Economia

Piketty e a urgência de democratizar a economia europeia

Em seu novo livro, o incensado economista propõe a criação de uma assembleia para discutir as políticas econômicas da zona

Europa: é preciso identificar a instituição democraticamente responsável que conduz atualmente as políticas econômicas no continente. (Neil Hall/Reuters)

Europa: é preciso identificar a instituição democraticamente responsável que conduz atualmente as políticas econômicas no continente. (Neil Hall/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 11 de novembro de 2017 às 08h43.

Última atualização em 11 de novembro de 2017 às 14h57.

Por uma Europa democrática

Autores: Stéphanie Hennette, Thomas Piketty, Guillaume Sacriste e Antoine Vauchez

Editora: Intrínseca

96 páginas

R$ 39,90; ebook R$ 24,90

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A crise econômica mundial está prestes a completar 10 anos e a Europa tem se mostrado um continente particularmente suscetível aos males do crash de 2008. Um dos grandes símbolos dessa era foi a Grécia. O país recebeu mais de 300 bilhões de euros em empréstimos, numa tentativa de salvar os bancos e a economia local.

Os benefícios, porém, vieram com um preço. Para receber as injeções monetárias, o governo grego foi obrigado a adotar medidas de austeridade profundas. Aposentadorias sofreram cortes 14 vezes desde o início da crise. O país tem a maior taxa de desemprego da União Européia: 23,5%. Houve um aumento de 40% na taxa de pobreza desde 2008; hoje ⅓ dos gregos vive nessa situação.

Mas, de acordo com um estudo da Universidade ESMT de Berlim, apenas 5% dos empréstimos que a Grécia recebeu foi destinado ao orçamento. A maior parte do montante foi usado para socorrer as instituições financeiras, para pagar dívidas e juros. O país e o Chipre são os únicos que ainda recebem suporte financeiro.

Obviamente, a Grécia abriga “apenas” alguns milhões dos cidadãos europeus que sofreram na pele as consequências da crise de 2008. Portugal, Irlanda e Espanha também viram suas economias ruírem. Outra grande símbolo da insegurança econômica, social e política gerado pelo crash dos anos 2000 foi o Brexit, a decisão tomada pelos cidadãos do Reino Unido de sair da União Europeia. O país, aliás, já nem fazia parte da chamada zona do euro, e decidiu sair de vez das estruturas supracionais de governança da UE.

Também está entrando em crise uma certa previsibilidade política que o Velho Continente cristalizou após a Segunda Guerra Mundial. De maneira geral, os países da Europa Ocidental mantiveram repúblicas (parlamentaristas, em grande parte) em que partidos de centro-esquerda e centro-direita se revezaram no comando das nações. Os anos 2010 estão vendo a volta de um extremismo político de direita como, por exemplo, Marine Le Pen (França), Sebastian Kurz (Áustria) e Geert Wilders (Holanda).

É esse contexto de desconfiança extrema que uma proposta ousada surgiu em 2017. Embora a União Européia conte com estruturas representativas relativamente democráticas, como o Parlamento Europeu, a política econômica da zona do euro não passa pelo escrutínio dos eurodeputados. Diferentemente do padrão adotado nos países democráticos contemporâneos, o “orçamento” adotado pelos órgãos econômicos que regulamentam a Europa não são analisados pelos representantes eleitos de cada país.

Para resolver essa falha democrática da zona do euro, o economista francês Thomas Piketty se aliou a outros intelectuais para criar o T-Dem. Trata-se de um acordo firmado entre os países que adotam o euro como moeda para tornar as decisões econômicas mais democráticas, transparentes e sujeitas a regras de representação que respeitem a composição populacional dos países envolvidos.

No livro Por uma Europa democrática, Piketty, Stéphanie Hennette (professora de direito público na Universidade Paris Nanterre), Guillaume Sacriste (professor de ciências políticas na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne) e Antoine Vauchez (pesquisador do Centro Europeu de Sociologia e de Ciência Política) justificam e destrincham a ideia de criar um novo parlamento, que tome decisões ligadas à política econômica da zona do euro.

Segundo os autores, o tratado é necessário porque é difícil “identificar a ‘instituição’ democraticamente responsável que conduz atualmente as políticas econômicas europeias”. O órgão que hoje toma essas decisões, conhecido como Eurogrupo, “funciona à margem dos tratados europeus e, portanto, não precisa prestar contas ao Parlamento europeu, nem a fortiori aos parlamentos nacionais. O Eurogrupo, aliás, é formado pelos ministros da zona do euro e é onde as políticas orçamentárias são formuladas. Piketty, reconhecido mundialmente pelo seminal estudo O capital no século XXI, argumenta que a assembleia que nascerá do proposto T-Dem precisa ter “a capacidade de participar plenamente da direção da zona do euro”.

Pode parecer sandice a proposta de criar uma instância decisória na já complexa União Europeia. Principalmente levando-se em conta a necessidade de que todos os 27 estados-membros da UE analisem e ratifiquem tamanha estrutura. Os autores argumentam, no entanto, que existem precedentes jurídicos para o nascimento do T-Dem. Os 17 estados signatários (os que usam o euro como moeda) “são competentes para firmar o tratado, que não infringe a competência exclusiva da União Europeia em matéria de política monetária”.

Fazendo uma interessante analogia com o aikido, arte marcial japonesa, o livro afirma que o T-Dem usa os caminhos abertos pelo “inimigo” – ou seja, as estruturas pouco transparentes e pouco democráticas usadas atualmente para determinar a política monetária da zona do euro- para explorar as possibilidades de uma “mudança política rápida”. Outros tratados, como o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MES) e o Tratado sobre a Estabilidade, a Cooperação e a Governança (TSCG), por exemplo, criados para tentar remediar a crise econômica de 2008, servem de modelo para a proposta de Piketty e seus aliados. Mas, dessa vez, para democratizar o poder de decisão.

O livro dá detalhes de como seria a composição da futura assembleia. Ela respeitaria a proporção populacional dos países integrantes, distribuindo as cadeiras de acordo com o número de habitantes. Além disso, os autores preveem que os integrantes do Parlamento Europeu devem ter lugares assegurados. De acordo com os critérios adotados, a assembleia resultante do T-Dem, diz o livro, estaria mais à esquerda. Ou seja, a austeridade seria minoria na casa representativa. Caso uma instituição como essa existisse há dez anos, talvez as condicionalidades dos empréstimos e dos socorros dados a Grécia, Espanha, Chipre e outros não tivessem exigido tantos cortes na seguridade social e nos investimentos públicos de cunho social. Essa, pelo menos, é a sugestão de Piketty e seus colegas.

Mesmo que a ideia não venha a ser aprovada -e isso realmente parece improvável frente à realidade política europeia e mundial- os autores consideram que o mero debate a respeito da necessidade de uma governança democrática nas políticas monetárias da zona do euro já seriam um ganho importante para a sociedade europeia. Atualmente, os povos e os parlamentos nacionais estão sendo amplamente ignorados na definição dos rumos gerais da economia do continente europeu. O T-Dem é uma tentativa de “fortalecer as políticas de coordenação econômica e orçamentária e de convergência fiscal e social necessárias ao bom funcionamento da zona do euro, adotando um pacto democrático e assim sustentando a realização dos objetivos da União Europeia”, de acordo com o Artigo 1 do tratado.

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