009 um guia que proíbe conteúdos que sejam “supersticiosos”, “afrontadores à tradição cultural chinesa” e “proibidos por leis e regulações relacionadas”. O que significa, por exemplo, séries que abordam relacionamentos LGBT e trocas de gênero.
Um oceano azul para as chinesas
Os maiores concorrentes da iQiyi são outras spin-offs de gigantes: a Youku, do Alibaba, com 500 milhões de usuários cadastrados, entre planos gratuitos e pagos; e a Tencent Video, com 137 milhões de usuários diários.
Nessas terras chinesas, Amazon e Netflix não são páreo - e não estamos falando de problemas de capitalização. Com dificuldades regulatórias para entrar na República Popular da China, incluindo a necessidade de censura por reguladores estatais antes da publicação de cada episódio, a Netflix se rendeu aos encantos da iQiyi e licenciou suas séries ao player local no ano passado. Algumas séries distribuídas por meio da plataforma de streaming chinesa foram Black Mirror, Bojack Horseman e Stranger Things.
“A China é um mercado importante por razões óbvias; e, também por razões óbvias, é um mercado desafiador”, afirmou Robert Roy, vice-presidente de aquisição de conteúdo da Netflix, ao veículo Hollywood Reporter. Reed Hastings, CEO da Netfix, não vê a entrada da gigante no mercado chinês em curto prazo.
As empresas chinesas, mesmo em tempos de polêmicas entre Donald Trump e Xi Jinping, possuem uma entrada muito mais livre no mercado ocidental - e querem aproveitar a democracia. No final do ano passado, a China criou sua própria aliança para exportação de dramas de televisão para plataformas de mídia internacionais. Essa estratégia já foi adotada há alguns anos em outros países asiáticos, como a Coreia do Sul e sua “onda de conteúdo cultural” ( hallyu ). Se Burning Ice e Tientsin Mystic farão tanto sucesso quanto Game of Thrones ou The Crown no catálogo da Netflix, só o tempo e uma bela estratégia dirão.