Nova York também teve sua cracolândia. E conseguiu acabar com ela
Bryant Park, no coração de Manhattan, virou mercado de drogas a céu aberto nos anos 80. Hoje, a região está plenamente recuperada
Da Redação
Publicado em 22 de janeiro de 2012 às 10h41.
São Paulo - Há 25 anos, andar pelas ruas de Nova York não era tão seguro quanto é hoje. Os índices de criminalidade atingiam recordes históricos, muitas vezes motivados pelo tráfico de drogas. A epidemia do crack, que assolou a cidade na metade da década de 80, criou regiões em que o medo fazia parte da vida dos moradores locais — uma realidade parecida com a que os paulistanos enfrentam atualmente na Cracolândia, localizada na região central de São Paulo.
A cracolândia novaiorquina localizava-se no Bryant Park, coração de Manhattan, entre as ruas 40 e 42, a uma quadra da Grand Central, maior estação de trens do mundo e um dos cartões postais da cidade. Costumava ser um mercado de drogas a céu aberto cercado por traficantes, viciados e mendigos. Outro bairro, conhecido como Alphabet City, também em Manhattan, no Lower East Side, ficou por muito tempo sendo ocupado por traficantes, fato que destruiu a vida da comunidade local. "A cidade de Nova York foi a primeira experiência que tivemos com o crack nesse formato de pedra para ser fumada, sendo vendido nas ruas”, afirmou ao site de VEJA Robert Stutman, ex-chefe do escritório de Nova York do DEA (Drug Enforcement Administration), um órgão da polícia federal dos Estados Unidos responsável pela repressão e controle das drogas.
Um estudo realizado pelo Bureau of Justice Statistics mostrou que o uso de crack estava relacionado a 32% de todos os 1.672 homicídios registrados em 1987, e a 60% dos homicídios ligados às drogas. “O crack se espalhou rapidamente por Nova York. Isso aconteceu por uma combinação de baixo preço e do prazer proporcionado pela droga”, disse Stutman.
Pressão
Para vender o crack, os traficantes se estabeleciam em edifícios abandonados e assumidos pelo governo de Nova York por conta de impostos atrasados. Esses locais, predominantes em Alphabet City, ficaram conhecidos como crack houses. Além disso, os usuários também costumavam dirigir dos subúrbios até a área central de Manhattan para comprar a droga. O que facilitava a abordagem policial, segundo Stutman. “Eles nunca saiam do carro para comprar a droga, apenas se dirigiam ao local e recebiam a droga. E, nos Estados Unidos, há uma lei que se drogas forem encontradas em um carro, podemos apreender as drogas e os carros. Nessa fase, prendíamos centenas de carros”, afirmou.
A abordagem policial na época consistia em aumentar os reforços policias nessa região, em uma estratégia de dispersar os usuários. Na ocasião, havia um policial posicionado a cada esquina, quase que 24 horas por dia. O objetivo era prender os traficantes que ficavam perambulando pelas ruas. A estratégia, porém, fortaleceu ainda mais as crack houses, já que o consumo não chegava a ser controlado.
A operação, chamada Pressure Point, passou a focar nas organizações criminosas espalhadas pelos bairros. Para combater o tráfico, policiais à paisana eram orientados a comprar drogas com o objetivo de aprender mais sobre o tráfico; oficiais foram colocados no topo de prédios para observar a ação dos criminosos; e o número do efetivo também aumentou. Entre 1991 e 2001, a força policial de Nova York cresceu 45% — três vezes mais do que a média nacional.
Leis severas e tolerância zero — Outra medida que colaborou com o fim da epidemia de crack foi a aplicação de leis severas, já existentes. A lei Rockefeller, apesar de ter sido criada antes da epidemia, em 1973, foi responsável pela explosão no número de condenações por posse de drogas, passando de 2.554 em 1980 para 26.712 em 1993. A lei estabelecia sentenças mínimas obrigatórias de 15 anos até a prisão perpétua por posse de cerca de 110 gramas de qualquer tipo de droga. Entre os jovens levados à prisão, 70% usavam crack em 1988, contra 22% em 1996.
No início da década de 1990, o então prefeito de Nova York, Rudolph W. Giuliani, instaurou a política de tolerância zero, que impunha punições automáticas para qualquer tipo de infração, como a pichação, por exemplo. O objetivo é eliminar por completo a conduta criminosa e as contravenções. Durante sua administração, Giuliani reduziu pela metade as taxas de criminalidade de Nova York. Uma das armas foi a adoção do Compsat, um sistema utilizado pela polícia para detectar os principais pontos onde ocorrem os atos criminosos e levar a uma ação rápida de combate ao crime.
