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Revolução de Chávez causou amor e ódio na América Latina

O presidente não conseguiu vencer uma batalha de um ano e meio contra o câncer e morreu nesta terça-feira aos 58 anos

EXAME.com (EXAME.com)

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Da Redação

Publicado em 5 de março de 2013 às 19h34.

Caracas - Hugo Chávez sonhou em fazer uma revolução socialista que em três décadas mudasse a Venezuela para sempre, mas o câncer o levou na metade do caminho, deixando para trás um turbilhão de paixões e ódios, não só no seu país como em toda a América Latina.

Especialista consumado em retornos triunfais quando todos o davam por derrotado, o presidente não conseguiu dar um golpe de efeito após um ano e meio de uma batalha contra uma doença que nem a medicina nem a sua profunda fé cristã puderam abater.

Chávez morreu nesta terça-feira, aos 58 anos, no Hospital Militar em Caracas, semanas depois de um retorno surpresa de Havana, onde foi submetido a uma quarta cirurgia contra um persistente tumor pélvico, a respeito do qual os detalhes continuam sendo desconhecidos.

"Eu me consumirei com gosto a serviço do povo e, sobretudo, do sofredor e mais necessitado", bradou o carismático e polêmico ex-militar em julho, quando, deixando de lado sua promessa de se cuidar mais, se lançou numa extenuante campanha eleitoral, que coroaria uma longa série de vitórias suas nas urnas.

Sua reeleição em outubro, para levar o país com maior reserva mundial de petróleo rumo ao socialismo sem retorno, lhe custou sangue, suor e lágrimas, mas até o último instante ele teve a intenção de liderar seu projeto até 2031.

Só poucas horas antes de embarcar para Havana para se submeter a uma cirurgia de urgência ele decidiu nomear um sucessor político.

Sem dúvida, seu legado passará décadas sendo discutido e, como ocorreu durante os 14 anos da "Revolução Bolivariana", motivará um eterno debate entre os que o veem como paladino dos excluídos e os que o apontam como um tirano que demoliu os fundamentos de meio século de democracia venezuelana.

Para o bem ou para o mal, Chávez revolucionou a Venezuela. Ele mudou a Constituição, o nome do país, a bandeira, o brasão e até o fuso horário. Em uma campanha eleitoral permanente, nacionalizou amplos setores da economia, mudou a estrutura do Estado e deu uma guinada radical na diplomacia.


Mas a herança em curto prazo é mais do que incerta. Seu desaparecimento no meio de uma dura transição para o socialismo, sem roteiro conhecido e com uma sucessão que dificilmente pode satisfazer todas as correntes governistas, prenunciam um complexo cenário para o "chavismo sem Chávez".

"Enquanto eu tiver vida e saúde, contem com que nessa etapa serei sumamente duro com minha própria gente", disse ele em novembro, ao apresentar um franco panorama do lado sombrio do "processo": ineficácia, mau planejamento, falta de controle, obras paralisadas, fábricas improdutivas, recursos desviados.

"Mais duro do que jamais fui. Operação eficiência ou nada!", foi a última promessa desse mestre em reavivar constantemente as esperanças de milhões com sua palavra.

Seu maior êxito foi elevar os pobres ao centro da pauta política, a ponto de já não parecer possível um programa eleitoral que não tenha a justiça social como bandeira. Mas seu discutido projeto veio acompanhado por uma feroz polarização que dividiu famílias, rompeu amizades e turvou o ambiente de empresas e órgãos públicos num país onde desde 1998 o principal tema das conversas é Chávez.

A reconciliação não parece próxima, nem simples.

ÍCONE ANTI-IMPERIALISTA

Chamado pela esquerda continental para ser o herdeiro do seu "pai" ideológico, Fidel Castro, Chávez exportou seus amores e rancores para toda a região, e quis propagar sua mensagem a boa parte do mundo, onde o nome de Chávez começou a ficar tão associada à Venezuela quanto suas misses, seus jogadores de beisebol e suas intermináveis telenovelas.


Com o "anti-imperialismo" como bandeira internacional, deu alento a uma nova geração de ecléticos "socialistas do século 21", que, como ele, chegaram ao poder a partir das margens da política. Desde que assumiu o poder, atacou sem freios todos os que considerava vinculados aos desígnios dos Estados Unidos.

