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Um espaço de esperança para sobreviventes do machismo

Uma rede paquistanesa de centros de estética ajudou quase 500 vítimas de ataque com ácido a refazer sua vida após o horror que viveram


	Paquistanesas: uma mulher atacada com ácido pode precisar de mais de 20 cirurgias, disse proprietária de rede de estética
 (Daniel Berehulak/Getty Images)

Paquistanesas: uma mulher atacada com ácido pode precisar de mais de 20 cirurgias, disse proprietária de rede de estética (Daniel Berehulak/Getty Images)

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Da Redação

Publicado em 3 de dezembro de 2013 às 09h15.

Lahore - Um salão de beleza não parece o lugar mais provável para uma sobrevivente de um ataque com ácido, mas uma rede paquistanesa de centros de estética ajudou quase 500 delas a refazer sua vida após o horror que viveram.

"Um dia, há dez anos, chegou ao meu salão uma mulher coberta com uma burca e me perguntou: "A senhora é esteticista? Me ajude?". Quando ela descobriu o rosto eu fiquei horrorizada", lembrou Masarrat Misbah, proprietária de 30 centros de beleza e promotora da Fundação Smile Again (ou Sorrir de Novo, em Português).

Após ajudar essa primeira vítima de um ataque com ácido - "ela tinha perdido um olho e tinha o queixo e as bochechas caídas até o pescoço", recordou -, Masarrat publicou um anúncio para chamar outras mulheres em circunstâncias similares a procurarem o seu estabelecimento.

"Logo no dia seguinte apareceram 42!", contou a empresária da cidade de Karachi (a mais populosa do Paquistão), que desde então iniciou uma entidade que ajuda a mais de 500 vítimas de queimaduras, 80% delas por ataques com ácido.

"Uma mulher atacada com ácido pode precisar de mais de 20 cirurgias para tentar conseguir uma imagem mais ou menos normal", explicou Masarrat, afirmando que somente uma operação pode chegar a custar 50.000 rúpias (cerca de R$ 1.167).

"Financiamos as cirurgias, mas também damos apoio além dessa etapa. Estas meninas frequentemente ficam desamparadas, e tentamos ajudá-las a se formar, a ter um ofício e a poder ser independentes", acrescentou.

Bushra, de 40 anos, é uma das que tentam superar o horror alimentado por séculos de desprezo à condição humana de muitas mulheres e que ainda persiste na moral tradicionalista de boa parte do Sul da Ásia.

"Os parentes do meu marido não paravam de pedir dinheiro aos meus pais e quando, no final, não pude atender a essas demandas começaram a me maltratar", relatou.

"Um dia foram além e enquanto um puxava minha cabeça para trás pelo cabelo, outro me passou um pano embebido em ácido por todo o meu rosto", relata.

Após anos de atendimento precário em hospitais públicos e da passividade da família - "reclamavam por eu fazer as tarefas durante todo o dia" -, uma enfermeira falou de uma fundação onde podiam ajudá-la.


Há alguns anos como esteticistas em um dos salões da rede Misbah na cidade oriental de Lahore, Bushra declarou: "Acho que posso dizer que sou boa, meus clientes sempre retornam".

Anam, por outro lado, chegou há pouco tempo e ainda está aprendendo os truques do ofício no salão, mas, mesmo aos 17 anos, também tem uma história de horror para contar.

"Um vizinho que quase não conhecia me chamou um dia na rua e, talvez porque não dei atenção, ele se aproximou e me jogou ácido na cabeça. Depois, inclusive deu um tiro em mim", relatou com uma expressão que revelou a dor que ainda causa essa lembrança.

O drama dos ataques com ácido, cujos dados oficiais são muito pouco confiáveis já que a maioria fica encoberto, afeta centenas de mulheres a cada ano, que, quando sobrevivem, enfrentam a dor em vida.

"É pior que ser assassinada, porque este tipo de crime mata a vítima diariamente. Tem que suportar as feridas, o estigma e a impunidade dos culpados", lamentou Masarrat, explicando que frequentemente as pessoas próximas à vitima pensam que "ela fez algo para merecer isso".

"As causas dos crimes contra as mulheres são a falta de educação, a mentalidade antiquada de muitos homens e a ignorância de sua própria religião", lamentou a empresária e filantropa.

"Há muitos que não podem ir à escola, mas todos vão à mesquita, que não lhes ensina a respeitar suas mulheres, irmãs e filhas", disse a promotora da fundação, acrescentando que muitos religiosos esquecem os preceitos "que não lhes convêm".

Um dos fatores mais citados pelos especialistas para explicar a prevalência dos ataques contra as mulheres é a impunidade para quem comete estes horríveis ataques.

Em 2011, a Assembleia Nacional aprovou uma lei que endurecia as penas por ataques com corrosivos, mas, como lembrou Masarrat, somente dois homens foram condenados de acordo com essa norma e um deles acabou recebendo o perdão presidencial.

Anam explicou que o homem que a marcou foi condenado a "somente" quatro anos de prisão, embora ela apresentasse um apelo contra uma pena que considera muito insuficiente.

"Eu gostaria que ele sofresse como eu sofri", disse sem esconder a raiva.

Fazendo honra ao nome da fundação, Misbah e as mulheres às quais ajuda começam a se tranquilizar um pouco após viver o horror sofrido.

"É preciso ter esperança, se não, não poderia fazer o que faço. Gosto de ver como cada manhã se maquiam no espelho e depois perguntam "Estou bonita?"", disse Masarrat, que chama de "filha" as funcionárias.

"Alguns clientes não gostam e me perguntam por que dou trabalho a estas mulheres e dizem que estou arruinando meu negócio. As clientes têm opções, podem ir a qualquer outro salão, mas estas meninas não têm mais alternativa", afirmou sem perder o sorriso.

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