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A volta ao mundo de um cinto de couro em meio a guerra comercial

A jornada de 25.750 km realizada por este acessório depende de uma complexa rede de empresas que nunca sofreu tanta pressão

Cinto de couro em produção na China (Bloomberg/Bloomberg)

Gabriela Ruic

Publicado em 29 de setembro de 2018 às 06h00.

Última atualização em 29 de setembro de 2018 às 06h00.

Para um consumidor americano, pode ser apenas um cinto de couro. Mas a jornada de 25.750 quilômetros realizada por este acessório simples depende de uma complexa rede de empresas que nunca tinha sofrido tanta pressão quanto agora.

A guerra comercial entre os EUA e a China está interrompendo o fornecimento de bens e matérias-primas pelo Oceano Pacífico, e uma ampla rede de fornecedores, distribuidores, fabricantes e consumidores, que levou décadas para ser construída, está sendo desafiada por tarifas nos dois lados do oceano.

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Os EUA importaram US$ 217 milhões em cintos de couro fabricados na China em 2017, uma pequena parcela dos bilhões de dólares do comércio anual de couro entre os dois países. Para avaliar como os ataques de impostos e ameaças estão afetando os principais participantes da cadeia de abastecimento, a Bloomberg News acompanhou um hipotético cinto de couro em sua jornada, que começa em uma fazenda do Texas, passa por uma fábrica no sul da China e, por fim, chega ao consumidor americano.

Na guerra comercial de retaliações, a China aplicou tarifas a US$ 110 bilhões em produtos americanos, inclusive couro. O governo do presidente dos EUA, Donald Trump, elevou as tarifas a US$ 250 bilhões em produtos chineses, e couro, cintos e outros acessórios foram incluídos na última rodada de impostos.

A China, há muito conhecida como a fábrica mundial, produz a maior parte dos artigos de couro usados no planeta. Mas agora as indústrias do couro lá e nos EUA estão se preparando para as consequências, já que o colapso das relações estabelecidas há décadas cria oportunidades para rivais de fora dos dois países.

"Cerca de US$ 10 bilhões no fluxo de importação e exportação do couro foram afetados", disse Su Chaoying, presidente honorário da Associação da Indústria do Couro da China. "Por isso, temos problemas muito graves."

A história começa em um rancho do Texas, com uma vaca.

A processadora de couro cru

A transformação da pele de vaca em cintos de couro começa na Texpac Hide and Skin, em Fort Worth, no Texas. A empresa pega peles de vaca e couros crus de matadouros e frigoríficos, cura-os e exporta-os para todo o mundo há 18 anos.

Processadoras americanas como a Texpac dependem muito dos curtumes chineses que compram seu estoque. No ano passado, US$ 1 bilhão em peles, couros crus e produtos de couro dos EUA - mais da metade da produção do país - foi para a China.

Neste mês, a China impôs uma tarifa adicional de 5 por cento ou 10 por cento sobre certos tipos de couros importados dos EUA, em retaliação às tarifas dos EUA. A Texpac e outras processadoras agora correm o risco de perder negócios para concorrentes brasileiras e australianas, que têm tarifas mais baixas.

"Se você tiver que pagar um pouco mais, os chineses vão procurar outros países para suprir as necessidades deles", disse Jamie Zitnik, presidente da Texpac. "Eles não terão outra opção se não puderem confiar em nós como parceiros comerciais."

A Texpac processa cerca de 25.000 peles e couros toda semana e envia 80 contêineres para a China mensalmente. Desde o início da guerra comercial, Zitnik prometeu a seus compradores chineses que compartilharia parte da carga tarifária adicional com eles.

Em um couro de US$ 45, uma tarifa extra de 5 por cento equivale a US$ 1.440 a mais por contêiner.

A transportadora

Os couros que serão transformados em cintos e outras mercadorias para processamento na China devem ser acondicionados em recipientes especiais para sua jornada. As caixas são cuidadosamente higienizadas, acolchoadas e forradas com plástico para evitar que a umidade entre no couro durante a viagem.