Não houve fórum, viagem ou campanha em que não lançasse ataques duros e frontais contra Washington, e não duvidou em se irmanar a todo e qualquer líder que compartilhasse com ele da sua aversão à Casa Branca --o que resultou em alianças com o Iraque de Saddam Hussein, o Irã, o Zimbábue e a Síria, sem distinguir credos políticos.

Nada sintetiza melhor seu histrionismo do que um discurso em 2006 na ONU, quando, na tribuna onde na véspera havia discursado George W. Bush, reclamou, enquanto se persignava: "Ontem o diabo esteve aqui, ainda cheira a enxofre". Sua extemporânea apresentação motivou uma onda de aplausos e críticas, murmúrios e não poucos sorrisos.

Célebre por suas maratônicas alocuções, nas quais podia discorrer sobre o humano e o divino durante horas --seu recorde foi de nove--, paradoxalmente ele saltou para o imaginário popular com meras 169 palavras imprescindíveis para entender o "fenômeno Chávez".

"Companheiros: lamentavelmente, por enquanto, os objetivos aos quais nos propusemos não foram alcançados... Assumo a responsabilidade por este movimento militar bolivariano", disse o empertigado tenente-coronel em sua primeira mensagem à nação, ao se render depois do seu falido golpe de Estado de 4 de fevereiro de 1992.

Pagou a quartelada com dois anos de prisão, mas sua intempestiva aparição num país farto das sucessivas crises econômicas e da corrupção desenfreada marcou muita gente, que viu no soldado --com sua boina vermelha de paraquedista e com seu porte de militar altivo-- um dos seus, um homem do povo.


Era para se chamar Eva, mas em 18 de julho de 1954 nasceu Hugo Rafael, num sítio com chão de terra e teto de palmas nas planícies do Estado de Barinas. Era o segundo de seis filhos de um casal de professores rurais.

Em sua infância foi coroinha, pintor amador e vendedor ambulante de "aranhas", os doces que sua avó Rosa Inés fazia para ajudar a precária economia familiar. Sonhou em ser "pitcher" das Grandes Ligas de beisebol, mas terminou na Academia Militar de Caracas, onde encontrou sua verdadeira vocação e seu destino.

FURACÃO BOLIVARIANO

Quatro anos depois de sair da prisão, nem a acusação de golpista, nem as críticas por sua nula experiência política, nem os gritos de que era comunista disfarçado o impediram de se tornar, em 1999, o mais jovem presidente da Venezuela, prometendo uma nova Constituição que refundasse a pátria.

O "furacão bolivariano", como dizem seus devotos, desatou um inclemente combate por parte dos partidos tradicionais, da imprensa, da hierarquia eclesiástica, da elite empresarial, de antigos companheiros de armas e de boa parte da sociedade civil, que em uníssono o acusavam de levar o país para o abismo.

A situação estourou em abril de 2002, quando ele foi derrubado num golpe que naufragou em 48 horas. Resgatado por militares leais e em meio a enormes passeatas populares, transformou sua "hora mais sombria" em um maiúsculo triunfo político.

Não seria a primeira vez que sobreviveria milagrosamente ao ser colocado contra as cordas por seus adversários, como quando o pressionaram a renunciar com uma feroz greve petroleira no final de 2002, ou quando tentaram, em 2004, revogar seu mandato mediante um referendo previsto na Constituição que ele mesmo promoveu.


A cada embate, o líder bolivariano ganhava mais poder e ia radicalizando-se, até finalmente obter em 2006 a reeleição com votação recorde, sob o grito de "pátria, socialismo ou morte", e impulsionado por suas "missões" (programas sociais) de alimentação, saúde e alfabetização, bancadas pela enorme renda do petróleo.

À base de 30 cafezinhos diários para suportar os horários draconianos, com pouco tempo para comer e menos ainda para dormir, Chávez governou permanentemente "ao vivo e direto" pela TV, empenhado em dar vida ao seu heterogêneo socialismo tropical, de influências bolivarianas, cristãs e fidelistas.

