ESG

A história de Juliana Souza e a luta antirracista

A autora do livro “Torrente ancestral, vidas negras importam?” oferece uma visão abrangente da dificuldade de se quebrar barreiras sociais no Brasil

A advogada e escritora Juliana Souza: “Enquanto sociedade, tem lugar para todo mundo, e quando conseguirmos entender isso seremos mais ricos em todos os sentidos, inclusive financeiramente” (Arquivo pessoal/Divulgação)

A advogada e escritora Juliana Souza: “Enquanto sociedade, tem lugar para todo mundo, e quando conseguirmos entender isso seremos mais ricos em todos os sentidos, inclusive financeiramente” (Arquivo pessoal/Divulgação)

DR

Da Redação

Publicado em 24 de outubro de 2022 às 15h29.

Última atualização em 24 de outubro de 2022 às 15h46.

Juliana à primeira vista tem um olhar doce, com porte elegante que não passa desapercebido nem aos olhares mais distraídos. Apesar da fala em tom suave, as palavras vêm com uma firmeza e rapidez de pessoas de uma inteligência acima da média. Juliana sabe exatamente de onde veio e aonde quer chegar. Suas ideias são objetivas, lapidadas pela vitoriosa formação em direito.

Sua maneira de apresentar a causa antirracista também fortemente ligada à busca da equidade de gêneros vem do olhar de uma menina que cresceu, como ela mesmo diz, “do outro lado da ponte” cercada por mulheres que se apoiaram e cuidaram, e que hoje são as seis mulheres de quem Juliana agora orgulhosamente cuida. Atualmente morando nos Jardins, em um endereço onde no passado essas mesmas mulheres só teriam frequentado como prestadoras de serviços domésticos, Juliana deu um grande passo geográfico, intelectual e profissional, e representa um grande exemplo de quebra da barreira social ainda tão presente no Brasil.

Juliana afirma que sua vitoriosa trajetória se deve em parte ao fato de sempre ter tido um senso de responsabilidade muito grande, mas também afirma que o que a diferencia de outras Julianas que estão por aí, não é o fato de ser uma pessoa muito genial ou articulada, mas sim de ter tido oportunidade. Assim como ela, existem muitas meninas com a mesma vontade e a mesma capacidade de crescimento, e afirma que a diferença entre elas é que as pessoas não sabem que essas outras meninas existem.

Ela conta que sua mãe e suas tias foram o sustentáculo para que ela pudesse chegar aonde chegou, e seu trabalho é uma forma também de devolver tudo que essas magnificas mulheres doaram de si em vida, sangue, suor, trabalho, noites sem dormir, para que Juliana pudesse alcançar novas fronteiras geográficas, profissionais e sociais. Juliana diz que essas mulheres forjaram quem ela é hoje, assim como aconteceu com muitas outras meninas que estão pelo mundo.

Para as mulheres que ainda não conseguem encontrar essa força, a possibilidade de olhar para dentro, olhar reflexivo sobre si mesmas e as condições as quais foram submetidas historicamente, quais foram as oportunidades ou possibilidades que cada uma dessas mulheres teve de sair da situação que se encontravam, permite apontar os caminhos possíveis para essa transformação.

Juliana tem tido acesso lugares onde segundo ela geralmente não se conversaria de igual para igual, mas estariam em um lugar de subserviência ou de subalternidade, onde as pessoas não estão acostumadas a ver mulheres como ela passeando com tranquilidade, com articulação, e conhecimento, se comunicando de maneira horizontal, com a oportunidade de uma troca e aprendizado com as pessoas a sua volta.

Seu livro Torrente ancestral, vidas negras importam? lançado na última Bienal do Livro em São Paulo deu a ela uma amplitude tão significativa de visão e objetivo que a fez ser capaz de escrever seu livro como se fosse um verdadeiro “download” nas madrugadas de apenas uma semana.

