Nova era no Japão: qual país o mundo encontrará nas Olimpíadas?
Quando foi escolhido para sediar os Jogos Olímpicos, o governo japonês tinha um objetivo claro: mostrar ao mundo o novo Japão. Sete anos e uma pandemia depois, tenta provar que isso ainda é possível
Carolina Riveira
Publicado em 21 de julho de 2021 às 06h00.
Última atualização em 22 de julho de 2021 às 21h33.
Era 17 de junho quando o premiê Yoshihide Suga anunciou que o Japão entraria em estado de emergência. Pouco mais de um mês depois, os Jogos Olímpicos de Tóquio começam oficialmente nesta sexta-feira, 23 — com o status ainda em vigor.
O estado de emergência, que, na prática, impedirá que haja público nos estádios e viagens de turistas estrangeiros, foi uma das piores da série de más notícias que marcaram a preparação do país para os jogos.
- Unir propósito e rentabilidade é possível:aprenda a investir em ativos ESG com os melhores profissionais do mercado
Os estádios sem torcida se transformarão no mais duro lembrete de como o coronavírus ainda assola o mundo — e o Japão.
O país recebe as Olimpíadas com os jogos rejeitados por mais de 50% da população e um turbilhão de problemas internos a resolver, do combate à pandemia ao realinhamento do papel japonês no cenário internacional pós-crise.
Quando Tóquio foi escolhida em 2013 para sediar os Jogos, vencendo Madrid, na Espanha, e Istambul, na Turquia, o governo japonês tinha um objetivo claro: mostrar ao mundo o novo Japão.
As Olimpíadas neste ano marcam uma década do que os japoneses chamam de “3/11”, data do tsunami que devastou a costa leste do país. A tragédia, a maior desde as bombas atômicas, causou 19.000 mortes — mais do que o coronavírus no país até agora, que matou 15.000 pessoas, em uma população de 126 milhões.
"O propósito de se tornar o país sede das Olimpíadas era mostrar ao mundo a reconstrução após o desastre. Isso era um consenso", diz o analista político Masatoshi Honda, autor do livro Government and Politics in Contemporary Japan.
Principal defensor da estratégia, o ex-premiê Shinzo Abe (2012-2020) foi em clima de festa ao Rio de Janeiro em 2016, vestido como o personagem de videogame Mario Bros, para comemorar a passagem de bastão da capital fluminense a Tóquio.
Mas os Jogos chegam ao Japão em momento de transição. Abe, que era um premiê popular de espectro conservador-nacionalista, renunciou ao cargo voluntariamente em setembro por problemas de saúde. O substituto escolhido foi Suga, do mesmo Partido Liberal Democrata.
Coube ao sucessor a tarefa de concluir a organização das Olimpíadas, mas não só: com menos de um ano no cargo, Suga tem como missão garantir que a economia japonesa se recupere da pandemia em pé de igualdade com as demais potências.
O produto interno bruto (PIB) do Japão caiu 4,8% em 2020, e o país chegou a entrar oficialmente em recessão antes de outras potências. A projeção para este ano é de alta de 3,3%, segundo o Fundo Monetário Internacional.
Em 1940, o Japão já passara pelo trauma de ter uma Olimpíada cancelada em meio à Segunda Guerra (1939-45). Derrotado na guerra, só viria a sediar o evento em 1964, quando tentou mostrar um país reconstruído após os horrores das bombas atômicas, mas já com alguma autonomia recuperada após a intervenção dos Estados Unidos.
“A oportunidade dos Jogos de 1964 foi usada para mostrar o novo Japão. Em 2020, seria uma nova apresentação: um país economicamente desenvolvido, com sua economia madura, confiável e seguro — como uma oposição à China”, diz o especialista em política externa e Defesa do Japão, Daniel Watanabe, doutor pelo programa de Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp/Unicamp/PUC-SP) e professor da Universidade São Judas Tadeu.
O Japão do novo século
A disputa com a China é um tema crucial na decisão de manter ou não os Jogos. Pequim, que já sediou a Olimpíada de 2008 — também com o objetivo de mostrar ao mundo uma China vitoriosa, com infraestrutura renovada e alta tecnologia —, será sede das Olimpíadas de Inverno em 2022. Para os analistas, potências do Ocidente prefeririam que Tóquio fosse o símbolo da retomada do mundo.