"Ser rico é mau, é desumano. Assim eu digo, e condeno os ricos", asseverou sem titubear diante de empresários em 2005.

No seu mítico programa dominical "Alô, Presidente", Chávez se mostrou em estado puro, com um estilo de microgestão do detalhe onde tudo passava por sua assinatura, entremeando reflexões políticas, filosóficas e pessoais com canções de amor, piadas, histórias e intermináveis polêmicas.

Mais tarde, confessaria que esse ritmo frenético, cheio de sobressaltos e crises, sem espaço para seus quatro filhos ou para buscar um novo amor após dois divórcios, foi a causa da sua doença.

"Eu me deitava às 3h da manhã, me levantava ao meio-dia, sem café da manhã e apressado. Isso não é vida, eu estava me matando", disse ele após anunciar o câncer, num período mais reflexivo, em que prometeu mudar, começando por se afastar do tradicional lema "pátria socialista ou morte" para adotar um otimista "viveremos e venceremos".


OS SENÕES DE CHÁVEZ

Dotado de inegável carisma e de muitos recursos, sua oratória incendiou os humildes proletários das favelas venezuelanas, sisudos intelectuais de esquerda e rutilantes astros de Hollywood.

Mas a mesma eloquência para abordar a luta social, o amor pelos pobres e o respeito pelos povos era puro veneno para seus inimigos, aos quais dirigiu palavras de ódio, ressentimento e exclusão numa batalha midiática onde toda desqualificação era válida para combater seus críticos, dos quais alguns fugiram do país ou acabaram presos sob acusação de golpe e corrupção.

Chávez, com seu estilo descontraído, entoava alguns versos a respeito da dura polarização que despertava: "Não sou moedinha de ouro para agradar a todos, assim nasci e assim sou, se não me querem, não estou nem aí". Mas seus detratores continuavam a compará-lo a todos os tiranos vivos e mortos, acusando-o de ser megalomaníaco, louco e corrupto.

Sua popularidade quase religiosa oscilou ao ritmo do preço do petróleo, do qual o país depende cada dia mais para poder importar alimentos e todos os demais bens e serviços, sofrendo uma inflação que, embora sensivelmente menor que aquela que ele herdou, continua sendo uma das mais altas do mundo.

Suas heterodoxas políticas econômicas estiveram marcadas pela hiperregulamentação do setor privado, com controles de preços e de câmbio, e por faraônicos projetos, dos quais muitos continuam inconclusos.

Ele contou com uma série de fundos paraestatais, que lhe deram um controle sem precedentes sobre o erário público.

Mas, em algo excepcional para um regime socialista, a bonança petroleira propiciou um auge do consumo, que chegou de maneira maciça às classes baixas, fazendo disparar as vendas de carros, celulares e televisões, em meio a um clima de prosperidade.

Após entrevistar Chávez num avião em 1999, o escritor Gabriel García Márquez ficou com a impressão de ter conversado com dois homens opostos: "Um a quem a sorte empedernida oferecia a oportunidade de salvar seu país; e o outro um ilusionista que poderia passar à história como um déspota a mais".

É que com Chávez sempre havia um "mas", a favor ou contra.


Ele massificou o acesso à saúde, aos alimentos e à educação, mas não deu resposta ao alarmante crescimento da criminalidade, da corrupção e da falta de moradia. Marginalizou a classe média, os empreendedores e seus críticos, mas deu visibilidade aos pobres e excluídos.

Atenuou as brutais desigualdades sociais de um país enormemente rico e cheio de pobres, mas não ofereceu soluções para os problemas estruturais que lastreiam o país há décadas.

Clamou por uma segunda independência que terminasse a obra iniciada há 200 anos pelo libertador Simón Bolívar, mas não pôde desatar seu país da ditadura econômica do petróleo, com um socialismo que ficou a meio caminho "entre o que não acaba de nascer e o que não acaba de morrer".

"Eu assumo a minha culpa", desafiou ele a aliados e adversários em uma das suas últimas reuniões ministeriais, enquanto fazia planos para o novo mandato de seis anos com o qual selaria duas décadas no poder. "Mas que cada um assuma as suas próprias."

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