ARTIGO - Em quem você vai votar?
Não há a menor chance de o presidente ideal ser eleito este ano. Pelo simples fato de que ele não consta na cédula
Da Redação
Publicado em 9 de outubro de 2008 às 10h28.
Mudanças importantes na vida de países democráticos carecem de dois insumos básicos. O primeiro: um desejo amadurecido na sociedade de que essas mudanças aconteçam; uma espécie de consenso coletivo em relação à necessidade de mudar. (O ser humano é conservador. E o brasileiro o é em dobro. Várias vezes, o medo do novo supera entre nós a situação de sofrimento atual, por pior que ela seja.)
O segundo insumo das grandes mudanças: alguém que tome a frente e as realize. Um líder que tenha vontade e competência para sintetizar o desejo da maioria e concretizá-lo. É desse cruzamento entre desejo coletivo e determinação individual do líder para fazer o que precisa ser feito em nome de todos que surgem as grandes reformas, os grandes avanços em uma democracia.
Fernando Henrique Cardoso teve várias oportunidades de atuar como esse líder. Aproveitou algumas. Controlou a inflação, universalizou o ensino fundamental, azulou o caixa do governo, vendeu estatais cágadas (a sílaba tônica fica outra vez a seu critério), engendrou a melhoria da qualidade de produtos e serviços em várias indústrias, não raro com queda dos preços, por meio do aumento da competição. Por isso FHC é já, ao lado de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek, um dos grandes presidentes da história do Brasil. (O fato de não haver muitos candidatos em condições de pleitear a entrada nesse clube o favorece, claro.)
Apesar dessa dimensão histórica que angariou para si, com as reformas que conseguiu realizar, FHC chega ao final do segundo mandato com uma administração enfraquecida nas mãos. O real está tíbio, o crescimento econômico tem sido pífio, a concentração da riqueza continua intocada, a renda média mensal do trabalhador brasileiro caiu mais de 40% - em reais - desde o final do seu primeiro mandato e a economia parece ter se embrenhado em um mato do qual é difícil sair.
Por que é assim? De um lado, o governo se defende dizendo que tem sido difícil navegar com tanta turbulência externa: crise nos Tigres Asiáticos em 1997, crise russa em 1998, crise cambial doméstica em 1999, crise da Argentina desde 2000, desaleração brusca do crescimento econômico americano e mundial a partir de 2001. E, a todas essas, haja mau-humor e má-fé das metrópoles em relação a essa simpática colônia verde-amarela. E haja falta de confiança e de apreço dos investidores e homens de negócio brasileiros em relação a seu próprio país.
O governo alega também que várias das oportunidades perdidas ou adiadas pelo país nesses últimos oito anos se devem à ausência de uma vontade coletiva amadurecida. A reforma tributária, por exemplo, tão necessária para onerar menos a produção, o consumo, a poupança e as exportações no país, só não saiu ainda, segundo o governo, porque tem sido sistematicamente barrada no Congresso pelos representantes da própria sociedade o seu excelentíssimo deputado, caro leitor, o seu digníssimo senador. (Claro que eles não fazem só isso. Também motosserram, escravizam gente em suas fazendas, loteiam emissoras de rádio e TV entre si para perpetuarem suas cancerosas influências políticas. E quase todos têm pelo menos um ou dois milhões de dólares em seu patrimônio cuja origem não conseguem explicar. Uma beleza.)
De outro lado, a oposição, que no Brasil, sob as obsoletas bandeiras do nacionalismo xenófobo e das utopias do capitalismo de Estado, promove um estranho conluio do projeto socialista da esquerda sindical com os planos clientelistas da direita oligárquica, grita contra a globalização e contra o neoliberalismo. E culpa o governo pela relativa abertura do Brasil aos capitais, aos produtos e aos serviços de outros países.
Ao final das contas, fica-se com a impressão de que os passos que FHC deu em direção à instauração no Brasil de uma economia de mercado competitiva enfraqueceram a sua administração. Quando trata-se precisamente do contrário: o governo chega ao seu final sem fôlego e sem crédito por todas as reformas liberais que não fez. Por todas os avanços em direção à eficiência e ao racionalismo econômico que não realizou. E, mais importante, por não ter reduzido a sua própria importância na vida do país.