A legislação mais dura, combinada à ação policial respaldada pela política de tolerância zero, o crescimento econômico e mudanças demográficas, como o envelhecimento da população, são apontados como os principais fatores responsáveis pela redução de cerca de 80% nas taxas de crimes em geral em um período de 20 anos. Em 2010, a cidade registrou 536 homicídios. Alguns especialistas também argumentam que os efeitos destrutivos do crack tornaram-se aparentes, fazendo com que os novos usuários, com medo do poder maléfico da droga, ficassem longe dele.
Justiça terapêutica
Uma alternativa surgiu para os usuários de crack no fim da década de 80. Em 1989, a Flórida criou as drugs courts, que eram tribunais especializados em atender usuários de drogas, formados por uma equipe com advogados de defesa, promotores, especialistas em saúde mental e em serviço social. Aqueles que eram pegos com uma pequena quantidade de drogas (até 28 gramas) podiam ter a sentença reduzida ou até a ficha criminal cancelada se não tivessem cometido delitos graves, como homicídios. A contrapartida era frequentar um programa de internação voluntária, com regras e condições previamente estabelecidas entre o réu, advogado de defesa, a acusação e o tribunal.
O estado de Nova York liderou a expansão e a institucionalização das drug courts nos Estados Unidos. Atualmente, são cerca de 180 tribunais de drogas em operação no estado. Até setembro de 2010, 60.588 pessoas participaram dos programas de tratamento oferecidos pelos tribunais de Nova York e 24.423 finalizaram o programa.
O que pode ser feito no Brasil
Segundo especialistas consultados pelo site de VEJA, o combate ao crack é um problema de saúde pública e de segurança pública e deve ser combatido nas duas frentes. "O tratamento é uma forma de reduzir o uso de drogas, os níveis criminais e também diminui a contribuição com os mercados ilegais de drogas. Mas a maioria dos usuários não aceita tratamento ou não permanece nele", diz Mark Kleiman, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. "A oferta do tratamento não constitui uma solução total do problema, nem mesmo a prisão por si só", afirma Kleiman, que é autor dos livros Against Excess: Drug Policy for Results (Contra o Excesso: Política de Drogas para Resultados) e When Brute Force Fails (Quando a Força Bruta Falha).
Kleiman cita um programa chamado HOPE (Hawaii’s Opportunity Probation with Enforcement), criado em 2004, que consiste em reduzir as violações de liberdade condicional por infratores da legislação antidrogas. No projeto, os réus são submetidos a exames periódicos, feitos de surpresa, para confirmar se eles realmente abandonaram as drogas. Se o resultado der positivo ou se descumprirem qualquer termo da condicional, eles são presos imediatamente.
"Esse projeto tem tido um sucesso espetacular, alcançado 80% de abstinência na população alvo, após um ano de programa. Além disso, reduziu pela metade o número de novos encarceramentos", diz Kleiman. Atualmente, o programa está sendo replicado em alguns locais do país e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos está avaliando o modelo para possível financiamento federal.
Para Russel Falk, diretor associado do Centro de Intervenção, Tratamento e Pesquisa em Dependência da Wright State University, em Ohio, a aplicação da lei tem um papel muito importante para ajudar a reduzir os problemas que provêm do crack. "Não há dúvida de atividades policiais são necessárias para ajudar a reduzir o fornecimento de drogas que estão disponíveis, mas a redução da oferta deve ser acompanhada de programas de para a redução da procura, basicamente de prevenção e tratamento", diz Falck.
Nos EUA, foi feita uma abordagem combinando a aplicação da lei com a prevenção e tratamento. Apesar disso, Falck lembra que os investimentos não foram proporcionais em cada área. Cerca de dois terços dos fundos voltados para o abuso de drogas era para segurança pública, e o restante para o tratamento, pesquisa e prevenção. Segundo ele, uma distribuição diferente pode levar a melhores resultados.
Embora os dados epidemiológicos sugiram que o uso de crack nos EUA têm diminuído nos últimos 15 anos, os dados também mostram claramente que essa droga continua a ser um problema. "Uma pesquisa revela que pouco mais de 80.000 pessoas usaram crack pela primeira vez em 2010. E mais de nove milhões têm pelo menos alguma experiência com ele", diz Falck. "Você não pode colocar nove milhões de pessoas na cadeia. Então, programas eficazes de prevenção, intervenção e tratamento têm que fazer parte da solução. Apesar de termos feito alguns progressos nestas áreas, ainda temos um longo caminho a percorrer", afirma Falck.
