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Itens colecionáveis no blockchain e as relíquias digitais do futuro

Apesar das dúvidas e dos riscos que guarda, o mercado de NFTs é bastante promissor, segundo especialistas. Os tokens não fungíveis serão as verdadeiras relíquias do futuro

Obras de arte em NFTs se popularizaram e trouxeram uma nova forma de olhar para a tecnologia na arte (Atlas Cryptoart/Reprodução)

Obras de arte em NFTs se popularizaram e trouxeram uma nova forma de olhar para a tecnologia na arte (Atlas Cryptoart/Reprodução)

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Da Redação

Publicado em 15 de abril de 2022 às 10h00.

Júlia Martins Rodrigues

Marcelo de Castro Cunha Filho

Juliana Abrusio

Relíquias arqueológicas, conchas, fósseis, pedras preciosas, joias de família, mapas e moedas antigas, artigos religiosos, cerâmicas, fotografias, obras-de-arte. Os cabinets of rarities (ou cabinets of curiosities) eram antigos móveis ou cômodos (wonder-rooms) dedicados a guardar notórias coleções e miscelâneas de objetos raros. Os famosos gabinetes europeus do século XVII e a satisfação humana em colecionar preciosidades encontram uma nova expressão codificada na era digital.

Domenico Remps, Cabinet of Curiosities,1690 (Cabinet of Curiosities/Reprodução)

Frans Francken, Chamber of Art and Curiosities, 1636. (Chamber of Art and Curiosities/Reprodução)

Picassos na parede sempre terão o seu lugar. Contudo, a explosão de novas criações baseadas em blockchain abriu espaço para novos parâmetros de riqueza, reconceituando a utilidade de itens colecionáveis. Nesse contexto, surgem os chamados tokens não fungíveis (em inglês non-fungible tokens) ou NFTs. Os NFTs consistem em ativos virtuais que podem ter a sua datação e titularidade certificadas por meio do registro blockchain (Ethereum, Cardano, dentre outras redes). Os NFTs podem ser registrado em blockchain sob os formatos de áudio, vídeo, fotografia, texto, etc. 

Not Tupi, Atlas Cryptoart (Atlas Cryptoart/Reprodução)

(Bored Ape Yacht Club/Reprodução)

O primeiro NFT a receber atenção internacional foi a obra Everydays: The First 5000 Days, do artista americano Beeple, arrematada no leilão da Christie’s por U$69,346.250, em março de 2021. Desde então, várias coleções têm sido disputadas no mercado de arte digital, entre elas os CryptoPunks, do estúdio Larva Labs, e os avatares, da Bored Ape Yacht Club (BAYC).

Artistas e designers reconhecem no blockchain uma possível solução para expor suas obras em galerias online sem se tornarem facilmente reféns do plágio. Diversas indústrias conectadas à arte e design têm se movimentado para ocupar esse novo nicho de mercado. Casas de alta costura como Burberry, Dolce&Gabbana, Balmain já começaram a disponibilizar NFTs de artigos de luxo, importando suas respectivas identidades visuais para esse novo espaço cibernético. Na indústria cinematográfica, o diretor Quentin Tarantino está entre os cineastas a confirmar aderência ao blockchain a partir do projeto de criação de NFTs da renomada obra Pulp Fiction.

A onda dos NFTs não se limita ao universo da arte. Recentemente, o mundo assistiu à explosão dos NFTs do Axie Infinity, jogo virtual do tipo play-to-earn que opera em blockchain. O Axel Infinity consiste em um jogo inspirado no universo Pokémon dentro do qual os jogadores podem auferir recompensas em Axies (NFTs) de acordo com a sua performance. Para jogar o Axie Infinity, o jogador precisa basicamente adquirir Axies, isto é, NFTs que dão acesso a determinadas funcionalidades do jogo.

Tão relevante quanto a utilização de NFT’s no setor artístico e de jogos é a utilização das novas tecnologias no metaverso. O metaverso consiste em um espaço virtual construído pela integração entre a internet, a realidade aumentada e a realidade física. No metaverso, é possível construir um cotidiano virtualmente semelhante à realidade física, cujas peças integrantes (e.g. personagens, carros, prédios etc.) são formadas por NFTs. Apesar de a ideia soar ainda muito futurística, a indústria do metaverso já está movimentando altas cifras com os projetos baseados em NFTs.

Seja no mercado da arte, da moda, dos games, do cinema, do metaverso e de tantos outros, a tendência de emissão de NFTs mostra que veio para ficar. O sucesso estrondoso dessa tecnologia reside no fato de ela reproduzir em meio virtual algo muito cobiçado pelas culturas humanas: o controle da escassez e o alcance, mesmo que fictício em muitos casos, de exclusividade. É certo que a inscrição de determinadas obras de arte e de outras criações intelectuais em blockchain não é capaz de impedir que uma pessoa possa tirar um “print” do seu conteúdo e reproduzi-lo incontáveis vezes pela internet, sem autorização. Apesar disso, o blockchain garante a exclusividade de certos itens por meio da atribuição de um código único e inconfundível que é registrado em seu sistema de forma pública, perene e imutável.

(Mynt/Divulgação)

Em virtude da rastreabilidade que isso gera, o blockchain pode, por meio da configuração de smart contracts, superar alguns dos problemas ligados à reprodução indevida de criações intelectuais por terceiros, garantindo, em muitos casos, a distribuição de royalties (o nome correto é direitos autorais) aos criadores e demais detentores dos direitos de propriedade intelectual .