A presença do Estado na sociedade brasileira ao longo da história tem sido mais deletéria do que benéfica. E muita coisa na sua vida e na minha ainda depende de Brasília. Muito do dinheiro que entra ou sai da sua carteira e da minha ainda passa pelos cofres da União. É fato que quanto mais clareza e independência houver entre governo e economia, entre individual e coletivo, melhor. Se isso vale para qualquer país, vale especialmente para o Brasil, cujo Estado tem sido historicamente utilizado como uma ferramenta institucional pela elite mais atrasada para garantir seus privilégios feudais e onde a confusão entre público e privado é complexa e abrangente. Se tivéssemos tido um projeto de Estado menos ubíquo e com escopo mais bem definido, teríamos tido também, é provável, muito mais riquezas sendo muito melhor distribuídas no país.
Alguém dirá: sem o Estado, o capitalismo brasileiro seria ainda mais atrasado do que é. Que parque industrial teríamos no país sem Getúlio? Que mercado teríamos por aqui sem Juscelino? Teríamos tido condição de crescer para o tamanho de economia que temos hoje sem o Estado dirigista instaurado pela ditadura militar?
São boas questões. De outro lado, no entanto, é preciso considerar que o fato de a atividade econômica no Brasil ter sempre estado a reboque da política viciou gerações inteiras de empreendedores que poderiam, sem tantas amarras, sem a necessidade nem a possibilidade de freqüentar tantas ante-salas, ter levado a si mesmos e ao país a dar vôos muito mais altos. Enfim: numa simbiose deletéria é sempre difícil dizer quem suga mais de quem, ou quem sugou primeiro. O caso mais notável desses empresários que a sociedade brasileira matou pela mão do governo talvez seja o de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, que penou na mão da irritante burocracia brasileira ainda no século XIX. Não é de hoje que, no Brasil, a mesquinhez da corte vale mais do que o tino dos homens de negócio.
A iniciativa privada, em um ambiente competitivo, é a porção da sociedade que melhor premia a grande performance e que melhor pune o mau desempenho. A lógica do jogo bem disputado faz com que uma coisa seja necessária, vital. E que a outra seja intolerável, mortífera. Daí a iniciativa privada ser quase sempre a porção mais eficiente da sociedade.
O Estado, por mais bem administrado que seja, costuma tolerar a mediocridade. Por operar pela média, por não atuar sob a égide do retorno sobre o investimento nem sob qualquer pressão competitiva, pela oceânica distância entre os administradores do dinheiro e seus reais donos. Daí o ambiente estatal ser quase sempre foco de grandes ineficiências e desperdícios. (Inclusive quando ele se instala no seio da iniciativa privada, como, por exemplo, em empresas que operam em indústrias com baixo índice de competição.) Por isso, e só por isso, deixar o empreendimento e a expansão econômica nas mãos de indivíduos e empresas com sede de lucro e premidos pela concorrência é melhor do que deixá-los no colo de funcionários públicos e de ministérios com sede de poder, acomodados por uma massa de garantias e prerrogativas, triênios e quinqüênios.
O problema com esta eleição que se avizinha é que nenhum candidato acena com uma inflexão liberal que reduza o escopo da atuação de Brasília na vida nacional. Que reduza o orçamento da União e a máquina administrativa de modo a poder reduzir também a necessidade de arrecadação ou seja, a pesadíssima carga tributária que incide na sua vida e na minha e que em grande medida nos empobrece e nos paralisa.
Ao contrário, os três principais candidatos têm o projeto de resolver os problemas do Brasil por meio do Estado quando o que o Brasil precisa é justamente de menos governo para, com mais ar para respirar, mais espaço para gerar e explorar oportunidades de geração de riqueza, crescer. Os candidatos têm investido na demagogia e no populismo, montados, em maior ou menor medida, na irracionalidade econômica e no disparate matemático. Essas bravatas fáceis, que quase sempre prenunciam administrações caóticas, nem é preciso dizer, têm custado muito caro ao país.
