Entenda quem venceu e quem perdeu com a crise dos mísseis
Estados Unidos bombardeiam base na Síria; saiba como a ofensiva pode alterar as peças no tabuleiro do Oriente Médio
Carol Oliveira
Publicado em 7 de abril de 2017 às 15h49.
Última atualização em 27 de junho de 2019 às 18h53.
São 59 mísseis que podem ter mudado o destino da geopolítica global. Os Estados Unidos lançaram na noite desta quinta-feira uma ofensiva militar na Síria contra o regime de Bashar al-Assad. O bombardeio é uma resposta ao ataque com armas químicas lançado contra a população civil síria na última terça-feira. Segundo o governo americano, os aviões que participaram da ação que matou mais de 70 pessoas em Idlib partiram da base bombardeada nesta quinta. O presidente americano culpou o ditador sírio pela barbárie e disse que “está nos interesses vitais dos Estados Unidos prevenir e deter o uso de armas químicas letais”.
Até onde se sabe, não se trata do início de uma investida americana na Síria, mas sim de um ataque pontual. De qualquer forma, os mísseis que caíram sobre a base aérea de al-Shayrat embaralharam as peças no tabuleiro do Oriente Médio. Dentre as muitas incertezas no ar, algumas novas verdades emergiram. Abaixo, os maiores vencedores e perdedores desta nova ordem. É, claro, uma análisas peças no tabuleiro do Oriente Médioe no calor do momento com os fatos revelados até aqui – e que pode sofrer novas reviravoltas a qualquer momento.
OS VENCEDORES
Donald Trump
O presidente americano é certamente o maior vitorioso. Trump sempre se orgulhou de sua capacidade de tomar as decisões certas por instinto, seja no mundo dos negócios ou na televisão. Sua decisão de atacar a Síria foi exatamente isso. Na quarta-feira ele afirmou a jornalistas na Casa Branca que o ataque que vitimou crianças “teve um grande impacto em mim”. Pouco mais de 24 horas depois, ordenou o ataque. Conseguiu, com isso, marcar uma diferença com seu antecessor, Barack Obama, que havia dito que não permitiria que Assad usasse armas químicas e acabou nada fazendo. Consegue, também, tirar peso das crescentes críticas de ligação com a Rússia, já que os russos são aliados da Síria. De quebra, muda o foco de seu governo das fratricidas disputas no Congresso para aquilo que é tão caro aos americanos — sua missão maior de levar democracia e civilidade para os quatro cantos do planeta. Aconteça o que acontecer a partir de hoje, Trump sai do episódio maior do que entrou.
Israel
Se o Oriente Médio espirra, Israel pega um resfriado. Por sua localização, os israelenses são afetados diretamente por qualquer desdobramento que venha a ocorrer na Síria e em outras partes da região. A maior preocupação de Tel Aviv é evitar que forças islâmicas, como o Irã e o Hezbollah, saiam vitoriosas e tomem o poder ao fim da guerra. Não à toa, o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, não tardou a demonstrar seu “completo apoio” a Trump. Após seis anos esperando uma ação de Barack Obama e da ONU, Netanyahu afirmou que a intervenção do presidente americano envia uma mensagem “forte e clara” de que o uso de armas químicas não será tolerado. Embora não admita estar interferindo efetivamente na guerra, a situação de Israel ficou particularmente mais tensa a partir do dia 17 de março, quando israelenses voltaram a lançar uma série de mísseis sobre território sírio. Damasco, pela primeira vez, respondeu militarmente ao ataque, também atirando mísseis sobre Israel. Embora rapidamente interceptados por Tel Aviv, os projéteis foram o suficiente para abalar as relações entre Netanyahu e Assad. A única questão de Israel é como fica a relação com o presidente russo Vladimir Putin, com quem mantinha boas relações.
