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Como os Estados Unidos perderam o rumo

Livro sustenta que o hábito dos americanos de acreditar em qualquer coisa é um traço marcante da sua identidade cultural

Donald Trump (Jim Lo Scalzo/Reuters)

Donald Trump (Jim Lo Scalzo/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 9 de dezembro de 2017 às 06h51.

Última atualização em 9 de dezembro de 2017 às 16h47.

Fantasyland: How America Went Haywire — A 500-Year History (“Terra da Fantasia: como a América perdeu o rumo – Uma história de 500 anos”, numa tradução livre)

Autor: Kurt Andersen

Editora Random House

480 páginas

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A surpreendente vitória de Donald Trump na eleição presidencial dos Estados Unidos de 2016 abriu caminho para uma discussão interminável entre acadêmicos e analistas sobre as razões que levaram os americanos a colocar na Casa Branca um neófito na política. Especialmente um presidente que incorporou ao seu discurso o termo das notícias falsas (fake news) – a reprodução de mentiras divulgadas pelas redes sociais como verdade absoluta –, e adotou como arma de campanha a disseminação de teorias da conspiração, entre elas a de que o presidente Barack Obama é muçulmano e não nasceu nos Estados Unidos, entre outros golpes politicamente incorretos. O debate tem como pano de fundo a vulnerabilidade do eleitor diante da enxurrada de informações sem credibilidade que inundam as redes sociais.

Um livro recente e polêmico, porém, amplia a discussão ao mostrar que o fenômeno Trump está longe de ser um caso isolado, produto de uma estratégia oportunista para enganar incautos e abocanhar votos. Em Fantasyland: How America Went Haywire — A 500-Year History (“Terra da Fantasia: como a América perdeu o rumo – Uma história de 500 anos”, numa tradução livre), o escritor e jornalista Kurt Andersen sustenta que o hábito dos americanos de acreditar em qualquer coisa é, ao lado do individualismo exacerbado, um traço marcante da identidade cultural do país. Sua origem remonta à época dos colonizadores ingleses, no século 17. A consequência disso foi o desenvolvimento de uma forma de pensar, enxergar o mundo e agir que sutilmente ignora as diferenças entre o autêntico e o simulado, o real e o ilusório, atravessando gerações sem maiores questionamentos. Na era digital, de acordo com o autor, esse processo cresceu de forma exponencial pela exposição a que todos estamos vulneráveis.

Andersen estima que mais da metade dos americanos se enquadra em maior ou menor grau nesta condição, vivendo numa espécie de realidade pessoal sob medida. Isso se aplica em especial aos adeptos de crenças religiosas – quase todos os cristãos do país acreditam que céu (80%) e inferno (70%) são locais físicos verdadeiros, para onde somos levados após a morte –, mas também aos que ignoram o avanço da ciência. Um exemplo é o fato de um quarto dos americanos endossar a lenda urbana de que vacinar crianças pode causar autismo. A possibilidade, disseminada há cerca de 30 anos no país e sempre negada pelos cientistas, fez os registros de casos de sarampo e tosse cumprida nos Estados Unidos retomarem os índices dos anos 50. Mais recentemente, ganhou milhares de adeptos outra tese estapafúrdia, a de que a Terra é plana, e não redonda.

Apresentadas suas credenciais, o livro de Andersen revela-se inquietante e indispensável por dois motivos. O primeiro por esmiuçar uma característica nata da sociedade americana pouco estudada e tampouco existente em outros países da Europa ou da América Latina. Individualismo, fervor religioso, empreendedorismo e liberdade sempre foram alinhados ao american way of life, o jeito americano de ser, mas Andersen vai além ao mostrar como essas características sempre foram usadas, de forma consciente ou inconsciente, para que cada americano cultive o hábito de abrir mão dos filtros sociais tradicionais e aceite como verdadeiro algo que simplesmente não faz sentido pela visão racional da ciência ou do bom senso. O segundo aspecto diz respeito ao autor, que teve o mérito de reforçar a principal mensagem de sua obra amarrando diferentes referências históricas dos últimos 500 anos do país.

Andersen tem uma trajetória eclética e consistente, o que o credencia para a tarefa. Autor de três romances premiados, desenvolveu uma bem-sucedida carreira paralela como jornalista e apresentador. Foi cofundador da Spy, revista satírica famosa nos anos 80 e 90, editor-chefe da revista New York, colunista de publicações de prestígio, como as revistas Time e New Yorker, e colaborador da revista Vanity Fair e do jornal The New York Times, entre outros veículos. Hoje atua como apresentador de um programa de rádio popular nos Estados Unidos, o Studio-360.

Radicalismo religioso

Em seu livro, Andersen alinha alguns fatores por meio dos quais desenvolve sua narrativa e ajudam a explicar o constante flerte dos americanos com o imaginário. Um deles é a referência religiosa que permeia a formação cultural do país. Não surpreende que boa parte do livro se debruce sobre essa conexão dos americanos com as diferentes denominações e suas crenças.

