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Direito e tecnologia (the-lightwriter/Getty Images)
Redação Exame
Publicado em 6 de dezembro de 2025 às 11h00.
Stablecoins movimentaram globalmente mais de US$ 27 trilhões em 2024, superando os volumes combinados de Visa e Mastercard. No Brasil, mais de 70% das transações com criptoativos já ocorrem por meio desses instrumentos, sobretudo os referenciados em dólar. Esse crescimento, que poderia representar uma das maiores oportunidades de modernização financeira da história recente do país, volta agora a ser tratado sob a velha ótica arrecadatória, com o Ministério da Fazenda sinalizando a intenção de instituir IOF sobre operações com criptoativos, poucos meses após a MP 1303 ter sido proposta e, mesmo sem vigorar, ter assustado o mercado ao indicar uma possível elevação abrupta da carga sobre operações com criptoativos.
O ponto mais preocupante não é apenas econômico, mas institucional. Esse movimento ocorre justamente no momento em que o Banco Central, após quatro consultas públicas amplas e transparentes, concluiu um marco regulatório robusto para o setor. Essa nova regulação estabelece critérios claros, exige a presença de empresas devidamente autorizadas e cria condições para que operações hoje conduzidas por plataformas offshore passem a ocorrer dentro do país. Como consequência direta desse processo, o Brasil tende a atrair mais atividade econômica, desenvolvimento tecnológico e investimentos — resultados naturais de um mercado regulado e previsível.
É justamente por isso que a sinalização do Executivo é tão problemática. No momento em que o regulador busca dar estabilidade e criar um ambiente confiável para que empresas globais possam se estabelecer no Brasil, o governo federal introduz incertezas que fragilizam a credibilidade do arcabouço recentemente construído.
A insegurança jurídica decorre não apenas da possibilidade de novos custos, mas da tentativa de enquadrar, por meio de ato infralegal, transações com ativos virtuais em hipóteses tributárias sem respaldo claro na legislação. Ao sugerir que a inclusão de determinadas operações com stablecoins no chamado “mercado de câmbio” implicaria automaticamente sujeição ao IOF‑câmbio, o Executivo adota uma interpretação que não encontra amparo técnico no ordenamento vigente e reacende um ciclo de dúvida justamente quando o país mais precisa de previsibilidade.
O fato gerador do IOF-câmbio continua sendo, nos termos do Decreto 6.306, o ato de liquidação da operação de câmbio, o que pressupõe a entrega de moeda nacional e moeda estrangeira ou de títulos que as representem. Ocorre que stablecoins, mesmo quando referenciadas em moedas fiduciárias, não são moeda estrangeira, tampouco documentos representativos de moeda, conforme definição expressa da própria Lei 14.478/2022.
A legislação brasileira é clara ao excluir ativos virtuais desse conceito, reforçando que estamos diante de uma categoria jurídica distinta, que não pode ser artificialmente equiparada ao câmbio tradicional apenas por conveniência arrecadatória.
Ainda que o Banco Central tenha avançado ao reconhecer e enquadrar determinadas operações com ativos virtuais dentro de um arcabouço regulatório mais claro, isso não autoriza, por si só, a expansão automática do escopo tributário. As operações descritas na nova regulamentação — como transferências internacionais com ativos virtuais, uso vinculado a meios de pagamento ou transações envolvendo carteiras autocustodiadas — não configuram liquidação de operação de câmbio nos termos legais. São, na prática, fluxos de ativos digitais que podem ter natureza econômica internacional, mas que não se confundem com a entrega bilateral de moedas, condição essencial para incidência do IOF.
Ao insistir nessa interpretação extensiva, o governo cria um precedente perigoso: o de transformar inovação financeira em campo de experimentação fiscal, onde conceitos jurídicos passam a ser moldados conforme a necessidade de arrecadação de curto prazo. Essa postura ignora não apenas o marco legal recém-estabelecido para os criptoativos, como também os efeitos práticos e sistêmicos dessa sinalização.
Ao sinalizar a cobrança de IOF em um segmento que o próprio Banco Central busca organizar e trazer para dentro das fronteiras regulatórias, o governo desestimula empresas que já vinham avaliando instalar estruturas no Brasil e desincentiva novos investimentos. E é fundamental reconhecer: o potencial ganho arrecadatório com IOF — limitado e incerto — não compensa nem de longe a perda de investimentos diretos, empregos qualificados, tributos corporativos, PIS/Cofins, ISS, IRPJ, além da fuga de inovação e talento. Trata-se de uma troca profundamente desfavorável ao país.
O resultado é previsível. Ao invés de fomentar a criação de stablecoins lastreadas em reais. o que poderiam atrair capital estrangeiro, fortalecer a moeda nacional e ampliar a base de financiamento da dívida pública, o país sinaliza hostilidade regulatória. Projetos que poderiam se desenvolver localmente passam a buscar jurisdições mais previsíveis, empurrando inovação, empregos e investimentos para fora.
O Brasil, que poderia liderar a integração entre finanças digitais e mercado de capitais, assume novamente o papel de espectador desconfiado e fiscalista.
Essa guinada ocorre, ironicamente, em um momento em que o mundo caminha na direção oposta. Economias centrais discutem como utilizar stablecoins como instrumento de eficiência, inclusão e até projeção monetária internacional. Aqui, são tratadas como mais um vetor de arrecadação, desconsiderando seu potencial estrutural de transformação.
Mais grave ainda é o impacto reputacional desse movimento. Ainda que a MP 1303 tenha caducado, seu simples encaminhamento foi suficiente para assustar o mercado como um todo e reacender o alerta sobre a fragilidade previsível do ambiente regulatório brasileiro. A proposta evidenciou o grau de imprevisibilidade com que o governo está disposto a tratar temas sensíveis de tributação financeira.
Agora, ao sinalizar a possibilidade de IOF sobre criptoativos, volta a reforçar a percepção de que as regras podem ser alteradas a qualquer momento, sem debate técnico aprofundado e com leitura jurídica questionável. Para qualquer investidor, seja nacional ou estrangeiro, a mensagem é clara: as regras podem mudar a qualquer momento, por conveniência fiscal, mesmo que isso contrarie a própria legislação vigente.
Stablecoins não representam uma ameaça à soberania. Pelo contrário, poderiam se tornar uma ferramenta estratégica para projetar o real no ambiente digital global, ampliar a eficiência de fluxos financeiros e reduzir o custo estrutural da dívida pública. O que ameaça o país, na verdade, é a repetição de ciclos de insegurança jurídica, criatividade tributária e descompasso entre inovação e Estado.
A escolha que se impõe ao Brasil não é entre controle e caos, mas entre visão de longo prazo e imediatismo arrecadatório. Tratar stablecoins como câmbio por analogia forçada e submetê-las ao IOF por interpretação expansiva não fortalece a soberania, mas sim enfraquece a credibilidade. E, em um mundo onde capital é móvel e inovação busca ambientes previsíveis, essa é uma conta que o país invariavelmente acaba pagando, com juros altos e crescimento limitado.
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