É hora de enfrentar o aquecimento
A eleição de Barack Obama - que prometeu combater as emissões de dióxido de carbono - e a crise financeira internacional podem ajudar a costura de um grande acordo mundial. Brasil, Índia e China têm um papel crucial nessa discussão
Da Redação
Publicado em 10 de outubro de 2010 às 04h11.
"Chegou a hora de enfrentar esse desafio de uma vez por todas. O adiamento não é mais uma opção. A negação não é mais uma resposta aceitável." Com essa declaração extraordinária sobre a mudança do clima, dada em 19 de novembro deste ano, o presidente eleito dos Estados Unidos, Barack Obama, marcou uma virada radical na posição do governo americano. Obama tem grandes ambições de mudar a maneira como os Estados Unidos produzem sua energia e de reduzir drasticamente as emissões de gases responsáveis pelo efeito estufa que estão causando o aquecimento global. A despeito do que Obama diga agora, o fato é que o Congresso americano tem se recusado repetidamente a assinar qualquer acordo que não englobe países em desenvolvimento, e boa parte do resto do mundo declarou que esperará os Estados Unidos agirem antes de tomar alguma iniciativa. Com Obama na Presidência, estamos a caminho de mais um impasse ou de uma nova aurora?
À primeira vista, a recusa de agir sem a ativa participação de países em desenvolvimento faz todo sentido, já que a taxa de crescimento das emissões é mais alta nessas nações. Entretanto, se calcularmos as emissões per capita da população, os Estados Unidos permanecem muito acima até mesmo dos países em mais rápido desenvolvimento. As emissões americanas per capita em 2004 foram de 24 toneladas de CO2, ante 11 toneladas no Brasil (que apresenta aproximadamente a mesma taxa que a média da União Européia), meras 5 toneladas na China e menos de 2 na Índia. Sem contar que os países do mundo em desenvolvimento podem argumentar que tudo que querem para seus cidadãos é o padrão de vida desfrutado pelos americanos.
O governo brasileiro está extremamente interessado em encontrar uma maneira de envolver nações em desenvolvimento numa solução. Durante as negociações de Kyoto em 1997, o Brasil fez uma sugestão que desde então ficou conhecida como Proposta Brasileira. A idéia era que os países deveriam dividir o ônus dos cortes levando em conta seu histórico de emissões. Em outras palavras, deveríamos calcular quais concentrações de gases causadores de efeito estufa cada país colocou na atmosfera ao longo do tempo, e usar essas cifras para definir os cortes de emissões. Até agora, a Proposta Brasileira não foi adotada, mas ela mostra como o pensamento imaginativo será necessário para elaborar uma maneira de distribuir o ônus. É preciso encontrar uma solução claramente justa para que todos se sintam dispostos a sancioná-la e se alcance a meta desejada.
Outra noção que está ganhando força parte de um cálculo simples. Cientistas do mundo todo agora concordam em que as emissões globais precisam ser reduzidas em 50% até 2050. Dividir isso por uma estimativa da população provável daqui a 40 anos mostra que as emissões globais médias terão de ser de 2 toneladas per capita, aproximadamente o nível atual na Índia. Para conseguir isso, os países desenvolvidos terão de cortar suas emissões em 80% em 40 anos. Embora essa cifra seja grande e assustadora, o Reino Unido já aprovou um compromisso de alcançá-la. A União Européia como um todo está prometendo acompanhar. O presidente eleito Obama também prometeu comprometer os Estados Unidos com reduções na mesma proporção. O mundo desenvolvido está finalmente levando suas responsabilidades a sério.
Mas o que dizer dos países em rápido desenvolvimento? A esse respeito, o Brasil está numa posição pior que a maioria. Suas emissões per capita são quase tão altas quanto a média da União Européia, e consideravelmente mais altas que as de seus vizinhos na América do Sul, para não falar de China e Índia - o que pode parecer surpreendente. O governo brasileiro está consciente da ameaça potencial que a mudança climática coloca para seu país, especialmente na redução da produção de alimentos, nas mudanças forçadas no uso da terra e nas perdas florestais. Além disso, as previdentes políticas brasileiras de diminuir a dependência de combustíveis fósseis com uma combinação de biocombustíveis e energia hidrelétrica fazem com que recursos renováveis respondam por mais de 40% de seu suprimento de energia. O Brasil é hoje o líder mundial reconhecido no uso de biocombustíveis. A cana-de-açúcar é um insumo muito mais eficaz para o etanol que o milho usado nos Estados Unidos, e, neste ano, pela primeira vez, a venda de álcool superou a de gasolina nos postos brasileiros.
No entanto, o grande problema do Brasil é o desflorestamento no norte do país, que ainda produz quantidades enormes de dióxido de carbono. Sem isso, as emissões per capita do Brasil seriam de apenas 5 toneladas. Adicionando a cifra do desflorestamento, o número mais que dobra. O estímulo econômico para reduzir o desmatamento é claro.