O embate sino-japonês é milenar, mas segue forte como nunca. Em 2011, a China passou o Japão como segunda maior economia do mundo, e enquanto os países disputam o papel de principal potência da Ásia, o temor de um conflito não deixou de existir.
"Os últimos governos, incluindo Abe, defendiam uma nova postura do Japão diante da China”, diz Watanabe. “Nesse meio, o Japão vem tentando se redescobrir, apoiando-se majoritariamente em parceiros tradicionais, como EUA e Europa.”
Com as memórias da guerra já distantes, o Japão se tornou no fim do século 20 uma potência global e referência em setores como indústria e tecnologia.
Mas mesmo antes do coronavírus, o país já crescia a ritmo lento, com o período entre 2011 e 2021 chegando a ser chamado de "década perdida" por alguns analistas.
"A indústria japonesa perdeu participação de mercado para alguns de seus vizinhos asiáticos nas últimas décadas, embora ainda seja líder global em muitos tipos de manufatura de alto valor agregado", diz Tom Learmouth, analista de Japão na casa de análise Capital Economics.
Pelo lado positivo, os níveis de emprego foram menos afetados pela recessão e competição estrangeira, e seguem na casa do pleno emprego, abaixo dos 3%.
Mas novas estratégias terão de ser adotadas para seguir adiante. Entre os desafios nas próximas décadas, estão a necessidade de aumentar a competitividade em alguns setores e a fatia cada vez menor de jovens na população, um problema mais preocupante em um país que aceita poucos imigrantes.
Outro fator é a constante dificuldade em fazer o setor privado, que possui generosas reservas na casa dos 60% do PIB, gastar em investimentos no país e contribuir com a demanda agregada, no momento liderada por estímulos públicos. Abe, durante seu mandato, ficou conhecido pela política chamada de "Abenomics", com estímulo fiscal, reformas e flexibilização monetária.
O desafio continua na fase Suga. O Japão já anunciou mais de 3 trilhões de dólares em estímulos na pandemia (embora somente uma parte tenha sido efetivamente gasta).
Suga também divulgou no mês passado seu primeiro grande plano econômico, em linha com o que potências como EUA e Europa vêm planejando para o pós-pandemia. O foco é em pilares como a digitalização, revitalização de regiões japonesas, transição para uma economia de baixo carbono e o aumento da fertilidade.
"Os grandes planos estruturais estão aí. Mas assim como em outras economias avançadas, são muito mais fáceis de falar do que fazer", diz Learmouth.
Aposta política e vacinas atrasadas
Quando as Olimpíadas foram adiadas no ano passado, a expectativa era de que o mundo já estivesse em situação melhor em relação ao coronavírus.
Não foi necessariamente o que aconteceu, mas mesmo em um cenário de novas variantes, a comparação da Olimpíada japonesa com outros eventos esportivos recentes se torna inevitável. A Eurocopa, torneio europeu de seleções, teve recorde de audiência no Brasil, com o bom futebol apresentado e um incontornável clima de otimismo devido aos estádios lotados depois de um ano.
Honda lembra que um dos eventos no exterior mais assistidos pelos japoneses, o Jogo das Estrelas da MLB, liga de baseball americana, também ocorreu com público neste mês. “O que os japoneses verão nos próximos dias é uma grande diferença entre as Olimpíadas e o Jogo das Estrelas, onde tantos bebiam alegres e sem máscara”, diz o analista. Nesta terça-feira, mais de 80.000 pessoas se reuniram, dentro e fora do ginásio, para ver a vitória dos Milwaukee Bucks, nos Estados Unidos.
Para o governo japonês, cancelar as Olimpíadas levaria a um prejuízo de 16 bilhões de dólares, entre patrocínios e ressarcimentos. O investimento já feito pelo Japão, orçado em 7,5 bilhões de dólares no início da preparação, também já superou 15 bilhões de dólares — foram quase 3 bilhões só devido ao adiamento no ano passado.
