Vivendo uma crise tripla, Argentina emperra comércio com Brasil
Liberação de importados com prazos de 10 dias demoram muitas vezes 60 ou 120 dias, por conta do endurecimento do regime de controle cambial
Ligia Tuon
Publicado em 22 de agosto de 2020 às 09h56.
Última atualização em 22 de agosto de 2020 às 10h12.
Quarto maior destino das vendas brasileiras, a Argentina tem irritado integrantes do comércio entre os dois países, com atrasos de mais de três meses na liberação de importações.
"Misturou crise econômica, pandemia e crise da dívida", diz Federico Servideo, diretor-presidente da Câmara de Comércio Brasil-Argentina, à Exame. Segundo ele, as autorizações com prazos de 10 dias demoram muitas vezes 60 ou 120 dias, por conta do endurecimento do regime de controle cambial.
Recentemente, a Câmara de Importadores da República Argentina (CIRA) reclamou de mais de 1.000 licenças sem desbloqueio, necessário para retirar a mercadoria do porto. Dessas, grande parte são de produtos do Brasil.
Representando os exportadores brasileiros, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) se queixa da exigência de documentos adicionais não previstos nas normas internas do país, o que causa demora na liberação e insegurança jurídica.
Além disso, a CNI fala do recente aumento de licenças não automáticas incidentes sob produtos brasileiros. Segundo levantamento da confederação, 52,3% das exportações do Brasil para a Argentina passam por esse tipo de regulação atualmente. Em 2019, essa porcentagem era de 18%, que, segundo queixas de importadores argentinos à imprensa local, já havia sido o pior ano da última década.
"A situação está sendo recebida com bastante preocupação, e as casas importadoras da Argentina têm se expressado enfaticamente sobre a necessidade de resolver essa situação", diz Servideo, que garante que as tensões estão sendo resolvidas no diálogo entre os dois países.
Crise tripla
Os argentinos já entravam em seu terceiro ano de recessão e encaravam inflação galopante e crise fiscal quando veio a pandemia. O país caminha, agora, para o pior momento econômico dos últimos 20 anos.
Em meio a esse cenário, a necessidade por caixa em dólares se tornou mais urgente do que nunca, depois que a renegociação da dívida internacional argentina foi anunciada, há dua semanas.
Além de precisar honrar o compromisso, a Argentina precisa reunir esforços para sobreviver à mais longa quarentena do mundo. O país está praticamente fechado há cerca de 160 dias, em função da dificuldade para conter a disseminação da covid-19 em seu território, onde mais de 6 mil pessoas já morreram após contrair a doença.
"Com acesso restrito ao mercado financeiro internacional, a única forma de atrair mais dólares para o país é fazendo superávit comercial", diz José Augusto de Castro, presidente da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB).
Para ter superávit comercial exportando mais, no entanto, a Argentina precisa importar, já que grande quantidade de itens usados por sua indústria vem de fora, ressalta Servideo. O fluxo comercial da Argentina com o resto do mundo já é deficitário, ou seja, o país importa mais do que exporta.
Vale ressaltar que as reservas argentinas na moeda americana estão muito enfraquecidas, em torno de US$ 10 bilhões. No Brasil, que possui uma boa quantia guardada, esse valor é da ordem de US$ 400 bilhões, por exemplo.
Corrida por dólares
A longa crise doméstica da Argentina já vinha afetando de forma generalizada as suas importações, que caíram pela metade nos cinco primeiros meses do ano com o impacto da pandemia.
Após 23 meses consecutivos de queda, o governo de Alberto Fernández decidiu mudar seu posicionamento estratégico no comércio internacional, com a criação do Gabinete de Comércio Exterior, anunciado há duas semanas para "promover a produção nacional, a busca de mercados para os produtos argentinos e o planejamento da importação de bens e serviços que possam ser produzidos localmente, com uma visão sustentável em matéria ambiental”.
No fim de maio, o Banco Central argentino já havia começado a emitir algumas regulamentações para estabelecer um controle de câmbio ainda mais restrito para evitar ou reduzir que os dólares sejam pagos para o exterior.
À imprensa local, o ministério de relações comerciais argentino diz que a grande maioria dos pedidos de importação são autorizados em menos de dois dias. Uma minoria está pendente por erros de carregamento, inconsistências e falta de informação.
Não é a primeira vez que a Argentina passa por essa situação. Em 2015, durante o governo de Cristina Kirchner, o controle cambial era ainda mais rigoroso.