Mas é bom ponderar que, se, por um lado, os mercados da arte, da moda, dos games, da música, do metaverso e de tantos outros são beneficiados por uma nova forma de geração e de circulação de riquezas, por outro, eles acabam enfrentando desafios impostos pela própria estrutura da tecnologia. Como qualquer inovação em ascensão, os NFts representam um espaço aberto de criação, cujo uso e consequências do uso extrapolam as previsões iniciais de seus criadores.

Apesar da euforia inicial, as primeiras preocupações ligadas aos NFTs já estão em debate. Um dos principais desafios diz respeito ao armazenamento de dados. Sabe-se que muitos NFTs não são uma obra de arte em si. Pode acontecer de um NFT apenas trazer consigo um link ou um meio de acesso que permita ao seu adquirente visualizar o objeto representado. Se este for o caso, então uma possível quebra da barreira de segurança que protege o ativo armazenado em um storage privado por exemplo, pode fazê-lo desaparecer ou, então, dar azo à alteração de suas características originais. Inúmeras são as hipóteses que poderiam fazer o valor atribuído pela “escassez” perecer.

Outro grande desafio gira em torno dos riscos à privacidade. Algumas jurisdições, como a brasileira, prevê a possibilidade de o titular de dados pessoais excluir de determinado repositório dado identificado ou identificável em algumas circunstâncias. Essa faculdade atribuída ao titular de dados pessoais pode certamente esbarrar nas propriedades intrínsecas do blockchain como, por exemplo, a sua imutabilidade. Na eventualidade de determinado dado pessoal ser inscrito de forma pública em umo blockchain sem base legal, então está-se fatalmente diante de uma situação de violação irreversível. Neste caso, a única forma de reparação do dano consistiria na indenização. A mesma preocupação diz respeito à inscrição de NFTs potencialmente ofensivos a determinadas pessoas ou a um grupo de pessoas.

Por fim, a utilização de NFTs tem se tornado uma nova fronteira para a lavagem de dinheiro – faceta antiga do mercado de arte. Os valores estético e financeiro de objetos culturais, obras de arte raras e, hoje, NFTs, representam uma oportunidade aos olhos de quem busca alavancar receitas ilícitas por meio de wash trading. A ausência de critério objetivo para aferir o valor econômico dos NFTs, somada à ocorrência de transações realizadas por agentes protegidos por pseudônimos muitas vezes, fazem com que criminosos utilizem os NFTs como uma maneira sofisticada de ofuscar a fonte dos rendimentos do crime. Relatório publicado pela Chainalysis em 2022 revela que a lavagem de dinheiro via blockchain alcançou o patamar de US$ 8,6 bilhões durante 2021, o que representa um risco para a construção da confiança no mercado de NFTs.

As incertezas e críticas voltadas aos NFTs geraram uma onda de memes online, ironizando o frenesi do crescimento desse setor. A avalanche de NFTs de gosto minimamente duvidoso,  valores estratosféricos de algumas obras, a corrida pelos NFTs mais valorizados, e toda especulação em torno desse novo mercado cibernético tornaram-se prato cheio para quem satiriza a nova ode ao blockchain:

Charge de André Dahmer, 2021. (André Dahmer/Reprodução)

Apesar das dúvidas e dos riscos que guarda, o mercado de NFTs é bastante promissor. Enquanto juristas começam a especular sobre possíveis problemas envolvendo o comércio de NFTs, mais e mais ativos são “nefetizados” e caem no gosto de pequenos e grandes colecionadores, de computer geeks, de fãs e entusiastas, movimentando as atividades de diversas galerias online.  Neste primeiro momento, NFTs desempenham um papel fundamental no sentido de popularizar o uso da tecnologia blockchain. O público pode se sentir ainda intimidado ao investir em criptoativos devido às incertezas inerentes, à ausência de regulação específica e à atual dinâmica de mercado, mas começa a se familiarizar com os protocolos por meio de NFTs ligados a gostos pessoais e à cultura pop. O sucesso da economia digital depende dos efeitos de rede e da adesão expressiva dos usuários às plataformas. Os tokens sinalizam para o mundo que há algo novo sendo criado e novas formas de produção estão sendo implementadas a passos largos. Os tokens não são produtos finais, mas ferramentas multifacetadas construídas no blockchain, cujo potencial permanece pouco explorado. Os bons marinheiros que ousarem se lançar na onda destas tecnologias com criatividade em busca de inovação podem co-criar verdadeiras relíquias do futuro.


[1] Júlia Martins Rodrigues é advogada, pesquisadora interessada em democratização econômica e decentralização financeira, doutora pela Universidade de Camerino (Itália) e editora da Ownership Matters Newsletter. jmartinsr@pm.me

[2] Marcelo de Castro Cunha Filho é advogado sênior do escritório Machado Meyer, doutor pela Universidade de São Paulo (USP) e período de visita acadêmica no Massachusetts Institute of Technology (MIT), e autor de “Bitcoin e Confiança: análise empírica de como as instituições importam.”

[3] Juliana Abrusio é head da área de Direito Digital e Proteção de Dados do Machado Meyer, professora da pós-graduação stricto sensu do Mackenzie, doutora pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), mestre pela Universidade de Roma.

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