Pesquisas sugerem que o rendimento direto de terras florestais que estão sendo convertidas para exploração agrícola - incluindo os proventos da venda de madeira - é o equivalente a menos de 1 dólar por tonelada de CO2 em muitas áreas, e geralmente bem abaixo de 5 dólares por tonelada. Qualquer medida econômica que considere o custo da emissão de dióxido de carbono eliminaria esses lucros. Para reduzir quase à metade as emissões, estima-se que o Brasil teria de gastar menos de 20 dólares por tonelada de dióxido de carbono. Esse dinheiro seria empregado em vários projetos, como os que incentivam fábricas a implantar filtros e os que dão compensações aos pecuaristas que decidem preservar as florestas. Para reduzir mais de 65% das emissões, o país gastaria menos de 50 dólares por tonelada. Esses valores parecem bastante razoáveis quando comparados aos preços que serão transacionados nos mercados futuros de carbono.
O problema é que hoje não há virtualmente nenhum incentivo econômico para impedir o desflorestamento. Uma possibilidade é a geração de recursos para proteção de florestas decorrentes do leilão de licenças de emissão. Entretanto, não está claro se haverá um esquema global de precificar o carbono, ou um conjunto de esquemas nacionais e regionais interligados. Obama disse que os recursos captados com os leilões de licenças de emissões nos Estados Unidos serão alocados antes em esforços para reduzir emissões dentro das fronteiras do país do que em esforços internacionais. Parece provável que outras nações e regiões usarão os recursos da mesma maneira.
No entanto, o governo brasileiro terá de ser o mais vigilante e imaginativo possível em seu policiamento do desflorestamento ilegal. A munição já está lá nas maravilhosas imagens de satélites produzidas pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, líder mundial em tecnologia para monitorar o desmatamento. Mas, como os governos estaduais têm um incentivo econômico para permitir o avanço de fazendeiros pela floresta, o governo federal vai precisar de uma resposta muito mais vigorosa do que a que tem dado. Proibir a exportação de carne bovina de áreas desflorestadas, por exemplo, não serve. Os fazendeiros podem simplesmente inundar o Brasil de carne bovina do norte, enquanto carnes de outras procedências chegam ao mercado exportador.
A China é outro elemento importante. Em países ocidentais virou moda citar os números das novas termelétricas a carvão da China, e usá-las para argumentar que não faz sentido que outros países façam algo para conter as emissões de carbono.
É verdade que essas novas usinas são uma notícia especialmente ruim de uma perspectiva climática porque o carvão é o mais sujo dos combustíveis fósseis, produzindo não só fumaça nas cidades mas também muito mais dióxido de carbono por unidade de energia que o petróleo ou o gás. Mas a China pode dizer, com justiça, que, diferentemente do Ocidente industrializado, não fez quase nada para criar o problema climático, e que, na média, seus cidadãos contribuem muito pouco para piorá-lo.
A maior prioridade do governo chinês é a enorme disparidade de riqueza entre os cidadãos ricos de Pequim ou Xangai e os cerca de 700 milhões de pessoas que vivem no interior do país com menos de 2 dólares por dia. Reduzir essa diferença para dar um padrão de vida ao menos decente para sua vasta população, que é o que está por trás da pletora de usinas de eletricidade, é com certeza um objetivo razoável. Entretanto, é verdade que, a menos que a China encontre uma maneira de se desenvolver sem aumentar massivamente suas emissões causadoras do efeito estufa, os esforços do resto do mundo valerão muito pouco. A boa notícia é que o governo chinês está consciente de como o país é vulnerável a mudanças no clima. Já existe uma escassez de terras irrigadas no interior, problema que tende a piorar quando as geleiras tibetanas diminuírem e os rios que elas alimentam secarem. E Xangai - a locomotiva econômica do país - é uma das megacidades mais vulneráveis a enchentes tanto dos rios continentais quanto da elevação das águas do mar.
Mas o fator mais importante para trazer os chineses a algum acordo será a participação dos Estados Unidos. O governo chinês disse repetidas vezes que não agirá sobre a mudança do clima até que os americanos assumam a própria responsabilidade. A Índia também colocou recentemente um desafio aos Estados Unidos e ao resto do mundo desenvolvido. Apesar de suas emissões per capita estarem entre as mais baixas do mundo, a Índia como um todo é passível de sofrer dramaticamente com o aquecimento global. A produção de alimentos deve cair, segundo as projeções. O megadelta do Ganges-Brahmaputra, em Bangladesh, é assustadoramente vulnerável à inundação de uma combinação de elevação do nível do mar com tempestades tropicais intensas. Embora os modelos ainda sejam imprecisos sobre como exatamente a monção asiática mudará com os aumentos de temperatura, ninguém espera que ela fique como está.