“Os Estados Unidos são o primeiro país criado e desenhado do nada, o primeiro país autoral, como um conto épico”, escreveu Andersen. Segundo o autor, os primeiros colonizadores ingleses, puritanos que tentaram criar no Novo Mundo uma alternativa às denominações religiosas oficiais vigentes na Europa, “se imaginavam personagens heroicos em aventuras excitantes”. Portanto, segundo ele, o aspecto religioso é determinante na consolidação desse DNA cultural aberto ao antirracional. Enquanto a Europa do século 17 referendava as conquistas políticas, culturais e científicas do Renascimento e do Iluminismo, abraçando de vez o secularismo, os puritanos da América reagiram no sentido contrário, ressuscitando a prática medieval da Inquisição. Como exemplo, Andersen cita o caso de um julgamento por bruxaria no povoado de Salem, em Massachusetts, em 1692, que levou à acusação de 150 pessoas, sendo que 20 acabaram executadas, entre elas uma criança de 9 anos.

Andersen observa que mesmo os períodos de grandes avanços sociais e políticos, como o ocorrido a partir da independência americana, em 1776, sempre tiveram como resposta um recrudescimento do radicalismo religioso. Uma das forças do livro é justamente a correlação que o autor faz entre o surgimento de denominações religiosas com ênfase na força da palavra e nos cultos – evangélicos, pentecostais, mórmons, adventistas, carismáticos, etc. – em paralelo com a consolidação da mentalidade americana de que toda a verdade é relativa.

A eterna polêmica envolvendo o criacionismo nos Estados Unidos talvez seja o melhor exemplo dessa simbiose. Os avanços da ciência para derrubar a crença religiosa sobre a origem da vida sempre foram rejeitados pelas denominações cristãs. Depois que Charles Darwin publicou sua obra clássica A Origem das Espécies, em 1859 – na qual desenvolveu a tese aceita até hoje pela ciência sobre a evolução das espécies, por meio da seleção natural dos seres que habitavam o planeta –, a crença de que Deus criou o homem do nada há 6 000 anos não foi abalada. Na verdade, vários Estados americanos passaram a criar leis impedindo o ensino da teoria da evolução de Darwin em escolas públicas – determinação derrubada pela Suprema Corte apenas em 1968. O embate segue até hoje. Pesquisa recente aponta que apenas um terço dos americanos acredita que a história da criação contida no Gênesis não é literal.

Embora o fator religioso seja essencial para compreender essa tendência americana de não diferenciar o que é real ou imaginário, Andersen surpreende ao mostrar a extensão desse traço de comportamento em outros aspectos seculares da vida cotidiana no país. Segundo ele, a descoberta de ouro na Califórnia, em 1848, por exemplo, mudou a maneira de os americanos imaginarem a realização de sonhos impossíveis. A partir do século 20, essa tendência contaminou todos os segmentos da sociedade americana. O surgimento da indústria cinematográfica, por exemplo, diminuiu ainda mais a diferença entre fantasia e realidade. A criação da Disneylândia, da TV e do rádio não só ampliou essa influência como fez da indústria cultural um marco da hegemonia global americana.

Avanço do irracionalismo

A Terra da Fantasia que dá nome ao livro começa efetivamente a se consolidar nos últimos 50 anos. Andersen destaca dois momentos-chave. O primeiro, nos anos 60, com o movimento hippie e o surgimento da Nova Era – espécie de religião para pessoas que não gostam de igrejas, mas acreditam no sobrenatural e esotérico. As drogas, o amor livre e outras descobertas da época levaram o irracionalismo a ganhar espaço nas universidades, abrindo caminho para a homeopatia, terapias experimentais e outras formas de estimular a crença numa realidade individual fora do contexto científico tradicional.

Outro ponto de inflexão surgiu com a era digital. Antes da internet, o acesso à informação era limitado e filtrado pelos grandes veículos. Num intervalo de apenas 20 anos, surgiram em sequência a TV a cabo, videogames e reality shows, sem falar no advento das redes sociais. Entre 1996 e 2007, surgiram os principais veículos de propagação de fake news e teorias da conspiração, como Fox News, Drudge Report, Infowars e Breitbart, com as redes sociais (Facebook, Twitter e YouTube) como plataforma livres para ampliar sua penetração. As diferentes formas de fantasias – de fake news a filtros de fotos do Instagram – passaram a ser consideradas reais, sem maiores questionamentos.

Entre as consequências desse processo, o autor destaca dois acontecimentos recentes na área econômica, a partir da virada do milênio: o estouro das bolhas da internet e do preço dos imóveis. O crédito fácil que gerou a corrida e valorização do mercado imobiliário, segundo Andersen, alimentou o sonho da exuberância irracional, semelhante ao do crash de 1929. “Os americanos acreditaram que estavam ricos”, escreveu. Segundo ele, o fato de empresas do Vale do Silício sem receita alguma serem avaliadas em bilhões de dólares faz parte desse processo. “A experiência americana, a incorporação original da grande ideia iluminista de liberdade intelectual, com cada indivíduo livre para acreditar no que quiser, ficou fora de controle”, diz Andersen, referindo-se aos dias atuais dos Estados Unidos sob Trump.

Outra obra recente também aborda o tema, mas centraliza o foco sobre o fenômeno das notícias falsas e dos boatos a partir do século 18. Em Bunk: The Rise of Hoaxes, Humbug, Plagiarists, Phonies, Post-Facts e Fake News (“Mentira: a Ascensão de Embustes, Fraudes, Plágios, Imposturas, Pós-verdade e Notícias Falsas”, numa tradução livre), o poeta e crítico Kevin Young, editor de poesia da revista New Yorker, traça uma linhagem de mentiras e boatos ao longo do tempo. Enquanto a obra de Young destaca a estratégia consciente dos impostores ao divulgar uma mentira, o livro de Andersen analisa a ilusão de verdade em que os americanos trafegam.

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