São Paulo - Há 25 anos, andar pelas ruas de Nova York não era tão seguro quanto é hoje. Os índices de criminalidade atingiam recordes históricos, muitas vezes motivados pelo tráfico de drogas. A epidemia do crack, que assolou a cidade na metade da década de 80, criou regiões em que o medo fazia parte da vida dos moradores locais — uma realidade parecida com a que os paulistanos enfrentam atualmente na Cracolândia, localizada na região central de São Paulo.
A cracolândia novaiorquina localizava-se no Bryant Park, coração de Manhattan, entre as ruas 40 e 42, a uma quadra da Grand Central, maior estação de trens do mundo e um dos cartões postais da cidade. Costumava ser um mercado de drogas a céu aberto cercado por traficantes, viciados e mendigos. Outro bairro, conhecido como Alphabet City, também em Manhattan, no Lower East Side, ficou por muito tempo sendo ocupado por traficantes, fato que destruiu a vida da comunidade local. "A cidade de Nova York foi a primeira experiência que tivemos com o crack nesse formato de pedra para ser fumada, sendo vendido nas ruas”, afirmou ao site de VEJA Robert Stutman, ex-chefe do escritório de Nova York do DEA (Drug Enforcement Administration), um órgão da polícia federal dos Estados Unidos responsável pela repressão e controle das drogas.
Um estudo realizado pelo Bureau of Justice Statistics mostrou que o uso de crack estava relacionado a 32% de todos os 1.672 homicídios registrados em 1987, e a 60% dos homicídios ligados às drogas. “O crack se espalhou rapidamente por Nova York. Isso aconteceu por uma combinação de baixo preço e do prazer proporcionado pela droga”, disse Stutman.
Pressão
Para vender o crack, os traficantes se estabeleciam em edifícios abandonados e assumidos pelo governo de Nova York por conta de impostos atrasados. Esses locais, predominantes em Alphabet City, ficaram conhecidos como crack houses. Além disso, os usuários também costumavam dirigir dos subúrbios até a área central de Manhattan para comprar a droga. O que facilitava a abordagem policial, segundo Stutman. “Eles nunca saiam do carro para comprar a droga, apenas se dirigiam ao local e recebiam a droga. E, nos Estados Unidos, há uma lei que se drogas forem encontradas em um carro, podemos apreender as drogas e os carros. Nessa fase, prendíamos centenas de carros”, afirmou.
A abordagem policial na época consistia em aumentar os reforços policias nessa região, em uma estratégia de dispersar os usuários. Na ocasião, havia um policial posicionado a cada esquina, quase que 24 horas por dia. O objetivo era prender os traficantes que ficavam perambulando pelas ruas. A estratégia, porém, fortaleceu ainda mais as crack houses, já que o consumo não chegava a ser controlado.
A operação, chamada Pressure Point, passou a focar nas organizações criminosas espalhadas pelos bairros. Para combater o tráfico, policiais à paisana eram orientados a comprar drogas com o objetivo de aprender mais sobre o tráfico; oficiais foram colocados no topo de prédios para observar a ação dos criminosos; e o número do efetivo também aumentou. Entre 1991 e 2001, a força policial de Nova York cresceu 45% — três vezes mais do que a média nacional.
Leis severas e tolerância zero — Outra medida que colaborou com o fim da epidemia de crack foi a aplicação de leis severas, já existentes. A lei Rockefeller, apesar de ter sido criada antes da epidemia, em 1973, foi responsável pela explosão no número de condenações por posse de drogas, passando de 2.554 em 1980 para 26.712 em 1993. A lei estabelecia sentenças mínimas obrigatórias de 15 anos até a prisão perpétua por posse de cerca de 110 gramas de qualquer tipo de droga. Entre os jovens levados à prisão, 70% usavam crack em 1988, contra 22% em 1996.
No início da década de 1990, o então prefeito de Nova York, Rudolph W. Giuliani, instaurou a política de tolerância zero, que impunha punições automáticas para qualquer tipo de infração, como a pichação, por exemplo. O objetivo é eliminar por completo a conduta criminosa e as contravenções. Durante sua administração, Giuliani reduziu pela metade as taxas de criminalidade de Nova York. Uma das armas foi a adoção do Compsat, um sistema utilizado pela polícia para detectar os principais pontos onde ocorrem os atos criminosos e levar a uma ação rápida de combate ao crime.