Em junho de 2008, o primeiro-ministro indiano, Manmohan Singh, disse que a ciência da mudança do clima era agora inequívoca, e que "a Índia está preparada para agir como membro responsável da comunidade internacional nas negociações multilaterais que estão ocorrendo na Convenção das Nações Unidas sobre Mudança do Clima". Singh também repetiu uma promessa oportuna. As emissões per capita de gases de efeito estufa na Índia, disse ele, "em nenhum ponto excederão as de países desenvolvidos mesmo enquanto perseguimos nossos objetivos de desenvolvimento". Em outras palavras, os países desenvolvidos, e particularmente os Estados Unidos, precisam melhorar sua postura para a Índia aceitar a própria participação.
Com respeito a um novo acordo político, a reunião internacional decisiva será a Cúpula Sobre o Clima da ONU, em Copenhague, em dezembro de 2009. Todos os signatários do Protocolo de Kyoto estarão presentes e será ali que os elementos fundamentais do novo tratado terão de ser acertados.
Entretanto, é improvável que todos os detalhes de um acordo possam ser negociados entre os mais de 190 países envolvidos. Para negociações tão delicadas, esse grupo é extremamente díspar. As esperanças são maiores em um novo agrupamento das nações mais poluentes, incorporando as ricas do G8 e os países em desenvolvimento acelerado, que incluem Índia, China e Brasil. Se esses países muito diferentes, os principais emissores mundiais, puderem chegar a um acordo, o resto do mundo poderá perfeitamente segui-los.
Existe, é claro, o perigo de que, na atual crise financeira, os governos possam decidir que não devem arcar com os custos do enfrentamento da mudança do clima. O presidente Obama herdou a pior situação econômica de que se tem memória e alguns já estão dizendo que ele e outros líderes mundiais poderão se ver enredados demais nisso para dar a devida atenção à descarbonização de suas economias. No entanto, a crise financeira pode ser um trampolim oportuno para investir em energia com baixa emissão de carbono. Muitas das maiores instituições financeiras do mundo estão sob intervenção pública temporária. Regulação é a nova palavra de ordem e - especialmente com uma nova vontade política de enfrentar a mudança do clima que emana de Washington - os governos poderiam ver isso como a oportunidade perfeita para incorporar o custo do carbono em um novo e melhorado sistema financeiro internacional.
Existe, é claro, o perigo de que, na atual crise financeira, os governos possam decidir que não devem arcar com os custos do enfrentamento da mudança do clima. O presidente Obama herdou a pior situação econômica de que se tem memória e alguns já estão dizendo que ele e outros líderes mundiais poderão se ver enredados demais nisso para dar a devida atenção à descarbonização de suas economias.
No entanto, a crise financeira pode ser um trampolim oportuno para investir em energia com baixa emissão de carbono. Muitas das maiores instituições financeiras do mundo estão sob intervenção pública temporária. Regulação é a nova palavra de ordem e - especialmente com uma nova vontade política de enfrentar a mudança do clima que emana de Washington - os governos poderiam ver isso como a oportunidade perfeita para incorporar o custo do carbono em um novo e melhorado sistema financeiro internacional.
Além disso, agora que o mundo tenta sair dessa encrenca, os governos estarão procurando projetos vitais para seu financiamento público. Muitos já falam de um "New Deal Verde", no qual os investimentos necessários para reduzir a dependência mundial do carbono poderiam também ser os que nos tirariam da estagnação e revigorariam a economia global. Qualquer companhia ou governo que ignore o imperativo do clima provavelmente ficará com "ativos encalhados". Serão projetos dispendiosos, como usinas de eletricidade a carvão, pistas de aeroportos ou projetos de perfuração, que se tornarão sem valor porque foram planejados para o Velho Mundo. A crise também oferece um exemplo ilustrativo do que acontece quando governos se omitem do jogo regulatório e permitem que instituições captem recursos sem se preocupar com o futuro. A turbulência financeira foi bastante ruim para os negócios. Um derretimento descontrolado do clima seria muito, muito pior.
Em seu discurso de novembro, o presidente eleito Obama deu o sinal mais claro possível de que a crise financeira mundial não o desviaria de seu objetivo sobre o aquecimento global. Ele declarou: "Minha Presidência marcará um novo capítulo da liderança dos Estados Unidos sobre a mudança do clima". É responsabilidade de todas as nações do mundo, e especialmente de China, Índia e Brasil, não só fazer as próprias contribuições para solucionar esse grave problema mas também assegurar que os Estados Unidos cumpram sua palavra.
Sobre os autores
Gabrielle Walker é doutora em química pela Universidade de Cambridge e jornalista. Sir David King é professor de química da Universidade de Cambridge. Os dois são autores do livro O Tema Quente, publicado pela editora Objetiva.