Estado Islâmico
“Vocês são comandados por um idiota que não sabe a diferença entre Iraque, Síria e Islã”, disse Abi al-Hassan al-Muhajir, o porta-voz do grupo terrorista Estado Islâmico, ao condenar os esforços americanos necessários para retirar jihadistas dos territórios ainda controlados pelo EI no Iraque e na Síria. Após os ataques de Donald Trump à base militar na Síria, o primeiro ministro da Rússia, Dmitry Medvedev, afirmou que a ação do governo Trump é considerada “boa notícia para terroristas” e que as relações dos dois países estão “completamente arruinadas”. A fala de Medvedev é motivada pela complexidade do confronto sírio, dividido em quatro frontes. O governo de Bashar al-Assad, apoiado por Rússia, Irã e grupos radicais sunitas, como o Hezbollah, tenta se manter no poder frente à expansão do grupo terrorista Estado Islâmico, do Exército de Oposição da Síria e do Exército Rebelde de Rojava. A Oposição é apoiada pela Turquia, que tem interesses em eliminar as milícias curdas, que apoiam Rojava ao lado dos Estados Unidos, Reino Unido, Jordânia e outros países do ocidente. O ataque de Trump ao governo sírio “ajuda” terroristas na medida que eleva as tensões entre outros dois polos do conflito.
OS PERDEDORES
Donald Trump
Antes de chegar à Casa Branca, Trump afirmou reiteradas vezes que seu antecessor, Barack Obama, deveria ficar longe da Síria. No Twitter, em setembro de 2013, afirmou que atacar Assad traria “nenhuma vantagem e inúmeras desvantagens”. Durante a campanha, afirmou que a maior prioridade do país era acabar com o estado Islâmico no Iraque e na Síria, numa estratégia reiterada na semana passada pela embaixadora do país na Organização das Nações Unidas, Nikki Hayley. Agora, ao atacar a Síria, Trump mostra que sua política internacional carece de lógica. Críticos aproveitam o ataque para reforçar que seu estilo pessoal de valorizar o improviso não combina com o cargo de presidente da maior potência militar do planeta. O foco na Síria também pode tirar as atenções das forças americanas no combate ao Estado Islâmico, que continua ocupando territórios na Síria e no Iraque e, segundo reportagem da revista Time, está perto de ter acesso a armas químicas. Além disso, Trump atacou a Síria como resposta ao uso de armas químicas, o que ainda não foi comprovado, e tem sido negado pela Rússia. As investigações futuras podem lhe dar razão, ou não. Trump ganhou status com os ataques ao regime de Assad – a grande questão é se a ação não vai virar uma chaga indelével em sua gestão.
Xi Jinping
Diplomaticamente, o presidente chinês ficou em uma situação, no mínimo, embaraçosa. O ataque americano na noite de quinta-feira veio depois de Trump ter se reunido com o secretário da defesa, o general James Mattis, e o conselheiro para segurança nacional, H.R. McMaster, no resort de Mar-a-Lago, onde o presidente americano estava hospedado com Xi Jinping. Segundo o New York Times, os 59 mísseis já estavam sendo preparados antes mesmo dos dois líderes terminarem o jantar na noite de ontem, colocando Xi numa encruzilhada delicada: aceitar uma ação militar unilateral a que a China já vinha se opondo, ou se opor ao seu anfitrião. Ao lado da Rússia, a China historicamente se opôs a sanções contra Assad e agora terá que rever suas posições em relação a Trump– e, talvez, passar a levar as ameaças do mandatário americano contra a Coreia do Norte mais a sério. Na semana passada, Trump afirmou estar preparado para tomar medidas contra o país se a China não cooperasse com o plano americano de conter o programa nuclear norte-coreana.
Vladimir Putin
A reação russa a longo prazo – assim como seu envolvimento – permanecem um grande mistério para analistas. Mas, até o momento, as coisas não estão muito boas para o presidente Vladimir Putin. Moscou sustenta d=que o governo sírio não foi responsável pelo ataque químico. Caso isso seja verdade, a imagem internacional de Putin sai arranhada de qualquer forma, já que era responsabilidade russa garantir que a Síria se livrasse de todo seu arsenal químico – do governo ou dos rebeldes – depois dos ataques de 2013. Como disse o secretário de estado americano, Rex Tillerson: “ou a Rússia foi condescendente ou ela foi incompetente”. Se, ao contrário do que afirmam os russos, o governo sírio for o real responsável pelo uso das armas químicas, a dúvida do que está em jogo para Putin se torna ainda maior. É improvável que o maior aliado de Assad não soubesse do plano de atacar civis com armas químicas – algo que previsivelmente comoveria a comunidade internacional e poderia levar a uma retaliação americana. “Caso Putin tenha sido pego de surpresa pela imprudência de Assad, ele provavelmente tentará fazer Damasco pagar ao diminuir o apoio russo”, escreveu Julian Borger, editor de assuntos internacionais do The Guardian. O suposto envolvimento russo para favorecer Trump nas eleições americanas também não pode ser esquecido. Segundo Borger, todo esse investimento de inteligência russa parece estar tendo novas consequências para Putin: Trump não aliviou as sanções econômicas contra a Rússia, prometeu aumentar o investimento no setor militar americano e, agora, realizou uma ação militar diretamente contra o Kremlin.
