Bitcoin: “Há muitas ineficiências na forma como os bancos e outras instituições financeiras funcionam", disse professor de finanças da Kellogg School (Denes Farkas/Thinkstock)
Da Redação
Publicado em 13 de março de 2018 às 06h00.
Última atualização em 13 de março de 2018 às 06h00.
Desde sua criação em 2008 pelo misterioso Satoshi Nakamoto, a Bitcoin fascina o mundo técnico e transtorna a aplicação das leis. A criptomoeda digital ficou famosa por abastecer a Silk Road, um mercado famoso pela venda de drogas ilícitas, porém posteriormente foi aceita comercialmente por estabelecimentos como Expedia e Overstock.com. Recentemente, a Bitcoin é alvo de muita atenção devido às suas intensas variações de preços e à introdução de futuros Bitcoin.
Embora a Bitcoin e as criptomoedas concorrentes apareçam nas manchetes, muitos especialistas do mercado acreditam que a tecnologia subjacente que possibilita a existência da Bitcoin possível — conhecida como "blockchain" — tem a capacidade de influenciar profundamente o futuro das finanças globais.
Na sua forma mais básica, blockchain é um arquivo de computador que age como um livro contábil digital, registrando transações e atuando como um registro oficial de transações passadas. Além disso, o que é mais importante: a blockchain é criptografada. Assim, ela pode ser copiada e compartilhada para o público. À medida que as transações ocorrem, pode ser atualizada de forma segura para refletir as transações mais recentes.
A blockchain da Bitcoin, por exemplo, é mantida por computadores em todo o mundo, que concorrem entre si para processar as últimas transações. Funciona como um Google Doc público, já que quem quiser pode visualizar as atualizações à medida em que ocorrem, apesar de que a Google (ou seja, nenhum administrador central) não está envolvido na Bitcoin, já que a rede é totalmente descentralizada.
Como a blockchain não depende de autoridade central para aprovar as transações, os entusiastas desse sistema acreditam que ela oferece uma forma mais rápida e transparente de registrar e rastrear o movimento de ativos. É irônico o fato de que as cópias de uma blockchain podem ser distribuídas em vários computadores e assim se tornam potencialmente mais seguras contra ataques cibernéticos do que uma única cópia mestre das transações.
Dado seus atributos, a blockchain pode alterar radicalmente um sistema financeiro global que permanece surpreendentemente lento, assíncrono e propenso a erros, diz Bob McDonald, professor de finanças da Kellogg School.
“Há muitas ineficiências na forma como os bancos e outras instituições financeiras funcionam. As ineficiências se devem ao registro e à recuperação de informações e ao acesso a registros definitivos de transações entre bancos, ou entre bancos e clientes, ou entre empresas e acionistas", diz ele. “Grande parte do esforço no sistema financeiro é dedicado a ter uma base de dados comum, autorizada e atualizada sobre quem possui o quê e quem tem as obrigações em relação a quem. É isso o que a blockchain pode fornecer".
Na opinião de McDonald, o curioso caso da Dole Foods ilustra a natureza morosa do sistema financeiro.
Em 2013, investidores processaram David Murdock, presidente e CEO da Dole Food Company, por ter supostamente desvalorizado as ações da empresa antes fechar seu capital. Dois anos depois, após um tribunal em Delaware tê-lo julgado condenando, Murdock concordou em indenizar os acionistas com US$ 2,74 por ação.
Depois disso, tudo ficou estranho. Havia 36 milhões de ações da Dole em circulação. No entanto, os investidores reivindicaram o pagamento de 49 milhões de ações. Como isso poderia ter acontecido?
De acordo com a Bloomberg, algumas discrepâncias foram causadas por transações não liquidadas e vendas a descoberto.
Suponhamos você ser titular da Dole Foods e ter uma conta em uma empresa como a Schwab. Nesse cenário, suas ações na Schwab estão de fato custodiadas em "nome da rua", o que significa que a Schwab registra você como acionista, mas a Dole Foods não sabe que você é acionista. As participações totais da Dole na Schwab são registradas pela contabilidade na Depository Trust Corporation (DTC) — mas a DTC também não sabe que você é acionista.
Se comprou ou vendeu uma ação, a transação, naquela época, teria demorado três dias para ser concluída. Durante este período, a transação ainda não havia sido "liquidada".
Para complicar ainda mais, a Schwab pode ter emprestado suas ações para alguém que desejasse vender as ações da Dole, em uma situação em que não haveria ações da Dole em sua conta, apenas a obrigação por parte de outra pessoa de eventualmente devolvê-las e, neste intervalo, efetuar pagamentos que lhe fossem devidos como acionista.
Neste cenário, os investidores podem ter pensado ter ações da Dole, mas essas ações podem ter sido incluídas em transações ainda não liquidadas ou emprestadas pela Schwab.
Nessas situações, os investidores deveriam ter sido pagos por outros investidores, não pela Dole. Em tese, os corretores que facilitaram essas transações não liquidadas e vendas a descoberto eram responsáveis por distribuir os US$ 2,74 por acão para as devidas partes. Porém, na prática, dois anos depois, houve uma confusão. O juiz pediu que as corretoras resolvessem e decidissem quem deveria fazer e receber os pagamentos.
Na opinião de McDonald, o caso é emblemático das complexidades e limitações da infraestrutura financeira, que permite que os valores mobiliários mudem de mãos em questão de segundos, mas nas quais as transações podem demorar dias para liquidar, e os investidores ficam em sua grande maioria no escuro quanto ao que realmente possuem.
A tecnologia Blockchain poderia resolver esse problema ao processar todas as transações sem atrasos, mantendo todos os sistemas contábeis sincronizados.
