Dois caminhoneiros, um só visto e a ameaça ao Nafta
A briga pelo transporte de cargas na fronteira do Estados Unidos com o México expõe os lobbies que ameaçam o pleno funcionamento do Nafta
Da Redação
Publicado em 20 de janeiro de 2018 às 07h16.
Última atualização em 20 de janeiro de 2018 às 12h30.
Os dois são caminhoneiros que transportam mercadorias do México para os Estados Unidos . Ambos são de uma cidade da fronteira mexicana infestada por cartéis de drogas, mas Flores saiu de lá.
Ele se tornou um cidadão americano, o que lhe dá o direito de dirigir por terras dos EUA e ganhar um bom dinheiro entregando máquinas de lavar e brócolis importados do México. Miranda, cidadão mexicano, não tem essa opção; só pode fazer viagens curtas, cruzando várias vezes a fronteira, indo de um ponto no sul até 38 quilômetros ao norte.
No Acordo de Livre Comércio Norte-americano (NAFTA), assinado em 1993, os Estados Unidos acabariam permitindo que motoristas como Miranda entregassem suas cargas em qualquer lugar. Então, o sindicato que representa os caminhoneiros se revoltou, organizando protestos na fronteira e pressionando a Casa Branca a abandonar a ideia.
Seguiu-se então uma década de disputas travadas pelos caminhoneiros americanos, agarrando-se a esse reduto de trabalho braçal, e por seus colegas mexicanos, que reivindicam o território que lhes havia sido prometido. Em 2015, a administração Obama finalmente permitiu que os motoristas mexicanos requisitassem permissão para viajar para além de bolsões ao longo da fronteira.
Apenas alguns o fizeram, mas essa batalha entrou em um novo ciclo, graças a um presidente americano que demonstrou um carinho especial pelos motoristas e seus caminhões enormes. A administração Trump usa seus planos de colocar os “EUA em primeiro lugar” nas negociações do NAFTA, exigindo que o México concorde com uma disposição que poderá, no futuro, proibir seus motoristas de fazerem entregas pelos Estados Unidos.
O México rejeitou essa sugestão, dizendo não haver justiça na proteção de um setor de trabalhadores de seus concorrentes estrangeiros malremunerados, em um acordo de comércio destinado a permitir que quase tudo trafegue livremente através das fronteiras.
A disputa mostra o que está em jogo na reformulação, ou extinção, de um acordo que se tornou altamente controverso, mas também extremamente lucrativo para todos os lados. Ele também indica o impacto que as forças do mercado, mais do que as regras no papel, podem ter sobre a forma em que duas nações comercializam bens.
Mais de US$525 bilhões em mercadorias viajam entre os Estados Unidos e o México anualmente, a maioria em caminhões. A tensão sobre quem vai lucrar com esse fluxo pode ser resumida na entrega, feita por um mexicano a um americano, de 64 refrigeradores destinados ao Texas.
A viagem começou em uma quinta-feira recente no norte do México. Um grupo de motoristas, todos homens, fazia fila ao lado de uma janela de expedição da Fema, uma das maiores empresas de transporte rodoviário do México, esperando para saber o que seria levado para os EUA.
Alguém havia trazido inúmeros refrigeradores da LG para o local. Miranda teria que levá-los através da fronteira para um depósito em Laredo. Ele faz esse percurso várias vezes ao dia. O trabalho é repetitivo, mas interminável. Miranda trabalha até 18 horas por dia, seis dias por semana.
Cada vez que atravessa a fronteira, a empresa lhe paga cerca US$12, segundo ele. Em um dia bom, pode fazer essa viagem quatro vezes; quando há congestionamento, apenas uma vez.
A rota que Miranda faz para os Estados Unidos pode durar mais de três horas. Ele sonha em dirigir pelo Texas, por Oklahoma, ir até Michigan. E avalia que seu salário semanal triplicaria com isso. “Estamos esperando por um acordo que nos possibilite viajar pelos Estados Unidos. Temos muita esperança”, disse ele.
Pode parecer mais eficiente contratar Miranda para levar as geladeiras diretamente a seu destino final. Há 20 anos, no entanto, o sindicato convence os legisladores a impedir que os caminhões mexicanos trafeguem além dos trechos limítrofes à fronteira, da Califórnia até o Texas. O sindicato e seu aliado, uma associação de motoristas independentes, argumentaram que os caminhoneiros mexicanos poderiam causar acidentes fatais, poluir o ar com seus veículos grandes e velhos e roubar os empregos dos americanos.
