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Da Redação
Publicado em 14 de outubro de 2010 às 15h11.
Leia pequenos trechos traduzidos do livro The wisdom of crowds ("A sabedoria das multidões", ainda sem versão em português), do jornalista americano James Surowiecki.
Introdução Parte I
Um dia no outono de 1906, o cientista britânico Francis Galton saiu de casa, na cidade de Plymouth, e foi para uma feira rural. Galton tinha oitenta e cinco anos e a idade começava a pesar, mas ainda estava cheio daquela curiosidade que lhe valera a notoriedade _ e a fama _ por seu trabalho em estatísticas e ciência da hereditariedade. Nesse dia em particular, o que atiçava a curiosidade de Galton tinha a ver com animais.
O destino de Galton era a West of England Fat Stock and Poultry Exhibition, uma feira regional em que os criadores locais de aves e animais de engorda e os moradores da cidade se reuniam para elogiar a qualidade dos bois, carneiros, frangos, cavalos e porcos uns dos outros. Passear pelas filas de stands e examinar os cavalos de carga e os porcos premiados pode parecer uma forma estranha de um cientista (em particular, um cientista idoso) passar a tarde, mas havia uma certa lógica no programa. Galton era um homem obcecado com duas coisas: a medida das qualidades físicas e mentais, e a propagação da espécie. E o que é, no fim das contas, uma exposição de animais a não ser uma grande exibição dos efeitos da boa e da má procriação?
A procriação era importante para Galton porque ele acreditava que apenas um pequeno número de pessoas tem as características necessárias para manter saudáveis as sociedades. De fato, havia dedicado grande parte de sua carreira à medição dessas características, com o objetivo de provar que a grande maioria das pessoas não tem essas características. Na International Exhibition de 1884, em Londres, por exemplo, ele havia montado um "laboratório antropomórfico", onde usava dispositivos criados por ele mesmo para testar os visitantes da exposição quanto a, entre outras coisas, "acuidade visual e auditiva, percepção das cores, julgamento visual [e] tempo de reação". Suas experiências deixaram Galton com pouca fé na inteligência da pessoa média, já que "a estupidez e cabeça torta de tantos homens e mulheres é tão grande que é difícil acreditar". Apenas se o poder e o controle fossem mantidos nas mãos dos poucos selecionados e de boa linhagem a sociedade poderia permanecer saudável e forte, acreditava Galton.
Enquanto ele caminhava pela exposição naquele dia, Galton se deparou com uma competição em que as pessoas tinham que avaliar o peso dos animais. Um boi gordo havia sido escolhido e estava em exibição, e as pessoas que se reuniam ao redor faziam apostas sobre o peso do animal. (Ou melhor, eles apostavam qual seria o peso do boi depois que ele fosse "abatido e limpo". Por seis pence, podia-se comprar um cupom numerado, que deveria ser preenchido com o nome da pessoa, endereço e a estimativa. Os melhores palpites receberiam prêmios.
Oitocentas pessoas tentaram a sorte. Formavam um grupo muito variado. Muitos eram açougueiros ou pecuaristas _ presumivelmente, peritos no julgamento do peso dos animais _, mas também havia muitos que não eram, digamos, conhecedores das questões relativas ao gado. "Muitos leigos competiram", escreveu Galton mais tarde na revista científica Nature, "como funcionários de escritório e outros que não têm conhecimento profundo sobre cavalos, mas que apostam nas corridas, seguindo a orientação dos jornais, amigos e suas próprias fantasias". A analogia com uma democracia, em que pessoas com capacidades e interesses radicalmente diferentes têm um voto cada, imediatamente foi percebida por Galton. "O competidor médio provavelmente tinha a mesma condição de fazer uma estimativa do boi limpo que um eleitor médio de julgar os méritos da maior parte das questões políticas sobre as quais vota", disse.
Galton se interessou em descobrir do que o "eleitor médio" era capaz porque queria provar que o eleitor médio era capaz de muito pouco. Por isso, tornou a competição numa experiência improvisada. Quando a disputa terminou e os prêmios foram entregues, Galton pegou os bilhetes e fez uma série de testes estatísticos com eles. Arranjou os palpites (que totalizaram 787, depois de ter tido que descartar 13 que eram ilegíveis) em ordem decrescente e fez um gráfico com eles para ver se formariam uma curva de Bell. Depois, somou todas as estimativas e calculou a média dos palpites do grupo. Poderia-se dizer que esse número representava a sabedoria coletiva daquela multidão de Plymouth. Se a multidão fosse uma única pessoa, a média seria a sua estimativa sobre o peso do boi.
