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Ascenção social e choque de culturas: o que acontece quando a favela vai morar no condomínio de luxo

Quando diferentes culturas se encontram no mesmo espaço de convivência, o estranhamento é inevitável. Mas, isso é sinal de evolução econômica, escreve Celso Athayde

Baile de favela: gostos musicais são um conflito comum entre gerações e pessoas de diferentes classes sociais (Nego Júnior/Divulgação)

Baile de favela: gostos musicais são um conflito comum entre gerações e pessoas de diferentes classes sociais (Nego Júnior/Divulgação)

Celso Athayde
Celso Athayde

CEO da Favela Holding

Publicado em 16 de janeiro de 2024 às 10h12.

Todo mundo busca a felicidade, é algo inerente ao ser humano. A própria ONU reconhece a felicidade como um direito básico desde 2011. Ou seja, o menino que viaja para a Disney todo ano, e o menino que brinca descalço nas ruas de terra da favela, têm o mesmo direito.

Ser feliz, como qualquer pessoa experiente sabe, não depende de bens materiais. Há ricos felizes e infelizes, assim como há pobres felizes e infelizes. Mas, nada obriga o pobre feliz a continuar pobre. Quem consegue ser feliz sem dinheiro, certamente terá capacidade de fazer o mesmo com a carteira cheia. É o que eu sempre digo, o pobre, o favelado, o periférico também têm direito ao lucro, não é uma exclusividade do asfalto.

A verdade é que o menino da favela quer ser rico. Comprar um carro “da hora”, uma lancha, usar roupas de marca e, especialmente, realizar o sonho dos parentes: uma casa para a mãe, levar a família para viajar, esse tipo de coisa “normal” para os ricos, e um sonho quase impossível para os pobres.

Entretanto, como sabemos, em geral os moradores de favela trabalham com serviços. São jardineiros, passadeiras, faxineiros etc. E formam seus filhos para serem também. A mobilidade social não é algo realmente possível em escala. A não ser para uma classe de profissionais da periferia cada vez mais em ascensão, que são os artistas de funk, rap, trap e de outras vertentes urbanas.

Estamos diante de um fenômeno global. As profissões e meios de produção estão mudando, e ninguém está conseguindo controlar. Para o desespero das classes mais abastadas, esses jovens de favelas estão ganhando muito dinheiro, quebrando todas as regras de mercado e realizando seus sonhos, o que inclui morar nos mais badalados condomínios das grandes cidades. Sim, eles estão residindo em condomínios de alto padrão a partir dessas mudanças inesperadas na dinâmica social.

Esses artistas de uma cultura marginalizada são desestimulados a morar em determinadas áreas há tempos. O mesmo acontece com esportistas. Lembro que Ronaldo Fenômeno quase foi expulso de um condomínio na Barra da Tijuca por suas opções musicais. Posso citar aqui tantos outros periféricos que certamente teriam muitas histórias a contar: Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Adriano e Romário, entre outros jogadores de futebol e cantores de funk que resolveram ir para a famosa “comunidade carente” de Alphaville em Barueri (SP).

A nova geração de emergentes de favela, no entanto, é diferente. Esses jovens não são apegados a regras de condomínio, sobretudo porque, em geral, moram sozinhos ou com amigos, e toma-lhe festas – algumas vezes acompanhadas de exageros.

Mas, e daí? Fazer bagunça nos condomínios nunca foi uma prerrogativa deles, todo condomínio tem os exagerados ou mesmo os exagerados convidados. O fato é que eles são mais tolerados ou compreendidos por conta do corporativismo da elite.

Vou dar um exemplo real.

Neste final de ano, a convite do Poze do Rodo (um MC oriundo de uma favela do Rio cujo cachê beira seus R$ 200.000), estive em um condomínio luxuoso no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro. Na entrada, encontrei três outros MCs com carros importados, entre eles Nego do Borel. Depois de todos os procedimentos de segurança, segui meu caminho por dentro da comunidade murada. Fiquei imaginando o quanto deveria ser difícil para aqueles milionários de berço ou emergentes convencionais aceitar aqueles “negrinhos forgados” nos seus condomínios, já que morar ali é de alguma forma uma maneira de viver longe desse perfil, digo, dos marginalizados e oprimidos.

Em algum momento do dia, o Poze disse: “Celso, tira o carro daqui e coloca ali porque esse vizinho não gosta de nós”. Até aí, nada demais. Não existe nada mais antigo do que briga de vizinho. Só que ali as motivações eram outras. O que estava em jogo era o estranhamento de hábitos e culturas.

A partir desse dia, eu passei a perceber um número maior de reclamações públicas de vizinhos inconformados com o comportamento desses novos e animados ricos, e nem mesmo a Ludmilla escapou da ira desses nobres vizinhos. Mas, na minha visão, é importante que esses artistas tenham mesmo a coragem de ir para esses espaços.

Hoje eu moro em um condomínio de classe alta, e sinto certo constrangimento nessa convivência. O fato de nós, periféricos, alcançarmos o sucesso e optarmos por morar em locais associados à elite gera desconforto. Para muitos, isso é racismo e puro preconceito. Para outros, os ricos estão apenas reivindicando o direito de viver exclusivamente com quem tem a sua formação cultural.

Esse choque de classes nos condomínios, especialmente quando artistas de funk se mudam para áreas de alta sociedade, pode ser explicado pela disparidade econômica e social entre diferentes estratos da sociedade. A presença de artistas de funk, muitas vezes associados a origens socioeconômicas distintas, pode desafiar as expectativas e normas culturais estabelecidas na comunidade de elite. O conflito surge quando diferentes estilos de vida e valores entram em contato, e bummmmm!

Não precisamos fazer esforço para reconhecer as nossas divisões, preconceitos e estereótipos e, por consequência, as tensões.

Porém, quando fui embora da casa de Poze, um moleque dourado, típico rico e educado, me parou perto da portaria e perguntou se eu estava vindo da casa do TZ da Coronel (outro MC residente no mesmo condomínio).

- Não, não estou!

- Do Poze?

- Sim, estou vindo da casa dele.

O menino ficou feliz só por saber que ele acabou de encontrar alguém que conhece seu ídolo. E aí é onde está a grande contradição: os pais odeiam esses vizinhos que às vezes passam do ponto (é preciso reconhecer), e seus filhos amam esses jovens cantores. A minha conclusão é que os dois lados precisam saber construir um pacto de convivência e compreensão para além das regras convencionais. Pois, a cada ano, mais e mais jovens das favelas serão incluídos na Forbes e comprarão suas lanchas, serão vizinhos de pessoas importantes e, muito em breve, os 'Poze do Rodo' concorrerão à condição de síndico.

O futuro chegou e a democratização da riqueza parece inevitável.

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