Lula carrega o projeto messiânico clássico da esquerda, de salvar o povo pela mão de um Estado iluminado. Vê-se à frente, na hipótese de um governo petista, uma economia planejada, um Estado dirigista, um monte de burocratas ou burrocratas ditando regras. O projeto do PT não é reduzir o Estado. Mas, ao contrário, em nome de torná-lo mais eficiente e justo, inflá-lo ainda mais. Claro que a maneira mais eficaz, se não a única, de tornar o Estado brasileiro mais eficiente e justo é precisamente reduzindo sua estatura e sua influência. Guido Mantega, assessor econômico de Lula, disse esses dias que a saída é política e que o país precisa de um Estadista . Discordo. A saída é econômica. Sempre. E, muito mais do que um grande político, o Brasil precisa mesmo é de um bom gerente.
Ciro e quem disser aí que consegue enxergar o que seria o Brasil com ele está mentindo também ataca com um discurso cheio de esquerdismos fáceis que desafiam a lógica e deixam antever uma gestão imprevisível e pintada com as cores do absurdo contábil. (Embora ele, hoje travestido de socialista, seja na verdade herdeiro de uma oligarquia nordestina que viceja na política do seu Estado há um século. Tem gente achando que reside exatamente nesse detalhe o fio de esperança em Ciro. O fato de ele beijar a mão de Antônio Carlos Magalhães enquanto manda, diante das câmeras, o presidente do banco central americano lavar a boca três vezes antes de falar da corrupção brasileira seria a sua redenção. E a nossa, no caso de uma vitória sua. Deus nos proteja.)
O ponto aqui também é claro. Se Ciro quer dar uma banana para o mercado e baixar os juros, que trate, antes de mandar recados topetudos aos credores do Brasil aqui dentro e lá fora, de reduzir o governo, que por custar muito e gastar muito tem se endividado e deixado a sociedade a descoberto, na mão de banqueiros de todo tipo e de toda laia. Essa sim e não meramente o imperialismo americano, como a grandiloqüência vazia de esquerda gosta de apregoar - é a grande causa da nossa dependência externa: os devaneios monetários dos síndicos que temos tido em Brasília. As dívidas e os juros só serão reduzidos no Brasil quando o Estado brasileiro for frugal. E o Estado só será frugal quando a sociedade optar por um projeto de governo pequeno.
E Serra, o candidato da situação? Ele também tem seu sonho de governo grande. O que significa tomar o projeto social-democrata em curso que, por definição, não é liberal - e inflexioná-lo ainda mais para o lado dos gabinetes de Brasília do que para o da liberdade de mercado. Tanto que, como ministro, ele vivia às turras com Pedro Malan, o melhor tesoureiro que este país já teve.
Abre-se aqui o parêntese Malan. O governo é o guardião das contas públicas. Cabe a ele cuidar do caixa do país - o que significa cuidar das finanças de todos nós. O que o presidente vai fazer com o superávit gerado é uma questão política que passa pelo seu projeto de nação. O que não pode é haver déficit. Nenhum projeto pode implicar em irresponsabilidade fiscal. Porque a gestão do caixa não pode ser política - tem que ser matemática. A condução econômica de um país não precisa ser brilhante. Mas tem, no mínimo, que fazer o feijão-com-arroz: gastar menos do que arrecada. Por isso Malan é tão bom. Sentou em cima do caixa, defendeu a lógica contra toda sorte de bravatas, e a equação contábil que dá eixo ao país contra todo naipe de absurdos. Brigou pelo azul do caixa contra quem quis, de maneira populista e irresponsável, desequilibrar as contas. Resultado: superávit primário do setor público entre janeiro e abril de 2002: 20,5 bilhões de reais. Isso é acumular riqueza. Isso é administrar o seu e o meu dinheiro com presteza. Isso é gerar poupança interna. Fecha-se aqui o parêntese Malan.
