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Crise de escassez de noivas da China está ficando muito pior

Vasta população de homens que não são casados certamente representará uma série de desafios à China, e talvez aos seus vizinhos


	Chineses: em janeiro, foi anunciado que o país tinha 33,8 milhões de homens a mais do que mulheres
 (AFP)

Chineses: em janeiro, foi anunciado que o país tinha 33,8 milhões de homens a mais do que mulheres (AFP)

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Da Redação

Publicado em 26 de dezembro de 2014 às 21h53.

Nas cidades dos arredores de Handan, na China, um solteiro que busca se casar com uma garota local precisa ter até US$ 64.000 -- preço de uma casa acessível e de presentes obrigatórios --. O valor está um pouco fora da faixa de preço de muitos dos agricultores que moram na região.

Por isso, nos últimos anos, segundo o Beijing News, os homens locais vinham recorrendo a uma corretora de casamentos vietnamita, pagando até US$ 18.500 por uma esposa importada, valor completado por uma garantia de ter o dinheiro de volta se a noiva fugisse.

Mas esse conto de fadas logo se desfez. Na manhã do dia 21 de novembro, em algum momento após o café da manhã, 100 esposas vietnamitas importadas de Handan -- juntamente com a corretora -- desapareceram sem deixar rastro. Este é um exemplo peculiarmente chinês de fraude.

As vítimas são um subconjunto de uma subclasse em rápido crescimento: milhões de pobres, a maior parte homens de zonas rurais, que não podem resolver as expectativas familiares e sociais de casar-se e formar uma família por causa da demografia distorcida do país. Em janeiro, o diretor do Departamento Nacional de Estatísticas da China anunciou que o país tinha 33,8 milhões de homens a mais do que mulheres em uma população que excede 1,3 bilhão.

A vasta população de homens que não são casados certamente representará uma série de desafios à China, e talvez aos seus vizinhos, nas próximas décadas. O que já está claro é que essa entrega fraudulenta de esposas pelo correio é apenas o começo de um problema muito maior.

A causa imediata do desequilíbrio de gênero da China é uma preferência cultural de longa data por meninos. Na cultura patriarcal da China, espera-se que eles levem o sobrenome da família e sirvam como política de seguridade social para pais idosos. Nos anos 1970, a chamada política do Filho Único da China transformou essa preferência em um imperativo que os pais cumpriam com abortos seletivos por sexo (tornados possíveis pela ampla disponibilidade de ultrassons). Como resultado, milhões de meninas nunca chegaram às estatísticas populacionais da China. Em 2013, por exemplo, o governo informou que haviam nascido 117,6 meninos para cada 100 meninas. (A taxa natural é de 103 a 106 meninos para cada 100 meninas). Na região rural a proporção pode ser ainda mais elevada -- Mara Hvistendahl, em seu livro de 2011 “Seleção não natural”, fala de uma cidade onde as proporções são de 150 a 100 --. A longo prazo, esses desequilíbrios podem criar um excesso de homens que poderia atingir 20 por cento da população masculina global até 2020, segundo uma estimativa.

É claro, as expectativas sociais não são apenas voltadas aos meninos. Na China, espera-se que as meninas se casem -- e, em um país onde o número de homens supera o de mulheres as oportunidades para isso são excelentes, especialmente nas cidades que recebem muitas mulheres chinesas vindas do campo --. O resultado é que os preços das noivas -- em essência, o dote pago às famílias das meninas -- estão subindo, especialmente na região rural. Um estudo de 2011 sobre os preços das noivas apontou que o valor se multiplicou por sete entre os anos 1960 e os anos 1990 em apenas um setor representativo, os vilarejos rurais.

Este é um problema que abrange toda a sociedade, mas particularmente a região rural da China, onde as proporções de gênero são muito mais amplas e a falta de riqueza leva mulheres jovens e com possibilidades de se casar para longe. Esses fatores gêmeos fizeram crescer um fenômeno amplamente conhecido como “cidades de solteiros”: milhares de pequenas cidades e vilarejos em toda a China que transbordam de homens solteiros e têm poucas mulheres. Embora não haja um estudo definitivo a respeito de seu número, as cidades de solteiros receberam uma atenção generalizada de acadêmicos e jornalistas. O estudo de 2011 sobre os preços das noivas cita a cidade de Baoshi, na província de Shaanxi, com 1.013 habitantes, incluindo 87 homens solteiros acima de 35 anos.

Na China rural, onde a expectativa é que os homens se casem antes dos 30, esses 87 homens provavelmente se manterão solteiros pela vida inteira. Eles também são, provavelmente, pobres e pouco educados. Segundo um estudo de 2006, 97 por cento dos solteiros chineses entre 28 e 49 anos não concluíram o Ensino Médio.

As consequências sociais de um mundo sem mulheres são debatidas acaloradamente, com uma discussão sobre se uma população pesadamente inclinada em direção aos homens necessariamente leva a uma violência maior.

Um controverso estudo de 2007, baseado em 16 anos de dados de crimes em nível provincial, afirmou que o aumento da disparidade entre gêneros pode responder por um sétimo do aumento global dos crimes na China e um livro do mesmo ano sugere que o excesso de homens ameaça tanto a estabilidade interna da China quanto a ordem internacional. Enquanto isso, outros estudos argumentam justamente o oposto: que o desequilíbrio entre os gêneros reduz os conflitos familiares e a violência em toda a sociedade.

Um resultado, contudo, é indiscutível: um mercado no qual a demanda por noivas supera de longe a oferta inevitavelmente fará crescer setores que buscam diminuir a diferença. O tráfico de noivas é uma dessas respostas e tem uma longa história na China. Nos últimos anos, contudo, dados limitados a respeito do fenômeno sugerem que os traficantes estão focando cada vez mais em mulheres de fora da China, o que inclui a Coreia do Norte.

Segundo a revista Diplomat, cerca de 90 por cento das desertoras norte-coreanas são chantageadas pela indústria do sexo e forçadas a casar (a alternativa com a qual as ameaçam -- o retorno à Coreia do Norte -- é impensável). As mulheres das regiões minoritárias remotas e pobres do Vietnã também são alvos. O Ministério de Segurança Pública do Vietnã informa que mais de 5.800 mulheres foram traficadas para fora do país nos últimos anos, sendo que a maioria delas foi para a China.

Não está claro se as mulheres vietnamitas que acabaram em Handan foram traficadas e seria injusto supor que foram. Muitas mulheres vietnamitas se mudam para a zona rural da China pelo mesmo motivo que as mulheres das regiões rurais da China se mudam para as cidades: melhores oportunidades econômicas. Mas o fato de a corretora de casamentos que trouxe as esposas a Handan ter desaparecido, e agora ser procurada pela polícia, sugere fortemente que um elo organizado de algum tipo estava por trás dos casamentos -- e das desaparições. E também não seria a primeira vez. Histórias de noivas vietnamitas fugitivas são comuns na imprensa chinesa.

Muito provavelmente haverá mais. Uma centena de noivas fugitivas parece muita coisa, exceto quando se compara com dezenas de milhões de solteiros cujas melhores esperanças de formar uma família podem ser convencer -- e pagar -- uma estrangeira (ou sua corretora/casamenteira) para que se estabeleça em sua cidade.

Mas para cada solteiro que consegue isso haverá milhares que não conseguem. Na verdade, mesmo se tivessem o dinheiro, simplesmente não há mulheres suficientes no Vietnã e na Coreia do Norte, mesmo se todas estivessem dispostas a viver uma vida de agricultora na região rural da China.

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