Quando o então presidente Obama terminou a moratória em 2015, quase nada mudou. Apenas 38 transportadoras mexicanas foram autorizadas a fazer entregas além da zona de fronteira, com menos de 500 motoristas, sendo que Miranda não é um deles. Em comparação, pelo NAFTA, mais de 30 mil americanos transportam mercadorias do México até o Canadá.
Derek J. Leathers, executivo-chefe da Werner Enterprises, disse que as empresas do México não iam atrás de serviço. “As transportadoras mexicanas em geral não estão loucas atrás de entregas para os Estados Unidos. É um ambiente especial que exige conhecimentos especiais.”
As seguradoras cobram taxas mais altas das transportadoras mexicanas, coisa que fazem com qualquer motorista que não tenha um histórico nas estradas dos EUA, de acordo com os funcionários das empresas. Há uma imensidão de regras e regulamentos que não existem no México. Os caminhoneiros têm que falar um pouco de inglês.
E, muitas vezes, não há nada para os motoristas mexicanos levarem de volta depois que deixam sua mercadoria. Os Estados Unidos compram mais de empresas mexicanas do que vendem. Como companhias aéreas estrangeiras, os caminhoneiros mexicanos não podem transportar mercadorias entre dois locais nos EUA; só podem entrar e sair. Voltar com a caçamba vazia significa que provavelmente ninguém vai pagar por esse trecho da viagem.
Segundo Leathers, a luta para excluir os mexicanos pela lei não faz sentido porque o mercado já está contra eles. “É um monte de debate e de retórica política sobre algo que nenhum dos lados tem interesse em fazer”, disse ele.
Isso ainda não convenceu os caminhoneiros americanos ou seus defensores, que viram o que aconteceu aos postos de trabalho em fábricas e se recusam a confiar em políticos ou executivos que lhes dizem que tudo ficará bem. Todos os obstáculos econômicos impedindo uma investida dos motoristas mexicanos podem ser superados com dinheiro, de acordo com eles.
“Vejo alguns grupos de capital privado dizendo: ‘Vamos comprar uma empresa de transporte rodoviário, vamos explorar o NAFTA, vamos aumentar o valor desse ativo despedindo todos os trabalhadores americanos e substituindo-os por motoristas mexicanos que ganham US$2,50 por hora'”, disse o representante Peter A. DeFazio, do Oregon.
Na Werner Enterprises, Flores assumiu o volante assim que recebeu a ordem de seus chefes. Ele atravessou o estacionamento, parou ao lado do trailer que Miranda acabara de deixar e o engatou em sua carroceria.
Ele ia para San Antonio, com o sol se pondo, tingindo o horizonte de laranja. O caminhão de Flores soou um alarme que ele não podia desligar, o que o fez sintonizar um rock clássico na rádio para abafar o ruído.
“Não acho legal que os caras venham para cá ilegalmente. Eles não têm que pagar pelo treinamento nem pela cidadania, como eu fiz. Chegam e riem de nós. É injusto”, disse Flores.
Flores disse que não tem problemas pessoais com o caminhoneiro que trouxe o trailer. Ele não conhece Miranda, mas ambos nasceram em Nuevo Laredo. Em 1991, mudou-se para Brownsville e se casou. Ele e sua esposa ganhavam dinheiro vendendo bolos mexicanos tradicionais na porta de escritórios. Levou uma década para obter sua cidadania, que custou US$1 mil em advogados e taxas.
Pode parecer estranho que um imigrante como ele queira manter os mexicanos de fora, mas Flores se vê como um americano que conquistou o direito a esse trabalho. Uma em cada cinco pessoas no negócio de transporte é imigrante, de acordo com o Centro de Pesquisa Pew.
“Esses caras só querem vir para cá, ganhar dinheiro e ir para casa. Eu gasto meu dinheiro aqui. Comprei minha casa, pago meus impostos”, disse Flores.
Com isso, ele passa pelo ponto de verificação final para que as geladeiras cheguem a San Antonio. É a linha que motoristas mexicanos não podem atravessar sem autorização, o fim da zona de fronteira. Um policial levantou a mão.
“Cidadão americano?”, a pergunta é quase retórica.
“Sim”, disse Flores, antes de levar seu veículo de volta para a estrada a caminho de casa.