Margrethe Vestager, presidente da divisão antitruste da Comissão Europeia (nrkbeta/Wikimedia Commons)
Da Redação
Publicado em 5 de janeiro de 2020 às 08h00.
Última atualização em 5 de janeiro de 2020 às 09h00.
Bruxelas – Margrethe Vestager passou os últimos cinco anos desenvolvendo sua merecida reputação de maior inspetora mundial da indústria de tecnologia. De seu posto de supervisora das regras de concorrência da Europa, ela multou o Google em mais de US$ 9 bilhões por infringir leis antitruste e forçou a Apple a pagar cerca de US$ 14,5 bilhões por evasão fiscal.
Agora, ela diz que esse trabalho, que a transformou em uma heroína entre os críticos da tecnologia, não foi suficiente. As maiores empresas de tecnologia continuam a testar os limites das leis antitruste, comportam-se de forma antiética e desafiam a intervenção do governo, afirmou.
Mas ela acredita que o crescente ceticismo do público em relação à tecnologia lhe deu uma oportunidade para uma abordagem mais dura.
"Nos últimos cinco anos, alguns dos lados mais sombrios das tecnologias digitais se tornaram visíveis", disse ela em uma longa entrevista.
Portanto, Vestager, ex-legisladora dinamarquesa de 51 anos, está aumentando sua aposta. Ela assinou um raro segundo mandato de cinco anos como chefe da divisão antitruste da Comissão Europeia e ampliou sua responsabilidade, assumindo a política digital em todo o bloco de 28 países.
Com o novo poder, ela delineou uma agenda que tem os gigantes da tecnologia como alvo direto. Está ponderando se deve remover algumas proteções que eximem grandes plataformas da internet da responsabilidade pelo conteúdo postado pelos usuários. E também trabalha em políticas para fazer com que as empresas paguem mais impostos na Europa, além de investigar como as empresas usam dados para afastar a concorrência.
Vestager se comprometeu a criar os primeiros regulamentos mundiais para a inteligência artificial e pediu a concessão de direitos de negociação coletiva aos chamados trabalhadores da economia gig, aqueles que vivem de "bicos", como os motoristas da Uber. Além disso tudo, há uma investigação sobre o uso que a Amazon faz dos dados para levar vantagem sobre os concorrentes e uma análise das acusações de práticas comerciais desleais do Facebook e da Apple.
"Ela faz todas essas coisas, mas ainda não conseguiu tudo que queria. Agora poderá ser mais agressiva", disse David Balto, ex-advogado da divisão antitruste do Departamento de Justiça dos Estados Unidos, cujos clientes agora incluem grandes empresas de tecnologia.
A agenda de Vestager, porém, mais parece uma lista de desejos. Seu sucesso dependerá do apoio e da colaboração de outras autoridades europeias que já enfrentam desafios, como a saída do Reino Unido da União Europeia, a ascensão do populismo e o desgaste das relações diplomáticas com os Estados Unidos.
Isso também vai exigir uma resistência implacável às empresas de tecnologia. "Uma das coisas importantes é, obviamente, priorizar, porque, caso contrário, ficaremos no vai e vem por muito tempo", disse Vestager.
Pessoalmente, os modos de Vestager desafiam sua reputação de durona. Ela é incrivelmente educada, recebendo convidados, oferecendo chá e se desculpando por um resfriado persistente. (Ela garantiu a todos que havia acabado de lavar as mãos.)
Entrevistá-la pode ser um desafio, porque tende a ser prolixa e raramente se desvia de assuntos muitas vezes repetidos. Política habilidosa, projeta modéstia sem exatamente se afastar dos holofotes. Uma placa no corredor de seu escritório diz, em dinamarquês: "Vestager Street".
Ela também é rápida em ignorar as críticas, inclusive as que vêm de inúmeros executivos de tecnologia e do presidente Donald Trump, que dizem que ela está sendo injusta com as empresas de tecnologia americanas.
Tim Cook, diretor executivo da Apple, chamou a multa contra sua empresa em 2016, por driblar os impostos irlandeses, de "porcaria política total". O Google está apelando de suas três decisões contra a empresa.
"Ela odeia os Estados Unidos talvez mais do que qualquer pessoa que já conheci", disse Trump em uma entrevista à televisão em junho.
