O incidente foi um dos mais sérios desde o breve motim que o grupo paramilitar Wagner (Anadolu Agency/Getty Images)
Agência de notícias
Publicado em 28 de junho de 2023 às 10h18.
Última atualização em 28 de junho de 2023 às 10h29.
A Rússia voltou a afirmar nesta quarta-feira que somente ataca alvos "militares" na Ucrânia, após a destruição na véspera de uma pizzaria popular em Kramatorsk, no leste do país, matar 10 pessoas na véspera. O incidente foi um dos mais sérios desde o breve motim que o grupo paramilitar Wagner realizou contra o governo russo no fim de semana, levante que até o momento parece não ter causado grandes impactos na linha de frente.
Desde que a guerra começou os russos são acusados de dispararem mísseis e drones contra prédios civis, hospitais escolas e instalações críticas de infraestrutura energética e hídrica, por exemplo. Moscou, por sua vez, insiste que ataca apenas alvos de interesse militar.
"A Rússia não ataca infraestruturas civis, ataca apenas instalações ligadas de uma forma ou outra a infraestruturas militares — disse o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, à imprensa.
Ambos lados são acusados de cometerem crimes de guerra nos últimos 16 meses, segundo relatórios da Organização das Nações Unidas e de organizações da sociedade civil, mas as violações russas são significativamente mais volumosas que as americanas. Pelas Convenções de Genebra, regras criadas entre 1863 e 1949 que oferecem bases para a proteção de civis e responsabilização dos Estados em épocas de conflito, "objetos civis e objetos militares" devem ser diferenciados.
O Estatuto de Roma de 1998, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI) implementado dois anos depois, também veta ataques contra civis, mas nem russos ou ucranianos aderiram ao acordo. Kiev, contudo, aceita sua jurisprudência.
Há ao menos três menores de idade entre os mortos, incluindo uma menina de 17 anos e gêmeas de 14 anos, disse no Telegram o Serviço de Emergência da Ucrânia. Entre os 61 feridos há três colombianos: o ex-comissário de paz Sergio Jaramillo, a jornalista Catalina Gómez, que atuava como freelancer para uma série de veículos, e o autor Héctor Abad Faciolince.
Jaramillo, um político e negociador do acordo de paz de 2016 com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, e Faciolince estavam na Ucrânia para "expressar a solidariedade da América Latina contra o povo da Ucrânia frente à cruel e ilegal invasão russa". Os dois homens e Gómez jantavam com a escritora ucraniana Victoria Amelina, que "está em estado crítico devido a uma lesão no crânio, provavelmente causada por vidros e vigas que voaram (com a explosão), diz um texto compartilhado no Twitter.
O alvo do ataque foi a pizzaria Ria Lounge, um restaurante popular em Kramatorsk conhecido como Ria Pizza. No térreo, ele havia sido fechado após a invasão russa começar em 24 de fevereiro do ano passado, mas reabriu meses depois, tornando-se um point para soldados recém-retornados da linha de frente, jornalistas estrangeiros e trabalhadores humanitários.
A cidade fica na disputada região de Donetsk, uma das quatro anexadas unilateralmente pela Rússia em setembro do ano passado, mas está distante da linha de frente, o que faz com que não sofra tanto os impactos diários do conflito. A vida segue relativamente normal na cidade, o último grande centro urbano no leste ainda sob comando ucraniano, mas barulhos de sirenes e artilharia são com frequência ouvidos e há relatos de ataques pontuais.
O mais letal deles ocorreu em abril do ano passado, contra uma estação ferroviária por onde muitos civis buscavam deixar a cidade poucas semanas após a eclosão da guerra. Na ocasião, 61 pessoas morreram e mais de 160 ficaram feridas.
Anastasia Taylor-Lind, fotógrafa freelance britânica que estava jantando na parte interior do Ria Pizza, disse ao New York Times que o local estava "bem cheio" por volta das 19h30 (13h30 no Brasil), e a cozinha deveria fechar cerca de meia hora depois. Ela disse que uma mulher com um carrinho de bebê havia acabado de sentar na mesa ao lado quando ouviu um barulho de "estrondo", que identificou "imediatamente" como um míssil. A explosão ocorreu logo depois.
— Eu senti o ar quente, ouvi o som do vidro quebrando e dos destroços voando, o ruído dos objetos batendo uns nos outros — afirmou ela, completando que a situação durou alguns minutos.
Taylor-Lind disse que ela e seu amigo saíram rapidamente de suas cadeiras e correram para o porão, ambos com ferimentos, temendo mísseis subsequentes. Quando retornaram para o restaurante, o salão estava tomado por vidros quebrados e metais contorcidos, mas as ambulâncias ainda não haviam chegado.
— Todo mundo que estava no restaurante e não havia sido ferido estava ajudando quem estava machucado — disse ela.
Antes da guerra, Kramatorsk tinha uma população aproximada de 150 mil pessoas e era um dos centros industriais da bacia do Donbass, composta pela região de Donetsk e pela vizinha Luhansk. Muitas pessoas deixaram a região nos meses após a guerra começar, mas há algum movimento de retorno desde o ano passado.
O presidente Volodymyr Zelensky lembrou que o míssil russo veio no aniversário do ataque aéreo contra um shopping na cidade de Kremenchuk, quando 22 pessoas morreram. De acordo com o mandatário, os russos usaram mísseis S-300 em Kramatorsk, artefato de longo alcance, lançado da terra, que Moscou vem usando com frequência contra alvos no solo ucraniano.
As operações de resgate continuam, afirmaram as autoridades, completando que ao menos sete pessoas foram encontradas com vida entre os escombros. Além do restaurante, houve danos registrados em apartamentos, empreendimentos comerciais, veículos, um escritório dos correios e outros edifícios.
O motim organizado pelo grupo paramilitar Wagner no fim de semana contra a Rússia, por sua vez, parece não ter causado de momento grandes alterações na linha de frente. O presidente Vladimir Putin disse na terça-feira que soldados russos não precisaram ser deslocados, e a inteligência ocidental imediata após o levante encabeçado pelo líder mercenário Yevgeny Prigojin é de que grandes mudanças concretas não devem ser esperadas nos próximos dias.
Nesta quarta, o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, disse à CNN que "infelizmente, Prigojin se rendeu muito rapidamente", após um acordo mediado pelo presidente bielorrusso, Alexander Lukashenko, no sábado. Não houve tempo, argumento o ministro de Kiev, para que "o efeito desmoralizante penetrasse nas trincheiras russas".
Um dos termos do acordo foi o exílio de Prigojin na Bielorrússia, onde desembarcou na terça, e a promessa russa de que os participantes do levante não responderiam na Justiça. Os combatentes do Wagner que não participaram das ações contra o governo poderiam assinar contratos com o Ministério da Defesa, mas Minsk disse que abrigará aqueles que não quiserem fazê-lo.
O secretário-geral da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan), Jens Stoltenberg, disse ser muito cedo para tirar conclusões sobre o acordo selado por Lukashenko, um aliado de longa data de Putin. A expectativa dos ucranianos a médio prazo, por sua vez, é que a turbulência interna que minou a imagem de estadista forte que Putin tenta prejudique também sua invasão na nação vizinha