“Atualmente, há uma lacuna entre o tempo em que se compra e o tempo que a pessoa é realmente designada como titular da ação", diz McDonald. “Leva vários dias para a transação compensar. No entanto, com a tecnologia blockchain, isso aconteceria rapidamente e o processo seria transparente. A Schwab ainda pode emprestar as ações dos clientes, mas o processo seria mais aberto e transparente do que atualmente é".
Outra grande vantagem da tecnologia blockchain, talvez o que provavelmente leve à sua adoção, é que ela pode reduzir em muito os custos.
Os pagamentos são uma aplicação óbvia. "Há trilhões de dólares de capital de giro preso nos balanços das empresas dos EUA", diz Caitlin Long, presidente da empresa de contratos inteligentes Symbiont. "Uma empresa de grande porte tem cerca de 2.000 contas bancárias no mundo todo, e mantém dinheiro parado em todas elas. Se pararmos para pensar nisso de um ponto de vista econômico, esse é o maior peso morto da economia. Se pudermos acelerar a infraestrutura de pagamento entre os bancos centrais, haverá a liberação de uma enorme quantidade de capital de giro na economia".
Uma arena menos óbvia para a blockchain é o mercado de empréstimos sindicalizados.
"Há uma tremenda quantidade de burocracia ainda não digitalizada", diz Long, palestrando no início desse ano na conferência FinTech and the Future of Finance na Kellogg School. “Este é um mercado famoso por enviar faxes de um lado para o outro". Se o processo fosse automatizado, diz ela, não só aceleraria o processo de venda de empréstimos como também economizaria muito dinheiro.
A automação do lado administrativo de private equity também reduziria os custos.
"A blockchain automatizaria cerca de 30% do trabalho em administração de fundos", diz Peter Cherecwich, Vice-Presidente Executivo da Northern Trust, que também palestrou no congresso. "É um aumento de 30% na rentabilidade. Evidentemente, não conseguiremos aproveitar todo esse lucro. Assim, reduziremos as taxas para o sócio geral, e depois o sócio geral reduz as taxas no lado do sócio limitado. Para cada ator ao longo da cadeia, as receitas diminuem, mas os lucros aumentam. No meu ponto de vista, é progresso".
Esta não seria a primeira tentativa de agilizar o processamento de transações nos serviços financeiros. No final da década de 1990 houve um esforço da indústria chamado Global Straight Through Processing Association — cujo objetivo era reduzir os atrasos envolvidos na compensação de transações de valores mobiliários, mas o esforço morreu após o indiferente comprometimento dos gestores de investimentos e dos acionistas.
Para Cherecwich, a lição é clara: mudança exige o envolvimento de muitas partes interessadas. Para que a tecnologia blockchain tenha sucesso, todo o ecossistema deve se beneficiar. “Se apenas uma parte do ecossistema se beneficiar, ela irá fracassar", diz ele.
Como exemplo final de como a blockchain pode simplificar as operações, recentemente a Symbiont, Vanguard e o provedor de dados do mercado de ações Center for Research in Security Prices (CRSP) colaboraram no uso da blockchain para distribuir informações em tempo real sobre a composição de índices, por exemplo, do índice S&P 500. A atualização destas informações tem sido surpreendentemente trabalhosa em termos de mão-de-obra para um componente tão crítico da indústria de investimentos, mas a blockchain tem o potencial de melhorar radicalmente a velocidade, precisão e eficiência do processo de atualização.
Os defensores da Blockchain afirmam que, por ser considerada a forma mais segura de armazenar e compartilhar dados de transações, a tecnologia pode futuramente se tornar o novo padrão global.
Na verdade, vários bancos centrais manifestaram interesse na contabilidade distributiva. Os que procuram maior transparência nos contratos do governo, doações de campanha e contas offshore da elite global veem a blockchain como um recurso poderoso.
“A criptografia de código aberto tem sido um enorme sucesso", diz McDonald, "e é isso que está no âmago da Blockchain".
A maior oportunidade pode ser mais benéfica nos países em desenvolvimento. Assim como a indústria de telefonia móvel "saltou" as versões antigas da infraestrutura de telecomunicações, alguns líderes da indústria financeira esperam que a tecnologia blockchain crie uma indústria de serviços financeiros mais eficiente, mais acessível e menos corrupta.
"A tecnologia foi criada para fazer com que não seja necessário ter que confiar em instituições", diz McDonald. "Nos EUA, estamos acostumados com instituições confiáveis, mas não é esse o caso em todos os países. Há razões para acreditar que um registro de transações autorizado e distribuído, a blockchain pode ajudar a reduzir a corrupção".
A menos teoricamente, a blockchain também pode tornar a vida mais fácil para os reguladores, uma vez que todas as transações seriam registradas automaticamente em um único sistema contábil, ao mesmo tempo que assegura a soberania das regulamentações nacionais. Para preservar a confidencialidade dos dados, os reguladores podem não ter acesso a toda a blockchain (o acesso é concedido por endereço IP), mas podem acessar parte relevante dela a qualquer momento.
No entanto, apesar do potencial da tecnologia de contornar a corrupção e a fraude globais, ainda precisará de uma infraestrutura jurídica caso seja amplamente adotada.
Para McDonald, como isso irá se desenrolar é um ponto de interrogação. Ele a compara à Internet, uma nova tecnologia que foi monetizada e regulamentada de formas que poucos podiam prever antes da era do Google.
"Executamos contratos e direitos de propriedade conforme a lei", diz ele. “Nos casos de disputas comerciais, o governo precisa ter regras sobre transações codificadas por Blockchain. E este fato coloca o governo no centro de tudo".
Texto originalmente publicado no site da Kellogg School of Management.