O livro foi escrito na época que João Pedro, um menino carioca de 23 anos, morreu assassinado pela polícia na sua casa enquanto jogava videogame. A tragédia aconteceu durante a pandemia, quando um helicóptero de polícia fuzilou a casa dele durante uma perseguição. Houve uma grande comoção nacional, aconteceu no mesmo período que a morte de George Floyd nos estados Unidos com a mobilização Black Lives Matter.

Nessa mesma época, ao se reunir com um grupo de advogados, Juliana foi apresentada à empresária Paula Lavigne, casada com Caetano Veloso, que imediatamente se tornou uma apoiadora da ideia e sugeriu organizar uma “live” com a cantora Anita, para que o movimento pudesse ter uma grande visibilidade nacional e assim poder trazer impacto.

A “live” teve 20 mil pessoas assistindo ao vivo e em 24 horas já apresentou 2 milhões de visualizações, e assim muitas pessoas começaram a procurar Juliana, impressionadas com o trabalho que passaria a ser feito pelo Instituto Desvelando Oris, fundando por Juliana, que atua principalmente com mulheres e jovens em situação de vulnerabilidade socioeconômica, envolvendo também nessa conversa quem desconhece essa realidade, buscando assim a colaboração na elaboração de outras possibilidades de apoio e crescimento.

Juliana percebeu a importância de ampliar a discussão de assuntos que até então para ela eram óbvios, para um grupo maior de pessoas. Entre os pontos principais abordados na “live” também são abordados no livro Torrente ancestral, vidas negras importam? que segundo Juliana inclui questionamentos importantes, entre eles:

  • O que é ser antirracista?
  • Qual a importância dessa discussão pela sociedade como um todo, não só restrita a uma comunidade, seja a comunidade negra ou as mulheres, quando por exemplo falamos da equidade de gênero, mas como ampliar esse debate e pensar em ações concretas de forma macro e micro, nos círculos sociais, nas empresas, com nossos funcionários, e como pensar em alternativas colaborativas.
  • Como conseguimos convidar pessoas que estão próximas a nós para atuar nesse sentido.
  • Reflexões e retrospectivas históricas que são convites para novas práticas, novos fazeres, novos olhares.

O lançamento do livro na Bienal foi bastante significativo, por ser simbolicamente tão importante para a cultura e educação do nosso país, e especialmente dado o apagamento do que foi a contribuição de pessoas negras no Brasil, afirma Juliana, que não se refletem nos espaços de poder, na aquisição de propriedades, de forma material ou mesmo simbólica. O livro é também uma reinvindicação da cultura e história negra no Brasil, e toda a intelectualidade que vem na busca de um espaço de reconhecimento concreto.

Na questão da equidade de gênero, Juliana reforça que quando percebemos a força da união, da troca, do cuidado e acolhimento entre pessoas, passamos a viver toda a potência e potencializar a nossa própria existência e das pessoas à nossa volta, sejam as mulheres à nossa volta, seja a nossa própria família ou colegas de trabalho, todos saímos ganhando na vida prática, mas também intelectual e espiritualmente falando. Se abre uma visão e uma potencialidade que são exponenciais.

“A união de mulheres, em especial, na busca de um propósito comum, que normalmente é multifacetado, e daí percebemos a importância e a beleza da diversidade em todos os sentidos da palavra, entendemos que todos temos algo a dizer e a contribuir, e o tecido social se parece muito com uma colcha de retalhos formado por muitas mãos e muitas experiencias é riquíssima”, afirma.

Juliana continua dizendo que na união genuína em torno de um propósito conseguimos avanços muito mais rápidos, e que por outro lado o feminismo umbilical que muitas vezes acontece quando existem pautas que são instrumentalizadas em benefício próprio traz um grande desserviço, já que sustenta discursos de pessoas que não estão pensando na força da união mas sim em suas próprias agendas.

