Economia

Opinião: crise faz elite apertar o cinto Gucci, mas sem perder privilégios

Todos os barcos caem na maré baixa, mas na economia de refluxo do Brasil, você tem mais sorte se está em um iate

Ricos em uma cobertura na praia de Copacabana, no Rio, durante protesto pelo impeachment de Dilma Rousseff (Mario Tama / Staff/Getty Images)

Ricos em uma cobertura na praia de Copacabana, no Rio, durante protesto pelo impeachment de Dilma Rousseff (Mario Tama / Staff/Getty Images)

João Pedro Caleiro

João Pedro Caleiro

Publicado em 23 de maio de 2019 às 17h25.

Última atualização em 23 de maio de 2019 às 20h40.

Não está sendo nada fácil para produtos de seda e outros artigos de luxo importados pelo Brasil. Depois de 20 anos ostentando sua elegância no país, a Versace fechou sua única loja no Shopping Iguatemi, em São Paulo, no Natal do ano passado.

Chegaram ao fim também as atividades locais do conglomerado suíço Richemont, com sua coleção de relógios sofisticados IWC, Jaeger-LeCoultre, Panerai e Van Cleef.

Ficou tão raro achar macarons franceses na capital paulista quanto enxergar estrelas no céu da cidade iluminada. E que pena para os imitadores de James Bond, que perderam sua única concessionária Aston Martin em 2017. O México ultrapassou o Brasil como o mercado de artigos de luxo mais atraente da América Latina. Mas não pegue o lenço bordado para enxugar as lágrimas ainda.

Apesar de uma queda acentuada desde o início desta década, o mercado brasileiro de artigos sofisticados cresce a um ritmo mais forte do que a economia em geral: o segmento total de luxo cresceu 4,2% em 2018, segundo a Euromonitor, e o mercado de artigos pessoais de luxo deve acelerar a expansão no primeiro trimestre em relação ao ganho de 1,3% do ano passado, segundo Deborah Aitken, da Bloomberg Intelligence. Além disso, o cenário até 2022 ainda é animador, diz Mauro Mantica, da Update Brazil Consulting.

Em outras palavras, o colapso do setor bens de luxo é real, mas de um modo bem brasileiro. Sim, todos os barcos caem na maré baixa, mas na economia de refluxo do Brasil, você tem mais sorte se está em um iate. Esta é a história em um dos países mais desiguais do mundo, onde as consequências de uma frágil recuperação pesam mais sobre os consumidores na base da pirâmide.

Não é só o fato de os mais abastados apertarem os cintos e recorrerem às reservas quando há uma reviravolta. De muitas maneiras – repetidamente, de fato - os endinheirados conseguem consolidar seus privilégios, mesmo quando o mercado pune todo o resto.

Especialistas que acompanham o Brasil descobriram que a bonança dos anos 2000, época impulsionada pelo boom global das commodities, não significou a revolução na justiça social que os líderes haviam anunciado.

Analisando dados sobre imposto de renda antes sob sigilo, divulgados recentemente pela Receita Federal, os pesquisadores descobriram que, enquanto os pobres ficaram menos pobres e dezenas de milhões de brasileiros passaram a fazer parte da classe média de 2001 a 2015, os ricos ficaram ainda mais ricos.

“No geral, as elites ainda conseguiram captar frações desproporcionais do crescimento total devido à sua participação desproporcional na renda total”, escreveu Marc Morgan, do Laboratório Mundial de Desigualdade da Escola de Economia de Paris.

A recessão recorde de 2015-2016 e a recuperação dormente desde então só agravaram as iniquidades do Brasil.

“Em tempos de crise, os mais ricos, com maior nível de educação formal, conseguem se proteger mais”, disse o sociólogo Rogério Barbosa, atualmente pesquisador visitante da Universidade Columbia. “Os que têm renda mais baixa são mais vulneráveis ​​e, quando há retração, são os primeiros a perder.”

A desigualdade de renda tem aumentado constantemente nos últimos 17 trimestres, segundo dados recentes da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro.

O humor dos brasileiros se reflete nos números. A sociedade brasileira já foi considerada uma das mais otimistas do mundo. Agora, o fraco desempenho da economia contaminou o espírito nacional.

Uma recente pesquisa Gallup World revelou que o índice de bem-estar autodeclarado entre os brasileiros mostrou a terceira maior queda entre 130 países.

