Economia

O capitalismo num mundo cada vez mais abstrato

O avanço da economia intangível ajuda a explicar o dilema do baixo investimento, a desigualdade e até a busca por líderes no mundo, dizem economistas

FEIRA DE GAMES EM LOS ANGELES: . Nos Estados Unidos, só em 2013 investimentos como programas de entretenimento, e originais de arte e literatura passaram a fazer parte das contas nacionais / Mike Blake/ Reuters (Mike Blake/Reuters)

FEIRA DE GAMES EM LOS ANGELES: . Nos Estados Unidos, só em 2013 investimentos como programas de entretenimento, e originais de arte e literatura passaram a fazer parte das contas nacionais / Mike Blake/ Reuters (Mike Blake/Reuters)

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Da Redação

Publicado em 23 de junho de 2018 às 08h45.

Última atualização em 23 de junho de 2018 às 09h33.

Capitalism without Capital: The Rise of the Intangible Economy

Jonathan Haskel e Stian Westlake

Princeton University Press

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Se tivéssemos sabido enxergar, já na década de 1950 teríamos identificado o fenômeno da economia intangível, disse o sociólogo espanhol Manuel Castells em seu livro A sociedade em rede, de 1999. Bastava analisar o valor da indústria da propaganda, das consultorias, do entretenimento – bens imateriais responsáveis por uma parcela crescente da riqueza mundial. Castells faz parte de uma corrente de teóricos que disseminaram conceitos como “era do conhecimento” e “era da informação”, entre outros, que se referem à economia intangível. Mas uma coisa é identificar um fenômeno, outra bem diferente é compreendê-lo.

E é disso o que trata o livro Capitalism without capital: The Rise of the Intangible Economy (“O capitalismo sem capital: a ascensão da economia intangível”, numa tradução livre), escrito por dois economistas britânicos, Jonathan Haskel, professor na escola de negócios do Imperial College, e Stian Westlake, diretor executivo da Nesta, uma fundação dedicada à inovação.

A questão, dizem eles, não é simplesmente constatar o avanço da economia intangível. É perceber que ela funciona de forma fundamentalmente diferente da economia tradicional. Em outras palavras: estamos usando ferramentas de análise econômicas velhas, para fenômenos completamente novos.

Para começar, nossos instrumentos de medição tradicionais não capturam a economia intangível. Isso tem mudado lentamente, e com grande dificuldade.

Nos anos 40, quando os países começaram a fazer contas de PIB, as máquinas de uma montadora de carros eram consideradas como investimento; mas o tempo que os projetistas gastavam para fazer o design do automóvel, não. O design era considerado algo completamente consumido no processo de produção, como a conta de eletricidade ou o aço usado no automóvel.

Duas décadas depois, os economistas começaram a questionar se esse tipo de conhecimento não seria mais duradouro – se o design acrescentava valor que fazia um carro vender mais, ele devia ser computado como um investimento. O mesmo deveria valer para outros tipos de conhecimento, como as práticas de gestão, por exemplo.

Aos poucos, isso foi entrando nas contas dos governos. Lentamente. Nos Estados Unidos, só em 2013 investimentos como programas de entretenimento, e originais de arte e literatura passaram a fazer parte das contas nacionais.

Não é apenas uma miopia em relação ao poder das ideias. É a dificuldade de medi-lo. Um noticiário de TV, por exemplo, se esgota no dia em que é produzido; um filme pode durar décadas. O primeiro não é investimento, porque não forma capital (algo do qual deriva um fluxo de serviços produtivos); o segundo é.

Há mais dificuldades: o investimento de um laboratório na descoberta de uma nova droga pode resultar numa operação de bilhões de dólares; mas basta uma recusa das autoridades de saúde em permitir testes em humanos para que o valor daquele investimento evapore.

O problema não é só a dificuldade de enxergar a economia intangível. É também entendê-la. Uma sociedade com alto grau de economia intangível se comporta de forma muito diferente de uma centrada na economia tangível, dizem Haskel e Westlake. E isso ajuda a explicar o aumento da desigualdade, a estagnação secular da economia e o aumento de importância da liderança, entre outras coisas.

As quatro cavaleiras da nova economia

De acordo com os dois economistas, quatro características dos ativos intangíveis provocam uma revolução na economia de mercado.

A primeira delas é a escala. Ativos intangíveis são bem mais propensos a ganhar escala do que ativos tangíveis. Economistas se referem a esse tipo de bens como “não rivais”, ou seja, duas ou mais pessoas podem usufruir deles ao mesmo tempo. Uma fatia de bolo só pode ser comida por mim ou por você (ou repartida); mas uma receita de bolo pode ser usada por nós dois (e outros milhões de pessoas) ao mesmo tempo.

Essa propriedade explica uma característica da economia moderna, que ficou conhecida como winner takes it all (o vencedor leva tudo). Se o bem é escalável, uma pequena vantagem pode me tornar líder absoluto no mercado. Foi assim, por exemplo, que o buscador do Google se tornou praticamente um monopólio; bastava ser um pouco melhor que os concorrentes para tomar todo o mercado (já que o custo de atender mais e mais consumidores cresce apenas marginalmente).

A segunda característica é que os ativos intangíveis são mais propensos a ter custos irrecuperáveis (sunk costs). Se uma empresa vai à falência, o imóvel em que ela opera tem valor de mercado, bem como a maior parte de suas máquinas. Mas ideias que dão errado não têm valor de mercado. Seu benefício é, em geral, contribuir para o sucesso de outras ideias, por mostrar caminhos a evitar.