Galton sem dúvida pensava que o palpite médio ficaria muito distante da realidade. Afinal, a mistura de poucas pessoas muito inteligentes com algumas medíocres e muitas estúpidas provavelmente resultaria, aparentemente, numa resposta final imbecil. Mas Galton estava errado. A multidão havia estimado que o boi, depois de abatido e limpo, pesaria 1.197 libras. Depois de abatido e limpo, o animal pesou 1.198 libras. Ou seja, o julgamento da multidão foi essencialmente perfeito. Talvez a reprodução não tivesse assim tanto significado, no final das contas. "O resultado parece dar mais crédito ao valor de um julgamento democrático do que poderia ser esperado", escreveu posteriormente Galton. Para dizer o mínimo, isto é uma afirmação muito pouco enfática.
Introdução Parte V
Comecei esta introdução com um exemplo de um grupo resolvendo um problema simples: estimar o peso de um boi. Termino com um exemplo de um grupo resolvendo um problema incrivelmente complexo: a localização de um submarino. As diferenças entre os dois casos são imensas. Mas o princípio em cada um é o mesmo.
Em maio de 1968, o submarino americano Scorpion desapareceu no caminho de volta para Newport News, depois de uma viagem pelo Atlântico Norte. A marinha sabia a última localização registrada do navio, mas não tinha a menor idéia do que havia acontecido ao Scorpion e apenas uma noção vaga do quanto poderia ter viajado depois do último contato por rádio. O resultado é que a área em que a marinha iniciou a busca pelo Scorpion era um círculo de vinte milhas de diâmetro e milhares de metros de profundidade. Não dá para imaginar uma tarefa mais difícil. A única solução possível, pode-se pensar, seria localizar três ou quatro dos maiores especialistas em submarinos e correntes oceânicas, perguntar-lhes onde acreditavam que o Scorpion estaria e procurar nesse local. Mas, como contam Sherry Sontag e Christopher Drew em seu livro Blind Mans Bluff, um oficial da marinha chamado John Craven tinha um plano diferente.
Em primeiro lugar, Craven projetou uma série de cenários _ explicações alternativas sobre o que poderia ter acontecido com o Scorpion. Reuniu então uma equipe de homens com conhecimentos muito amplos, entre eles matemáticos, especialistas em submarinos e em salvamentos. Ao invés de pedir que se consultassem uns aos outros para apresentar uma resposta, Craven pediu que cada um apresentasse a sua melhor estimativa sobre a probabilidade de cada um dos cenários. Para manter a questão interessante, os palpites eram apresentados em forma de apostas, e os acertadores ganhariam garrafas de Chivas Regal. Os homens de Craven apostaram, portanto, sobre o por quê de o submarino ter enfrentado dificuldades, sobre sua velocidade ao afundar, sobre a inclinação de sua queda e assim por diante.
Não é necessário dizer que nenhuma dessas informações poderia informar Craven sobre o paradeiro do Scorpion. Mas Craven acreditava que se juntasse as respostas, construiria um quadro composto sobre o naufrágio do Scorpion e acabaria com uma boa idéia do seu paradeiro. E foi isso que ele fez. Pegou todos os palpites e usou uma fórmula conhecida como teorema de Bayes para estimar a localização final do Scorpion. (O teorema de Bayes é uma forma de calcular como nova informação sobre um evento muda suas expectativas pré-existentes sobre a probabilidade do acontecimento.) Quando terminou, Craven tinha o que era, a grosso modo, a estimativa coletiva daquele grupo sobre onde o submarino estava.
A localização a que chegou Craven não era o local escolhido individualmente por nenhum membro do grupo. Ou seja, nenhum integrante do grupo tinha na cabeça um quadro que combinasse com o construído por Craven a partir de informações reunidas de todos eles. A estimativa final foi um genuíno julgamento coletivo feito pelo grupo como um todo, em oposição à representação de um julgamento individual dos mais inteligentes da equipe. Também foi um julgamento genuinamente brilhante. Cinco meses depois do desaparecimento do Scorpion, um navio da marinha o encontrou. Ele estava a 220 jardas de onde o grupo de Craven havia dito que estaria.
O impressionante nessa história é que neste caso o grupo se baseava em dados que representavam quase nada. Na verdade, tratava-se apenas de minúsculos pedaços de dados. Ninguém sabia por que o submarino afundou, ninguém tinha a menor idéia da velocidade em que viajava ou qual a inclinação de sua queda até o fundo do oceano. E, no entanto, apesar de ninguém no grupo saber essas coisas, o grupo como um todo sabia tudo isso.
Tradução de Cecília Gouvêa Dourado