A indústria de couro dos EUA é valiosa para empresas de transporte marítimo porque fornece cargas de retorno para o fluxo interminável de caixas cheias que saem da Ásia, muitas das quais devem retornar vazias.

O curtidor

Uma vez na China, o trabalho do curtidor é remover os pelos, processar quimicamente e tingir os couros para produzir folhas de couro acabado que serão transformadas no cinto. Esta etapa pode ser perigosa devido ao uso de substâncias químicas como o cromo hexavalente, que pode causar câncer de pulmão. É por isso que quase não existem curtumes nos EUA.

Em vez disso, esse trabalho é feito por empresas chinesas que operam em zonas rurais, como a Dongguan Junxi Leather, cuja fábrica fica a cinco horas de carro da cidade de Guangzhou, no sul da China.

O gerente-geral Lyu Zhihao já parou de fazer pedidos aos fornecedores de couro americanos. Ainda assim, ele tem dois contêineres que já estão a caminho da China, cada um com US$ 700.000 em peles e couros. Ele tem um excesso de couros e disse que não pode pagar as taxas extras dos contêineres. Segundo ele, as autoridades portuárias chinesas estão submetendo as remessas americanas a um exame mais rigoroso agora, o que causa atrasos onerosos no processo alfandegário.

"É difícil, porque estabelecemos uma relação com nossos fornecedores americanos ao longo de muitos anos, mas estou disposto a abandonar completamente a oferta dos EUA", disse ele. "Agora é muito transtorno importar dos EUA."

A fabricante de cintos

A família de Jennie Zhang fabrica cintos de couro no sul da China desde 1939 e forneceu ao Exército Popular de Libertação os cintos para os uniformes de soldados. As folhas acabadas de couro são vendidas para fábricas chinesas como a dela, a Guangzhou Jinhuamei Leatherware, que produz cintos, bolsas e sapatos de couro. O material também está em demanda para o estofamento do interior de automóveis e para móveis.

A empresa de Zhang exporta um terço de sua produção para varejistas dos EUA. Empresas como Target e Walmart, que compram suas bolsas e cintos de couro de fornecedores chineses como a Jinhuamei, agora têm que pagar uma tarifa adicional de 10 por cento para levar esses itens aos EUA. Essa taxa subirá para 25 por cento em janeiro.

Desde que o governo Trump ampliou suas ameaças tarifárias, em julho, Zhang passou a esperar pelo inevitável. Ela supõe que seus clientes americanos pedirão descontos nos preços para absorver os impostos extras.

"Se dissermos que não vamos ajudar a absorver o custo das tarifas e pararmos de fazer negócios com os americanos, teremos que fechar a fábrica e perderemos tudo", disse ela. "Mas se concordarmos em absorver alguns custos, sofreremos prejuízos crescentes todo mês. Então, ou morremos imediatamente ou morremos aos poucos."

O varejista

Para completar sua jornada, o cinto é enviado de fábricas como a Jinhuamei para os EUA. Lá, atacadistas e varejistas estão se preparando para perder negócios. Das gigantes do varejo aos proprietários de pequenas lojas, a mensagem é a mesma: os consumidores terão que pagar o custo.

"Os importadores afirmam que não vão conseguir absorver o imposto adicional, por isso terão que repassá-lo", disse Sara Mayes, diretora da Associação de Transportadores de Acessórios de Moda, que tem sede em Nova York. "O consumidor acabará pagando os aumentos."

O consumidor

Os consumidores dos EUA estão começando a perceber que poderão acabar arcando com o impacto da guerra comercial em centenas de produtos.

Para Adrian Washington, que estava olhando um cinto Calvin Klein de US$ 36 para sua esposa na principal loja da Macy’s em Nova York, até mesmo um aumento de 10 por cento no preço faria a diferença. Ele está economizando para comprar uma casa. "Eu não compraria", disse o cozinheiro de 31 anos.

Abaixo, mapa mostra a trajetória do couro entre Estados Unidos e China. Em verde, os maiores fornecedores de couro para a China. Em verde, os maiores exportadores de cintos de couro para os Estados Unidos.

Mapa que mostra a trajetória do couro entre Estados Unidos e China (Bloomberg)

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