Economia

Orçamento paralelo: gastos secretos apontam para novos riscos do governo

Para atender aliados, Planalto criou gastos de 3 bilhões de reais que não aparecem no orçamento oficial. Enquanto parlamentares de oposição alegam improbidade administrativa, economistas apontam novo descontrole nas contas do governo

 (Marcelo Camargo/Agência Brasil)

(Marcelo Camargo/Agência Brasil)

FS

Fabiane Stefano

Publicado em 12 de maio de 2021 às 07h14.

Última atualização em 12 de maio de 2021 às 08h57.

(Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Nos corredores do Congresso e nas antessalas dos gabinetes em Brasília, causou pouca surpresa a destinação de verbas de emendas parlamentares bilionárias fora do radar de órgãos de controle, como o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Ministério Público Federal (MPF). O governo criou uma espécie de um orçamento paralelo de 3 bilhões de reais, fora do teto de gastos, para atender emendas do relator, segundo revelou o jornal O Estado de S. Paulo no dia 8 de maio.

Boa parte dos recursos foi utilizada para a compra de tratores e maquinário agrícola em redutos eleitorais de deputados e senadores, a valores muito acima dos praticados no mercado, expediente que ficou conhecido como “tratoraço.” Criada no ano passado, a nova modalidade de distribuição de emendas, chamada de RP9, contemplou aliados do presidente Jair Bolsonaro, como o ex-senador Davi Alcolumbre, ex-presidente do Senado, que apontou o destino de 277 milhões de reais em verbas.

“Era mais do que esperado que algo assim fosse acontecer”, diz o deputado federal Tiago Mitraud (Novo-MG). Com a polêmica do orçamento secreto, o Partido Novo protocolou um pedido de apuração do caso junto ao TCU. A aprovação, no ano passado, da criação do mecanismo de emendas do relator do Orçamento, que passou a concentrar uma verba bilionária nas mãos, pavimentou o caminho para o uso pouco ortodoxo de verbas públicas, na visão do parlamentar. “Simplesmente não deveriam existir emendas parlamentares. Isso é o jeitinho brasileiro em ação”, avalia Mitraud.

O caso, que envolve o repasse de verbas por meio do Ministério do Desenvolvimento Regional e a estatal por ele controlado, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), vem esquentando. Foram identificados 101 ofícios entregues por parlamantares de maneira extra oficial ao ministério, por meio das emendas do relator, a RP9. 

Na terça-feira, dia 11, a oposição protocolou uma representação no MPF por improbidade administrativa contra o ministro Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e Marcelo Moreira, presidente da Codevasf. Bolsonaro, por ser presidente da República, não pode ser enquadrado em atos de improbidade administrativa.

"Em relação à responsabilização do presidente, vai depender da demonstração de interesse do governo em usar esses recursos para interferir no poder. Nesse caso, é crime de responsabilidade", afirmou o deputado Alessandro Molon (PSB-RJ), líder da Oposição na Câmara. "Não tenho dúvida que, se forem confirmadas as suspeitas que envolvem o governo dele, Bolsonaro pode sofrer impeachment por esse caso. É tentativa de interferência em outro poder", disse.

No Tribunal de Contas da União (TCU), a Oposição pede a suspensão do pagamento dos 3 bilhões de reais em emendas, que teriam destinação definida por parlamentares em troca de apoio ao governo federal. Os deputados demandam uma medida cautelar para que o dinheiro não possa ser usado até o fim do julgamento da demanda pelo TCU ou até que seja disponibilizado um sistema de informações transparente, que mostre quem indicou os beneficiários.

As duas representações, ao MPF e ao TCU, contam com assinaturas de Molon e de outras seis lideranças: da Minoria, Marcelo Freixo (PSol-RJ); do PT, Bohn Gass (RS); do PSB, Danilo Cabral (PE); do PDT, Wolney Queiroz (PE); do PSol, Talíria Petrone (RJ); e da Rede, Joenia Wapichana (RR).

Na Câmara e no Senado, continua a busca por assinaturas para abertura de Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. Até o início da noite de terça-feira, 11, o senador Roberto Rocha (PSDB-MA), que sugeriu a instalação do colegiado no Senado, contava apenas com duas assinaturas: a dele e a do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE). São necessárias 27 para que o pedido seja analisado pelo presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).

O deputado Ivan Valente (PSol-SP), que busca apoio para instalar a CPI na Câmara, ainda não divulgou o número de assinaturas que conseguiu até o momento. Molon considera as duas iniciativas positivas, na Câmara e no Senado. Para ele, a instalação de uma comissão mista, de deputados e senadores, seria a melhor opção. "Vejo com bons olhos. Uma CPMI seria o ideal, já que envolve suspeitas relacionadas a membros das duas Casas", disse.