"No geral, o Japão é uma nação que não muda as principais políticas públicas facilmente. Uma vez determinada, o país leva a decisão adiante", diz Honda.
O Japão, por uma confluência de fatores, está entre os países ricos com maior atraso na vacinação. Cerca de 34% da população tomou ao menos uma dose e só 12% foi totalmente vacinada (o Brasil tem 44% da população com uma dose e 16% totalmente vacinados).
A vacinação só engrenou a partir de junho. A demora japonesa é explicada por questões como a exigência de que as vacinas fizessem testes locais e o sentimento anti-vacina da população, um dos piores do mundo. (Nos anos 1990, o governo japonês chegou a ser processado por efeitos colaterais de vacinas obrigatórias.)
As doses da AstraZeneca feitas no país, por exemplo, foram aprovadas para uso em maio mas paralisadas logo depois por temor de efeitos colaterais, e milhões foram doadas a países vizinhos.
Por outro lado, o Japão foi um dos países mais bem-sucedidos no combate à pandemia antes das vacinas. O aspecto cultural, com o uso de máscaras já disseminado, ajudou. Mas também as políticas rígidas de testagem, rastreio e lockdowns localizados quando necessário.
A contenção da pandemia se mostrou economicamente rentável aos países que conseguiram chegar lá. Países da OCDE, clube das economias avançadas, que buscaram número baixo de casos em vez de redução de danos, como Japão, Austrália e Coreia do Sul, também conseguiram proporcionar maior liberdade a seus cidadãos, segundo estudo publicado na revista científica The Lancet.
“É verdade que países que controlaram o vírus agora estão atrás na vacinação, enquanto outros que foram mal no ano passado estão conseguindo melhorar por causa das vacinas”, disse em entrevista anterior àEXAME um dos autores do estudo, o pesquisador Bary Pradelski, do instituto francês CNRS e da Universidade de Oxford. “Mas não deveríamos esquecer que no Brasil, 500.000 pessoas morreram, nos EUA, 600.000 pessoas. Foi um preço muito alto a se pagar até chegarem as vacinas.”
Com cerca de 20 mortes por dia no Japão, cenário muito melhor do que na maior parte do mundo, a decisão de barrar o público, mesmo os vacinados, pode ser vista como um excesso de preciosismo. As quarentenas exigidas dos atletas são mais rigorosas do que as dos próprios japoneses vindos do exterior, dizem as fontes ouvidas pela EXAME.
O esporte na pandemia traz riscos difíceis de evitar, como outros torneios já mostraram.
Como o Japão, que tem divulgado tolerância zero nos protocolos — fazendo até camas de papelão para, segundo se comenta, evitar relações entre os atletas —, agirá se alguma das estrelas dos Jogos entrar em contato com um terceiro infectado? E como o governo Suga, que pode convocar eleições ainda neste ano, se sustentará no cargo entre os japoneses se os casos subirem pós-Olimpíada?
"Acreditamos que há muito pouco risco adicional trazido pelas Olimpíadas no que diz respeito a importar novas variantes", diz Learmouth, da Capital Economics.
E com ou sem Olimpíada, o mercado já esperava que as restrições de circulação continuassem ainda por cerca de um mês com o avanço das variantes. "Mas com a vacinação já acima da meta de Suga, de 1 milhão de doses diárias, a aposta é que o Japão estará bem posicionado mais tarde no ano para uma forte retomada puxada pela vacina", diz.
Tudo somado, o governo japonês enfrenta uma arriscada "aposta" política com as Olimpíadas, define Honda. "Se o número de casos de coronavírus escalar, será, de fato, visto como responsabilidade de Suga", diz. Mas se tudo correr bem — o que será um desafio —, a imagem do país como uma nação organizada e líder pode sair fortalecida. "Um dos poucos benefícios é que o Japão teria a oportunidade de anunciar à comunidade internacional que o país manteve sua promessa e fez o melhor para sediar Olimpíadas seguras."
Trazer as alegrias do esporte ao mundo em um momento de incertezas e dor também pode levar a algumas vitórias, embora invariavelmente menores do que o Japão imaginou há sete anos.
Assine a EXAME e acesse as notícias mais importantes em tempo real.