Vestager finge não se lembrar do comentário do presidente. "Como sei do relacionamento muito bom que tenho com os Estados Unidos, então ele só deve encontrar pessoas que realmente gostam dos EUA, se sou a única que não gosta", disse ela.
As autoridades americanas começam a compartilhar seu ceticismo tecnológico. Investigadores federais, estaduais e do Congresso estão examinando a indústria de tecnologia em relação a práticas comerciais desleais. Vestager disse que viu oportunidades de colaborar, mas estava esperando para ver como as investigações se desenrolariam. "Obviamente, é muito interessante ver o que virá disso", disse ela.
À medida que os Estados Unidos começam a investigar a Amazon, a Apple, o Facebook e o Google, algumas autoridades americanas estão tentando aprender com os esforços da Europa. As investigações do Google e de outros levaram anos para ser concluídas, dando às empresas tempo extra para solidificar seu domínio.
E, uma vez que os inquéritos foram concluídos, disseram os críticos, as penalidades se concentraram nas grandes multas que as empresas poderiam facilmente pagar, em vez de fazer cumprir as mudanças estruturais que restaurariam a concorrência.
Luther Lowe, chefe de políticas públicas do Yelp, site de avaliações que é um crítico frequente do comportamento do Google, elogiou os esforços de Vestager, mas disse que empresas como a sua "ainda não viram um pingo de alívio prático, apesar de terem teoricamente vencido". Vestager precisa usar todos os poderes à sua disposição, disse ele, "ou receber novos".
Ela concorda que algumas das críticas foram válidas. Está tomando medidas para acelerar as investigações e está aplicando uma regra raramente usada, conhecida como "medidas interinas", que agem como uma ordem de interrupção, para que as empresas parem de agir de certa maneira enquanto uma investigação é conduzida.
Ela vai desempenhar um papel de liderança no debate da União Europeia sobre uma nova Lei dos Serviços Digitais, que poderá trazer reformas radicais no funcionamento da internet, incluindo a obrigatoriedade de as plataformas on-line eliminarem conteúdos ilegais, sob o risco de multas e outras sanções. O Facebook, disse ela, precisa ser mais rápido para impedir a propagação de informações falsas e enganosas, material violento e discurso de ódio.
"Você tem de acabar com isso, porque essas coisas se espalham como um vírus. Mas, se não for rápido o suficiente, é claro, acabaremos tendo de regulamentar", disse ela.
E ela continua focada em saber se as maiores companhias de tecnologia abusaram das empresas que dependem delas para alcançar os clientes. A Amazon está sendo investigada por prejudicar vendedores terceirizados que oferecem produtos semelhantes aos que ela vende. A Apple está sendo questionada sobre acusações de que usa a App Store para prejudicar rivais como o Spotify.
"Algumas dessas plataformas têm o papel tanto de jogador quanto de árbitro, e como isso pode ser justo?", questionou ela. "Você nunca aceitaria um jogo de futebol em que uma única equipe também fosse o árbitro."
Na Europa, está em curso um debate mais amplo sobre a falta de gigantes tecnológicos locais. O presidente Emmanuel Macron, da França, pediu mais apoio governamental às empresas europeias. Ursula von der Leyen, a nova líder da Comissão Europeia, que nomeou Vestager, pediu que a Europa alcance a "soberania tecnológica".
As empresas que enfrentam o escrutínio de Vestager estão alertando sobre a regulamentação, que vai longe demais.
Christian Borggreen, vice-presidente da Associação da Indústria de Computadores e Comunicação, em Bruxelas, um grupo comercial que representa Apple, Google e outras empresas, advertiu que novas leis podem colocar a Europa em desvantagem.
"Esperamos que a futura legislação da UE seja baseada em evidências e nunca se torne uma desculpa para o protecionismo", disse ele.
Vestager afirmou que as empresas europeias devem competir com base em seus méritos.
"Uma das principais razões pelas quais as empresas de tecnologia dos EUA são populares na Europa é que seus produtos são bons", disse ela. Seu trabalho, acrescentou, tem sido intervir quando as empresas "dão um jeitinho".
Vestager disse que a Europa tem uma visão diferente da tecnologia em comparação com as políticas abertas dos Estados Unidos e com o controle do governo na China. Os europeus, disse ela, precisam criar sua própria abordagem.
"As forças de mercado são mais do que bem-vindas, mas não permitiremos que tenham a palavra final. Os mercados não são perfeitos."