Na avaliação dos parlamentares, ainda é cedo para saber se as acusações podem desembocar num eventual impeachment. Mas o clima em Brasília piorou ainda mais com a revelação do caso, com o governo mais uma vez na berlinda – o Congresso vem apurando a responsabilidade do Executivo na condução da crise do coronavírus, durante a CPI da Covid.

De novo, o orçamento

O episódio do orçamento secreto se soma a uma série de dificuldades em relação ao manejo das contas do governo federal. A partir de 2017, quando foi criado o teto de gastos para frear o crescimento das despesas da União, as negociações ganharam novas complicações e o ápice está sendo justamente em 2021.

As regras que regem o teto utilizam dois indicadores para a correção dos gastos. Enquanto as despesas obrigatórias, como Previdência, seguro desemprego e o Benefício de Prestação Continuada, são indexados ao INPC, que no ano passado encerrou com um aumento de 5,45%, o teto de gastos é corrigido pela inflação acumulada em doze meses até junho do ano anterior. Em 2020, o IPCA fechou junho em 2,1%, o que permitiu uma expansão do teto para este ano de apenas 31 bilhões de reais. Logo, o descasamento entre indicadores encurtou cobertor.

O teto é muito rígido e não leva em conta todos os fatores necessários para fazer uma previsão mais assertiva do Orçamento do ano seguinte”, diz o economista Sergio Vale, da consultoria MB Associados. “No Chile, onde a lei do teto funciona muito bem, é feito um cálculo com base na estimativa do PIB para o ano seguinte, do preço do cobre, importante matéria-prima de exportação chilena e outros elementos. Aqui, levamos em conta a inflação do ano anterior, como se inflação no Brasil fosse algo estável. Não é.”

Por causa da pandemia, o governo alocou uma série de gastos emergenciais, algo em torno de 100 bilhões de reais, fora da regra do teto – o que é compreensível dadas as circunstâncias. Nesse valor, estão incluídos os 44 bilhões de reais do auxílio emergencial e os 10 bilhões de reais para o programa de redução de jornada e de salários. Essas despesas serão cobertas por crédito extraordinário e não serão computadas no cálculo da regra do teto de gastos, mas são gastos primários que têm impacto sobre a dívida pública.

Na prática, hoje o governo opera com três faixas de gastos: os listados dentro do Orçamento aprovado no Congresso; os que estão fora dele e, portanto, não estão sujeitos à Lei de Responsabilidade Fiscal; e agora a mais nova modalidade, a RP9, do orçamento secreto.

O problema é a tentação em tirar cada vez mais gastos fora da regra do teto para acomodar as demandas do governo e da sociedade. No Congresso, parlamentares deram sinais nos últimos dias que, diante do prolongamento da pandemia, será necessária mais uma extensão do auxílio emergencial e a melhor saída seria que essa nova rodada ficasse novamente fora da regra.

“Quem sugere um novo gasto acredita que ele é considerado extraordinário e, portanto, não deveria estar sob as regras do teto”, diz Arthur Mota, economista da EXAME Invest Pro, braço de análise de investimentos da EXAME. “É preciso parar de criar mecanismos de exceção para os gastos do governo, caso contrário a capacidade fiscal do país vai ficando cada vez mais frágil.”

Em entrevista recente à EXAME, o economista-chefe do banco BTG Pactual e ex-secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, disse que o Brasil perdeu 80 bilhões de arrecadação no ano passado, o que equivale a menos de 1,3% do PIB. Mas se não recuperar essa arrecadação, o país vai passar pelo menos mais cinco ou seis anos com déficits, mesmo cumprindo o teto de gastos.

Com as notícias que revelam a existência dos gastos paralelos, o país chega em maio de 2021 às voltas com as discussões de um Orçamento que, sancionado por Bolsonaro no final de abril após meses de atrasos e indefinições, continua descolado da realidade.

A essa altura do ano, num mundo normal, o governo e o Congresso já estariam discutindo o rascunho do Orçamento de 2022,  para que uma proposta inicial pudesse ser apresentada no final de agosto. Pelo jeito, a novela de 2021 deve se repetir no ano que vem.


O podcast EXAME Política vai ao ar todas as sextas-feiras. Clique aqui para ver o canal no Spotify, ou siga em sua plataforma de áudio preferida, e não deixe de acompanhar os próximos programas.

Assine a EXAME e acesse as notícias mais importante em tempo real.

Acompanhe tudo sobre:Câmara dos DeputadosCongressoJair BolsonaroMinistério PúblicoOrçamento federalSenadoTCU

Mais de Economia

Oi recebe proposta de empresa de tecnologia para venda de ativos de TV por assinatura

Em discurso de despedida, Pacheco diz não ter planos de ser ministro de Lula em 2025

Economia com pacote fiscal caiu até R$ 20 bilhões, estima Maílson da Nóbrega

Reforma tributária beneficia indústria, mas exceções e Custo Brasil limitam impacto, avalia o setor