Mas, afinal, que candidato é esse que está faltando na próxima cédula eleitoral? A meu ver, um que tenha o projeto de transformar o Estado em uma engrenagem enxuta e transparente. A máquina pública deve existir para servir a sociedade e não para se servir dela. Um candidato que acredite que governo bom é governo mínimo - aquele que existe na medida exata de regular com rapidez e imparcialidade os conflitos de interesse em uma sociedade livre, composta por indivíduos que assumem os riscos e as responsabilidades decorrentes de sua liberdade de empreender. Essa deveria ser a razão de ser de Brasília: além de assegurar o valor da moeda e à proteção à propriedade privada e aos direitos individuais, garantir que as regras básicas da competição, acertadas previamente entre os competidores, sejam cumpridas com rigor por todos. É para isso que precisamos de um síndico para que ninguém tenha o direito de rasgar as leis, transformando a ilegalidade num modo de vida ou numa vantagem competitiva. O resto é deixar o jogo ser jogado. Ao invés de termos onze juízes ineptos vigiando o mesmo jogador, como hoje, e tendo seus salários pagos por ele, por que não termos onze jogadores vigiados por um juiz apenas, rigoroso, imparcial, que conheça o seu lugar e só apite quando e onde se fizer necessário?
Ao reduzirmos o governo (que nessa nova estrutura não precisaria custar 40% do PIB, diga-se), tiraríamos a sociedade e a economia da condição de estarem sempre à mercê da política. Veja: se não dependêssemos tanto do governo, essa enorme e espumosa crise gerada pelas incertezas relativas à eleição presidencial não aconteceria. Isso só acontece em países controladíssimos, em que tudo passa pelo Estado. Não é assim em mercados abertos.
Considere o governo Bush. Os Estados Unidos, mesmo com o seu presidente texano que dá declarações mais desastradas do que Lula e Ciro juntos - e com o colapso governamental que se seguiu ao 11 de setembro, cresceram nada menos que 6% no primeiro trimestre deste ano. E só o fizeram porque a sociedade americana não depende tanto do seu presidente: há vida econômica fora do Estado, a pujança passa ao largo de Washington. A Argentina, ao contrário, quebrou porque o Estado argentino quebrou. Não há por lá prosperidade fora da esfera estatal. No Brasil, como vimos, todos os candidatos prometem aumentar o escopo de Brasília. O que nos torna mais parecidos com Buenos Aires do que com Nova York. Daí precisarmos tanto de um candidato comprometido em securitizar a sociedade da atuação do Estado, gerando um hedge dos indivíduos e das empresas em relação ao governo.
Por que não há esse candidato no Brasil? Simples. Porque nós não queremos. Preferimos manter os déficits a acabar com as tetas. A sociedade brasileira adora depender do Estado, jogar toda a responsabilidade no síndico, reclamar do governo, de Deus, dos cartolas. E não fazer nada por conta própria. É que quando o indivíduo não tem liberdade, ele também não tem responsabilidade. Fica fácil fazer nada e jogar a culpa pela própria tibiez, pelos próprios fracassos nos outros, nos políticos, em Brasília.
Eis a simbiose deletéria que nos define. Somos covardes diante do risco, morremos de medo de empreender, negamos que a nossa prosperidade só depende de nós mesmos. Mas se o que está no desejo coletivo desta nação é mesmo a bravata populista, a grandiloqüência irresponsável, a satisfação de interesses mesquinhos e de curto prazo, então há pouco a fazer. Trocamos fácil bons índices de produtividade por um par de empregos sem razão de ser. Trocamos fácil a estabilidade monetária, que exige dieta, por um pouco de inflação, se isso nos permitir sermos chocólatras de vez em quando. E o desenvolvimento sustentável, que exige disciplina, por uma bolha de crescimento que nos permita uma risada efêmero. Se a liberdade nos dá urticária, se precisamos do Estado para dirigir nossas vidas e nos dizer o que fazer, se continuamos acreditando que quem tem a obrigação de gerar riquezas é o governo e não a própria sociedade, então estamos perdidos.
Se você ainda não sabe em quem votar, há dois consolos. O primeiro: você não está sozinho. O segundo: o dito todo povo tem o governo que merece embute uma lógica inquebrantável. Nada pode ser tão cruel nem estar mais certo.
Adriano Silva é diretor de redação da revista Superinteressante, da Editora Abril