Bashar al-Assad
O cenário estava bastante favorável para o ditador da Síria. Desde setembro de 2015, quando a Rússia passou a dar um apoio militar maior ao regime sírio, com tropas terrestres e ataques aéreos, Assad começou a virar o jogo: consolidou seu poder, retomou a segunda maior cidade do país, Alepo, e enfraqueceu os grupos rebeldes. A grande dúvida é, então, por que usar armas químicas contra civis, movimento considerado uma linha vermelha no conflito? A tática do regime sírio há anos é bombardear regiões fora de seu controle tornando a vida insustentável nessas áreas. Ao New York Times, Bente Scheller, diretor para o Oriente Médio da fundação Heinrich Böll, afirmou que apesar de não fazer sentido militarmente, os ataques contra a população “espalham a mensagem: vocês estão à nossa mercê. Não peçam pela lei internacional, ela não protege nem uma criança”. Na terça-feira 4, antes do ataque americano, Jihad Yazigi, editor-chefe do site Syrian Report e economista, escreveu: “Assad sabe que ele não tem nada a perder ao continuar com esses ataques. A Europa não está pronta para reagir, enquanto os Estados Unidos continuam hesitantes. Ao cometer massacres em larga escala, o regime sírio mostra ao mundo a impotência e fraqueza do Ocidente, deslegitimando todos os valores políticos que o Ocidente afirma estar defendendo”. Talvez Assad não contasse com o movimento de Trump.
ONU
A Organização das Nações Unidas (ONU) perdeu o controle sobre a situação na Síria. O órgão vinha insistindo que a solução para os conflitos não é militar e, agora, teme quea guerra no país volte a se intensificar. A ONU vinha realizando reuniões em Genebra para discorrer sobre a manutenção do cessar-fogo no país. Na terça-feira 4, logo após o escandaloso ataque com armas químicas, a embaixadora americana nas Nações Unidas, Nikki Haley, afirmou que a ONU havia falhado em seu dever e disse que os Estados Unidos reagiriam por conta própria às ameaças que o uso de armas químicas representam, caso a ONU não se posicionasse coletivamente. Dito e feito. O conselho de Segurança da organização precisou se reunir às pressas nesta sexta-feira, para discutir as consequências dos mísseis lançados pelos americanos – correndo atrás dos fatos e se mostrando incapaz de articular uma ação global em relação à Síria.
Europa
O presidente da Comissão Europeia, braço executivo da ONU, Donald Tusk, disse que a UE “vai trabalhar com os Estados Unidos para acabar com a brutalidade na Síria”. Por outro lado, a União Europeia e Trump não são os maiores aliados do mundo, por isso, ao mesmo tempo que indiretamente agradece por Trump liderar algum tipo de ação, o apoio dos europeus foi tímido. A chanceler alemã, Angela Merkel, e o presidente francês, François Hollande, divulgaram um comunicado afirmando que Assad era “o único responsável” pelas barbaridades na Síria. Merkel disse ainda que a ação dos Estados Unidos é “compreensível” diante das circunstâncias, mas reiterou que o ataque americano é “limitado” e que não significa uma declaração explícita de guerra. Ainda se recuperando da crise de 2008 e em meio a um turbilhão de problemas políticos internos, a União Europeia tende a ser uma coadjuvante na questão Síria. Embora seja uma das maiores afetadas pela guerra, os europeus passaram seis anos e meio sem agir diretamente o conflito. Desde que a guerra síria estourou, a Europa recebeu mais de 1 milhão de refugiados, numa crise migratória que abalou profundamente as estruturas do continente, inclusive fortalecendo movimentos ultranacionalistas e de extrema-direita, como a Frente Nacional de Marine Le Pen, na França, e o Alternativa para a Alemanha.