A legislação mais dura, combinada à ação policial respaldada pela política de tolerância zero, o crescimento econômico e mudanças demográficas, como o envelhecimento da população, são apontados como os principais fatores responsáveis pela redução de cerca de 80% nas taxas de crimes em geral em um período de 20 anos. Em 2010, a cidade registrou 536 homicídios. Alguns especialistas também argumentam que os efeitos destrutivos do crack tornaram-se aparentes, fazendo com que os novos usuários, com medo do poder maléfico da droga, ficassem longe dele.
Justiça terapêutica
Uma alternativa surgiu para os usuários de crack no fim da década de 80. Em 1989, a Flórida criou as drugs courts, que eram tribunais especializados em atender usuários de drogas, formados por uma equipe com advogados de defesa, promotores, especialistas em saúde mental e em serviço social. Aqueles que eram pegos com uma pequena quantidade de drogas (até 28 gramas) podiam ter a sentença reduzida ou até a ficha criminal cancelada se não tivessem cometido delitos graves, como homicídios. A contrapartida era frequentar um programa de internação voluntária, com regras e condições previamente estabelecidas entre o réu, advogado de defesa, a acusação e o tribunal.
O estado de Nova York liderou a expansão e a institucionalização das drug courts nos Estados Unidos. Atualmente, são cerca de 180 tribunais de drogas em operação no estado. Até setembro de 2010, 60.588 pessoas participaram dos programas de tratamento oferecidos pelos tribunais de Nova York e 24.423 finalizaram o programa.
O que pode ser feito no Brasil
Segundo especialistas consultados pelo site de VEJA, o combate ao crack é um problema de saúde pública e de segurança pública e deve ser combatido nas duas frentes. "O tratamento é uma forma de reduzir o uso de drogas, os níveis criminais e também diminui a contribuição com os mercados ilegais de drogas. Mas a maioria dos usuários não aceita tratamento ou não permanece nele", diz Mark Kleiman, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. "A oferta do tratamento não constitui uma solução total do problema, nem mesmo a prisão por si só", afirma Kleiman, que é autor dos livros Against Excess: Drug Policy for Results (Contra o Excesso: Política de Drogas para Resultados) e When Brute Force Fails (Quando a Força Bruta Falha).
Kleiman cita um programa chamado HOPE (Hawaii’s Opportunity Probation with Enforcement), criado em 2004, que consiste em reduzir as violações de liberdade condicional por infratores da legislação antidrogas. No projeto, os réus são submetidos a exames periódicos, feitos de surpresa, para confirmar se eles realmente abandonaram as drogas. Se o resultado der positivo ou se descumprirem qualquer termo da condicional, eles são presos imediatamente.
"Esse projeto tem tido um sucesso espetacular, alcançado 80% de abstinência na população alvo, após um ano de programa. Além disso, reduziu pela metade o número de novos encarceramentos", diz Kleiman. Atualmente, o programa está sendo replicado em alguns locais do país e o Departamento de Justiça dos Estados Unidos está avaliando o modelo para possível financiamento federal.
Para Russel Falk, diretor associado do Centro de Intervenção, Tratamento e Pesquisa em Dependência da Wright State University, em Ohio, a aplicação da lei tem um papel muito importante para ajudar a reduzir os problemas que provêm do crack. "Não há dúvida de atividades policiais são necessárias para ajudar a reduzir o fornecimento de drogas que estão disponíveis, mas a redução da oferta deve ser acompanhada de programas de para a redução da procura, basicamente de prevenção e tratamento", diz Falck.
Nos EUA, foi feita uma abordagem combinando a aplicação da lei com a prevenção e tratamento. Apesar disso, Falck lembra que os investimentos não foram proporcionais em cada área. Cerca de dois terços dos fundos voltados para o abuso de drogas era para segurança pública, e o restante para o tratamento, pesquisa e prevenção. Segundo ele, uma distribuição diferente pode levar a melhores resultados.
Embora os dados epidemiológicos sugiram que o uso de crack nos EUA têm diminuído nos últimos 15 anos, os dados também mostram claramente que essa droga continua a ser um problema. "Uma pesquisa revela que pouco mais de 80.000 pessoas usaram crack pela primeira vez em 2010. E mais de nove milhões têm pelo menos alguma experiência com ele", diz Falck. "Você não pode colocar nove milhões de pessoas na cadeia. Então, programas eficazes de prevenção, intervenção e tratamento têm que fazer parte da solução. Apesar de termos feito alguns progressos nestas áreas, ainda temos um longo caminho a percorrer", afirma Falck.