Denunciar estupro pode ser um delito na Coreia do Sul
Calvários judiciais não são incomuns na nação asiática, onde uma pessoa pode ser julgada, inclusive se disser a verdade, por manchar a reputação de outra
AFP
Publicado em 30 de julho de 2018 às 19h30.
Última atualização em 30 de julho de 2018 às 19h30.
Uma mulher que se apresentou como "D" acabara de denunciar à polícia que foi estuprada , mas seu agressor a contra-atacou com uma série de acusações. As rígidas leis contra a difamação podem fazer uma queixa de estupro virar um delito na Coreia do Sul.
"Apresentou queixa atrás de queixa contra mim, acusando-me de difamação, de insultos, de perjúrio, de intimidação e inclusive de assédio sexual", explica esta mulher, que pede para ser identificada apenas com a letra "D" por temer por sua segurança pessoal.
"Durante meses, não consegui comer", conta à AFP. "Não conseguia dormir, tinha a impressão de estar mergulhada em um pântano do qual não sairia nunca".
Seu agressor acabou sendo condenado a dois anos de prisão por estupro e todas as queixas contra D. foram arquivadas.
Mas estes calvários judiciais não são incomuns na Coreia do Sul , onde uma pessoa pode ser julgada, inclusive se disser a verdade, por manchar a reputação de outra.
Um número crescente de supostos agressores sexuais usam o sistema para calar as vítimas ou obrigá-las a se retratarem.
Apresentar uma denúncia na delegacia não é em si motivo de queixa por difamação, mas se a vítima falar em público pode ser julgada penalmente.
E se a polícia ou a promotoria arquivarem o caso, ou o acusado for exonerado pela justiça, a denunciante pode ser julgada por falsa acusação.
"Todo o sistema tem um efeito paralisador sobre as mulheres", diz Seo Hye-Jin, da Associação de Advogadas Coreanas. "Muitos agressores usam abertamente a ameaça de queixa para intimidar", acrescenta.
Apesar do progresso econômico e tecnológico da Coreia do Sul, sua sociedade continua sendo profundamente patriarcal. O país fica regularmente nas últimas posições da classificação da OCDE sobre desigualdade.
Segundo o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, 52% das vítimas de assassinato são mulheres. Muito mais que nos Estados Unidos e China (cerca de 22%) e que na Índia (41%).
"Não resistiram o suficiente"
As séries de televisão sul-coreanas, muito populares na Ásia, mostram personagens homens que dominam fisicamente as mulheres como demonstração de seu amor.
Mas desde 2017, a campanha mundial #MeToo contra a violência machista também se faz presente na Coreia do Sul, onde um número crescente de mulheres acusou poderosas figuras do mundo da política, da arte, da educação e da religião.
No caso de D., um investigador lhe fez um grande número de perguntas sobre "suas intenções" de "destruir a vida de um jovem promissor" e pediu à promotoria que não aceitasse processar o estuprador.
D. deixou seu trabalho, apresentou queixas contra a polícia, a promotoria e o mediador do governo encarregado dos direitos humanos para conseguir que seu caso prosperasse diante das muitas denúncias do agressor e do contínuo assédio deste e de seus familiares.
Cho Jae-Yeon, que trabalha para o Telefone Vermelho das Coreanas, assegura que muitas vítimas não denunciam. "Muitas dizem que não poderiam suportar ser alvo de uma investigação e se arriscar a uma eventual condenação, como se já não tivessem sofrido o suficiente".
As falhas do sistema judicial não afetam apenas os casos de agressão sexual: o funcionário de um escritório de arquitetura foi condenado a uma multa por denunciar na internet atrasos no pagamento de salários e outras irregularidades.
Em 2016, foram arquivadas 55% das denúncias de agressão sexual, muito mais que nos casos de assassinato (22%) e roubo (26%), segundo o Instituto da Justiça.
E se o caso chega ao tribunal, a vítima deve demonstrar que opôs resistência porque o estupro é definido como o resultado "da violência ou da intimidação" e não da ausência de consentimento.
No passado, vários julgamentos por estupro foram rejeitados porque as vítimas "não resistiram o suficiente".
Um painel da ONU sobre a igualdade entre sexos chamou recentemente o governo a revisar sua definição de estupro e a proteger as vítimas de falsas denúncias de difamação.
O agressor de D. continuou assediando-a quando saiu da prisão, até que em 2014 foi condenado por intimidação e assédio, pondo fim a quatro anos de pesadelo.