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Aposentadoria: a dor e a delícia de viver nos seus próprios termos

Após décadas condicionados à demanda alheia, reencontrar nossos interesses mais autênticos e agir por motivação própria é um desafio tremendo

Sigrid Guimarães: Você pode aprender a tocar piano, sem precisar ser o Nelson Freire, ou a jogar tênis, sem ter que competir com a Steffi Graf ou com o Djokovic (Alocc Gestão Patrimonial/Divulgação/Divulgação)
Sigrid Guimarães

CEO da Alocc Gestão Patrimonial

Publicado em 19 de outubro de 2024 às 07h01.

Um belo dia, você acorda e, ainda se perguntando de onde veio e para onde vai, percebe que o despertador não tocou. Seu instinto, treinado por décadas, é arregalar os olhos, saltar da cama e se atirar para ver as horas. A meio caminho, você se dá conta de que tanto faz: não há reunião, funcionário, cliente, chefe, mensagens urgentes nem competição a sua espera. Seu ânimo rapidamente flutua do alívio para o desalento.

Ora, você deveria estar feliz. Finalmente, é dono do seu tempo, e não foi para esse dia que você trabalhou, economizou e investiu? – A constatação da aparente incoerência só faz inflar o desalento. Você se parte em dois; um sofre, e o outro o acusa por sofrer “sem motivo”. O problema é que o acusador não tem em conta as perdas que vêm junto com a conquista da liberdade de escolher, hora a hora.

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A perda da rotina é a mais evidente e desconcertante. Após décadas condicionados à demanda alheia, reencontrar nossos interesses mais autênticos e agir por motivação própria é um desafio tremendo, que não se resolve do dia para a noite.

Ter todo o tempo para fazer qualquer coisa é o trajeto mais curto para não fazer nada do que se deseja e transformar um momento de melancolia em melancolia crônica. Daí a importância de criar outra rotina o mais breve possível, ainda que provisória, com atividades que garantam exercício físico e intelectual, além de socialização, e preparem o corpo e a mente para encontrar e trilhar um novo caminho. Expor-se a novas experiências e a pessoas fora do seu círculo habitual é um meio muito eficiente de testar possibilidades e reconhecer suas habilidades, limites e interesses. As curiosidades espontâneas e os hobbies estão aí para isso. Você pode aprender a tocar piano, sem precisar ser o Nelson Freire, ou a jogar tênis, sem ter que competir com a Steffi Graf ou com o Djokovic.

No que se refere à vida econômica, se você não tiver uma aposentadoria integral, líquida e certa, correspondente ao salário a que estava acostumado, vai se sentir empobrecendo a cada saque, mesmo que conte com bom planejamento e recursos bem geridos capazes de garantir as despesas, preservar e até valorizar seu patrimônio a longo prazo. Curiosamente, talvez um modesto benefício do INSS possa lhe dar sensação de segurança maior do que os rendimentos, muito superiores, porém variáveis, das suas aplicações. Sendo esse o seu caso, trata-se apenas de mais um condicionamento do qual você vai precisar se livrar depois de ter se submetido à disciplina da acumulação primária, pelo trabalho, por anos e anos.

Soma-se a isso a perda de benefícios para além do salário; o plano de saúde, o carro da empresa, os vouchers e tickets, o telefone corporativo, o seguro, os bônus e, talvez, o aluguel da moradia, além dos formidáveis auxiliares que organizam agendas e resolvem problemas tecnológicos e burocráticos; enfim, tudo o que parecia ser de graça, não figurava no extrato e você pagava com o seu tempo. Além de fundamental para o planejamento financeiro, o exercício de encarar essas perdas de frente e de antemão o prepara para um novo estilo de vida. Na prática, muito do que parece fundamental quando estamos focados na carreira deixa de  fazer sentido quando temos tempo e podemos fazer escolhas livremente.

Na mão oposta da sensação de empobrecimento, está o provável excesso de liquidez. De repente, você tem em caixa o FGTS e, possivelmente, um bom acordo de saída, o resgate da previdência corporativa, o produto da venda de participações, sabe-se lá mais o quê. Com essa grana em caixa, a ideia de empreender aparece como a oportunidade espetacular de, numa tacada só, preencher o tempo, voltar para o jogo e vingar-se da perda do cartão de visitas com o prestígio associado ao logotipo da empresa e ao cargo que você ocupou.

Ótimo. Só convém lembrar que mais de metade das empresas fracassa até o quinto ano de existência. Estatisticamente, é um investimento mais arriscado do que o cara ou coroa, mas, claro, há os que prosperam. O seu negócio pode ser um deles, ou não...

Então, é preciso ter noção exata do quanto pode investir nessa aventura sem arriscar a segurança da família. (Multiplicar o custo anual por 20 é uma forma simplificada de encontrar a reserva que deve permanecer a salvo.) Respeitar esse limite, sempre e em qualquer circunstância, é o pré-requisito para manter o pescoço fora d’água se as coisas não saírem como você espera. Em outra frente, convém ponderar se você tem mesmo essa vocação. Uma coisa é ter o sonho de ser dono de um negócio de sucesso, outra, muito diferente, é ter disposição e prazer em percorrer o caminho, onde não faltarão percalços, para construir o sucesso do negócio.

Se você dispõe de capital e tem mesmo vocação para empreender, meu conselho é: dê a sua experiência o valor que merece. Jogar fora o conhecimento conquistado em anos de dedicação a certa atividade, para se arriscar em um negócio cuja operação desconhece, faz tão pouco sentido quanto rasgar o dinheiro que lutou para acumular. Ainda que haja uma base de conhecimento comum, não vai ser em três ou quatro anos que você vai atingir, num novo ramo, o mesmo patamar que levou trinta ou quarenta para galgar no seu mercado original.

Há a alternativa de se associar a alguém mais experiente num ramo que não é a sua praia e se abster da participação direta na gestão. Em tese, as chances de sucesso do empreendimento aumentam, mas também as de vir a ser responsabilizado por passivos que ignorava. Se for essa a sua escolha, por favor, conte com uma consultoria jurídica que o proteja de surpresas desagradáveis.

Seja como for, não perca de vista a oportunidade de ouro de decidir segundo o que realmente lhe importa. Você não é mais obrigado a competir nem a condicionar o seu trabalho ao preço de mercado.

Vendo o que ocorre com meus clientes quando chegam a essa etapa, eu diria que os que se preparam para ela levam de seis meses a um ano para construir seu novo programa de vida. Muitos encontram entusiasmo e realização dedicando-se a ajudar os filhos em seus empreendimentos ou colaborando com instituições em que acreditam. O certo é que o valor da sua experiência não se esvai com o cartão de visitas da empresa.

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