“Enquanto sociedade, tem lugar para todo mundo, e quando conseguirmos entender isso seremos mais ricos em todos os sentidos, inclusive financeiramente”, conclui Juliana e continua dizendo que nos cercarmos de pessoas que pensam igual a nós impede o aprendizado, a evolução e o crescimento, e nos deixa em uma situação de conforto, porém sem sair muito do lugar.

Juliana termina desejando força, autoconfiança, autoconhecimento, e saúde mental, que nos possamos buscar nos conhecer, construindo espaços e momentos em que possamos olhar para nós mesmo, e mesmo vendo as diferenças consigamos acreditar em nós mesmos sem nos comparar com outras pessoas, entendendo que cada pessoa tem seu próprio caminho, sua trajetória, e finalmente que alcançar seu sonho é possível mesmo com um contexto de família e social que a princípio pareça desencorajador. “Mesmo que a sociedade diga não, existe sempre um sim para você, desde que você busque, siga, se aproprie de si e obviamente encontre oportunidades para realizar toda a sua potência e o seu proposito. Existe muita gente preparada, mas muitas vezes o que falta é a oportunidade, a visibilidade, esse olhar, esse lugar para que você possa brilhar e iluminar também outras pessoas.”

No mês de outubro, a convite do Pacto Global da ONU Brasil, plataforma que reúne o setor empresarial para atuar com impacto mensurável nos ODS, tanto na evolução dos modelos de negócios como na implementação de projetos em parceria, Juliana e seu Instituto Desvelando Oris foram até a sede da ONU Nova Iorque acompanhada de seu vice-presidente Jalison Mendes. O evento tratou de objetivos do desenvolvimento sustentável, buscando lançar diversas iniciativas de empresas ao lado de organizações negras e indígenas, acompanhando discussões de como tem sido a evolução do tema nas empresas. Um passo marcante no crescimento de Juliana, que agora além de ter quebrado barreiras de pontes locais, agora já coloca a radicalização dos debates de sustentabilidade em um contexto global.

Instituto Desvelando Oris, “oris” na linha africana ioruba significa cabeça, e o instituto busca despertar novos olhares e novas perspectivas que já existem dentro das pessoas, ressignificando a potência interior através de um trabalho de instigar e conectar pessoas e propósitos, instituições e direitos. Trabalham com jovens e mulheres em situação de vulnerabilidade econômica em duas frentes principais de atuação são o direito e a educação em especial em territórios periféricos. O Instituto fica localizado no bairro dos Jardins justamente para fazer o papel de integrar e estimular essas pessoas não apenas culturalmente falando, para conhecer esse outro lado da cidade, mas também para conectá-los com potenciais oportunidades, mostrar o que está acontecendo “do outro lado da ponte” ou “do outro lado da linha do trem”, e o que as pessoas estão fazendo por aqui.

O momento é de buscar parceiros e apoio financeiro para consolidar esse trabalho que é feito a mais de 10 anos e agora está organizado no instituto, e com isso ampliar esse impacto nas vidas de jovens, mulheres e pessoas em geral, e contribuir com essa transformação que o nosso país tanto precisa. E Juliana está apenas começando!

*Carolina Andraus é formada pela FGV, ex-mercado financeiro, empreendedora, desenvolveu e vendeu diversos projetos no mercado imobiliário e de infra-estrutura. Cursou especializações na Harvard University e Columbia University. Recentemente tem se dedicando a projetos ligados à educação e a questões da igualdade de gênero e os direitos da mulher.

Acompanhe tudo sobre:Racismo

Mais de ESG

Petrobras (PETR4) realiza pagamento de dividendos nesta segunda-feira

Sodexo reduz emissões em 30% com programa de combate ao desperdício de alimentos

Shutdown evitado nos EUA, pronunciamento de Lula e Focus: o que move o mercado

Mega da Virada pode chegar a R$ 1 bi em breve, diz CEO da Caixa Loterias