Normalmente, porém, nem todos os descontentes são prejudicados da mesma maneira. "O índice de felicidade do país teve uma queda impressionante devido à severa retração econômica entre 2014 e 2018", disse Marcelo Neri, economista da FGV, especialista em desigualdade. "Mesmo assim, os ricos estão menos descontentes do que o resto."

Analisando os microdados, Neri descobriu que em uma escala de 10 pontos, os 20% mais ricos do país viram seu índice de felicidade cair de 7,5 para 7,0 entre 2013 e 2018.

Em contrapartida, o sentimento de depressão da população em geral aumentou quase o dobro dessa taxa (7,1 para 6,2) durante o mesmo período.

A lacuna do bem-estar espelha outra disparidade brasileira mais persistente: o índice Gini, que mede a desigualdade de renda em uma escala de zero a um: quanto mais próximo de zero, mais igualitária a sociedade. Entre o fim de 2014 e dezembro de 2018, a desigualdade de renda per capita piorou acentuadamente, de 0,564 para 0,590, segundo Neri.

Embora a mudança nominal pareça modesta, o Brasil não tinha um aumento tão acentuado da desigualdade de renda desde 1989, quando a dívida e a hiperinflação estavam fora de controle, disse Neri.

A maré negativa é tão forte, diz Barbosa, que supera as boas notícias de uma década atrás: de 2003 a 2009, a classe média da América Latina havia crescido 50%, com a ascensão dos pobres do Brasil respondendo por 40% do aumento regional.

Em 2014, cerca de 29 milhões de brasileiros haviam saído da pobreza. No entanto, desde então, cerca de 6,3 milhões voltaram à miséria, com a desigualdade de renda tendo aumentado 50% até junho de 2018.

As implicações dessa reversão vão muito além de bugigangas e BMWs. Por exemplo, ninguém perdeu mais do que jovens e pessoas em extrema pobreza. Para sair de sua atual trajetória, o Brasil deve crescer mais rápido e mais forte, e também de forma mais justa.

“Crescer de maneira desigual significa perder seu potencial para elevar o bem-estar geral”, disse Barbosa. Isso não pode acontecer, a menos que o Brasil reformule as políticas que conspiram para concentrar riqueza, atrasar a produtividade e favorecer idosos em vez dos jovens.

O presidente Jair Bolsonaro, um ultraconservador rabugento que parece distraído pelas guerras culturais, terceirizou os grandes ajustes dos sistemas tributário e da Previdência para seu ministro da Economia, Paulo Guedes. Convencer um legislativo fragmentado de sua urgência é outra questão, como Guedes descobriu em uma série de audiências onde foi confrontado por comitês do Congresso.

O sistema tributário regressivo precisa de um remake para transferir a carga dos bens de consumo, nos quais as pessoas de baixa renda gastam a maior parte de seus salários, para renda e ativos.

Os salários do funcionalismo público relativamente abundantes agravam a desigualdade ao favorecer uma elite do setor público, em contraste com as práticas de países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico.

A privatização de estatais, embora ainda seja um tabu político, também pouparia receitas e aumentaria impostos que poderiam ser redirecionados para programas sociais ou de saúde.

O Brasil poderia reduzir o déficit de riqueza expandindo as transferências de dinheiro por meio do Bolsa Família, que ajuda mais pessoas de baixa renda do que as pensões de aposentadoria, e investir em educação básica, onde cada ano a mais na sala de aula traz um prêmio salarial de 13%.

E, no entanto, nada disso vai ajudar muito para diminuir a distância entre ricos e pobres sem a reforma do distorcido sistema da Previdência, que Guedes corretamente chamou de fábrica de desigualdade.

Consideremos que os aposentados mais ricos do Brasil (das classes A e B) recebem uma pensão média 100 vezes maior do que os 14% mais pobres, disse Neri. "Em vez de compensar a desigualdade, o atual sistema previdenciário concentra a riqueza", disse.

Pena que essa mensagem tenha sido abafada nos protestos desta semana, onde dezenas de milhares de pessoas marcharam contra a política de educação draconiana de Bolsonaro e quase tudo o que ele representa, como a reforma da Previdência.

Você não precisa de um relógio Patek Philippe para reconhecer que o prazo do Brasil está acabando para ajustar sua economia e seu colchão de segurança.

A indignação popular diante de decisões distorcidas - permitindo que mais armas circulem no país com a maior taxa de homicídio da América Latina, cortando verbas para todas as universidades e bolsas de estudo - é uma coisa. Mas confundir agressão partidária com reformas vitais é um luxo com o qual nenhum brasileiro pode arcar.

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