Isso tem uma série de implicações. Ativos intangíveis são mais difíceis de financiar com empréstimos, por não poderem ser oferecidos como garantia (uma casa, ao contrário, tem crédito mais barato porque ela própria serve de garantia: se o empréstimo não for pago, ela vai para o credor). Isso torna os investimentos mais arriscados, mais voláteis, mais sujeitos a bolhas especulativas.

A terceira característica dos ativos intangíveis é que eles “derramam” seus benefícios. Quer dizer, nem sempre quem teve uma ideia brilhante é quem se beneficia dela.

Um exemplo do livro é o CAT, a tomografia computadorizada. A história começa, inusitadamente, com o sucesso dos Beatles. Eles movimentaram uma máquina de tanto dinheiro, nos anos 1960 (no auge da fama, 650 dólares por segundo, em dinheiro de hoje, pela venda de discos e ingressos), que ajudaram a criar uma cultura de investimentos na EMI, sua gravadora.

Uma das coisas em que a EMI aplicou as verbas abundantes foi na invenção do CAT, um projeto que levou quatro anos. Mas a General Electric (GE) e a Siemens licenciaram algumas das tecnologias da EMI e construíram máquinas maiores e mais eficientes. Em 1976 a EMI abandonou o setor.

Uma das consequências desse “derramamento” (spillover) é que os investimentos ficam ainda mais arriscados. Algumas empresas se especializam em colher os frutos dos inventos de outras (como na estratégia que ficou conhecida como fast copy), outras tratam de proteger ao máximo seus inventos.

De forma geral, argumentam Haskel e Westlake, o derramamento de ideias ajuda a explicar uma intrigante questão da economia moderna: a queda nos investimentos privados, combinada com alto retorno para quem investe. Pela lógica, se os investimentos dão bom retorno, mais empresas deveriam investir, certo? Mas, se com frequência só os líderes conseguem se apropriar dos benefícios do investimento, as empresas menos poderosas tenderiam a fazer menos e menos apostas – o que ajuda a explicar ainda outra questão atual: o crescimento da desigualdade entre empresas, com o fosso entre as maiores e as menores ficando mais largo.

Uma das soluções para o derramamento é o conjunto de políticas de proteção intelectual, como patentes ou direitos autorais. Mas essas políticas exigem uma sintonia fina considerável, sob o risco de abuso. É o caso, por exemplo, da famosa tentativa da Apple de patentear o movimento de dedo para desbloquear o celular. Ou, como citam os autores no livro, o argumento da fabricante de tratores John Deere de que seus clientes não tinham o direito de consertar as máquinas que compraram por conta própria.

Finalmente, a quarta característica vai na direção contrária do derramamento: é a sinergia. Ativos intangíveis tendem a se combinar e fortalecer uns aos outros.

As sinergias explicam a elevada importância, nos dias de hoje, de formar redes de relações, conhecer os avanços em seu setor e em setores contíguos, ter capacidade de relacionar-se e coordenar parcerias. Elas também ajudam a explicar a tendência à concentração de poder nas indústrias (aquisições carregam a promessa de que um mais um será maior do que dois, justamente pelos ganhos de eficiência e pelas possibilidades de inovação trazidas pelas tais sinergias).

Estagnação, desigualdade, liderança

Sob esse prisma, dizem Haskel e Westlake, é possível entender melhor a estagnação secular de que falou o economista Larry Summers, em uma palestra ao Fundo Monetário Internacional em 2013: a combinação estranha de crédito barato com a falta de apetite dos negócios para investir.

Como bem demonstrou o fracasso da tentativa da ex-presidente Dilma Rousseff em despertar o “espírito animal” dos investidores, no ocaso de seu mandato, há mais em jogo do que apenas o crescimento da economia intangível. Mas ela é sem dúvida um fator a ser levado em conta.

Especialmente em países onde os ativos intangíveis já representam mais da metade da riqueza total. Os Estados Unidos passaram por esse umbral em 1993. O Reino Unido, pouco depois. Mas a Europa como um todo ainda não. E o Brasil, obviamente, tampouco.

A ascensão de uma economia intangível também ajuda a explicar o aumento da desigualdade. Por uma razão muito simples. Como bem notou Thomas Piketty, no já clássico livro O Capital no Século 21, nas últimas décadas os governos deixaram de taxar a riqueza do modo como fizeram no auge dos regimes de estado de bem-estar social.

Costuma-se apontar o dedo para as políticas neoliberais de Reagan e Thatcher, dos anos 1980, mas um importante motivo para o decréscimo relativo da taxação às empresas é que ela vem se tornando menos e menos fácil de implementar. Ativos intangíveis podem se mover com muito mais facilidade – e esse movimento costuma se dar dos locais onde as taxas são mais altas para onde elas são mais baixas.

Para uma siderúrgica, não é tão simples mudar suas operações de uma região para outra; mas, para uma empresa de softwares, especialmente uma que terceiriza sua produção e na verdade só produz design e marca, a transferência requer um trabalho relativamente modesto de um escritório de advocacia.

Em outras palavras, não é tanto falta de vontade de elevar os impostos das empresas, mas falta de possibilidade.

Finalmente, a lógica dos intangíveis contribui para a exacerbada importância que ganhou a questão da liderança. Num mundo em que as ideias podem derramar para outros atores, em que é necessário costurar alianças e rede de colaboração, as habilidades de persuasão e compreensão de realidades complexas – elementos característicos do que hoje se considera ser um líder – ganham proeminência.

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