Ciência

Solução salina pode inibir replicação da covid, indica estudo da USP

Em testes com células pulmonares infectadas, o uso de solução hipertônica de cloreto de sódio a 1,1% reduziu em 88% a reprodução do novo cornavírus

Caso seja confirmado em ensaios clínicos, pode contribuir para novas estratégias profiláticas e terapias para covid (PhonlamaiPhoto/Getty Images)

Caso seja confirmado em ensaios clínicos, pode contribuir para novas estratégias profiláticas e terapias para covid (PhonlamaiPhoto/Getty Images)

AF

Agência Fapesp

Publicado em 13 de setembro de 2021 às 09h56.

Última atualização em 13 de setembro de 2021 às 09h57.

Pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) elucidaram o mecanismo bioquímico pelo qual a solução salina hipertônica inibe a replicação do vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19. O estudo, publicado na revista ACS Pharmacology & Translational Science, foi realizado em células epiteliais de pulmão infectadas com o novo coronavírus.

Caso a eficácia seja comprovada em testes clínicos, o achado pode contribuir para o desenvolvimento de novas estratégias profiláticas ou mesmo tratamentos para a COVID-19.

“Dada a gravidade da pandemia, acreditamos que seria importante avançar nesse estudo e realizar testes clínicos para verificar a eficácia do uso de spray e de nebulização com solução hipertônica de cloreto de sódio [NaCl] como forma de profilaxia, ajudando a diminuir a disseminação do vírus no organismo infectado e a reduzir as chances de uma inflamação mais grave”, diz Cristiane Guzzo, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP).

A investigação teve apoio da FAPESP e contou com a participação dos pesquisadores Edison Durigon , também do ICB-USP, e Henning Ulrich, do Instituto de Química (IQ-USP).

Os autores ressaltam que, embora as evidências sugiram que o uso da solução de cloreto de sódio iniba a replicação do vírus, o achado não representa uma proteção total contra a infecção – muito menos a cura da doença. “Trata-se de uma medida muito simples e barata, já utilizada como profilaxia para outras doenças respiratórias e que poderia minimizar a gravidade da COVID-19 ao reduzir a carga viral. Ela poderia ser adicionada aos protocolos de segurança, sem substituir o uso de máscaras, distanciamento social ou a necessidade de vacinação”, destaca Guzzo.

Concentração certa

Ao comparar diferentes concentrações do produto, os pesquisadores descobriram que o uso da solução a 1,5% de NaCl inibiu a replicação do SARS-CoV-2 em 100% nas células vero – linhagem de células renais de macaco usadas como modelo de estudo do novo coronavírus. Já nos testes com células epiteliais de pulmão humano, a solução a 1,1% foi suficiente para inibir a replicação do vírus em 88%.

A solução hipertônica de cloreto de sódio tem sido utilizada como medida profilática adicional em casos de gripe, bronquiolite, rinite, sinusite e uma variedade de problemas nas vias aéreas. O tratamento com sprays tem efeito nas vias aéreas superiores, já a nebulização atinge também o pulmão. Embora essas medidas apresentem bons resultados, minimizando os efeitos das doenças, pouco se sabe sobre seu mecanismo de ação.

“Ao conseguir explicar esse mecanismo intracelular de resposta à solução hipertônica, realizamos um estudo de ciência básica com aplicações claras na saúde e na compreensão de diferentes doenças respiratórias. O que foi observado no caso do SARS-CoV-2 é provável que se repita com outros vírus, pois se trata de um mecanismo da célula hospedeira”, afirma Ulrich.

Sem energia

Para entender a ação da solução salina na célula infectada, é preciso levar em consideração que, para o vírus replicar seu material genético e avançar para outras células e órgãos, ele utiliza ferramentas da célula hospedeira, como proteínas e fontes de energia. “Identificamos que o NaCl não interfere na interação entre a espícula do SARS-CoV-2 (proteína spike) e a proteína ACE-2 (receptor responsável pela entrada do vírus nas células humanas), mas ele afeta o ciclo do vírus após a infecção”, explica Guzzo.

Outro estudo publicado pela pesquisadora do ICB-USP em The Journal of Physical Chemistry Letters mostra como o complexo envolvendo a proteína spike e o receptor humano ACE-2 se mantém em diferentes concentrações de NaCl. “Provavelmente, o vírus evolui de forma a compensar flutuações na força iônica e, assim, manter um meio eficaz de invasão celular”, explica a pesquisadora.

Desse modo, quando moléculas de NaCl entram na célula, ocorre uma polarização da membrana citoplasmática por causa do aumento de íons de sódio (Na+). Esse desbalanço energético faz com que uma quantidade considerável do potássio (K+) que estava presente na célula seja expulsa para fora do citoplasma. São as chamadas bombas de potássio, que servem para estabelecer o equilíbrio de cargas na membrana citoplasmática.

A saturação em virtude da troca de sódio e potássio faz a célula gastar ATP (adenosina trifosfato) – uma das principais fontes de energia para a realização dos processos celulares. Como as moléculas de ATP são usadas nesse processo de despolarização celular, o vírus não consegue utilizá-las para se replicar.

“As células têm que jogar fora o sódio via bomba de sódio e potássio. Com isso, elas vão gastando seus estoques de energia. Por consequência, não sobra ATP para o vírus se replicar”, explica Ulrich.

O estudo mostrou ainda que o sal não provoca efeito na atividade da mitocôndria – organela envolvida no processo de respiração celular e de grande atividade metabólica. “Nessas concentrações, o sal não gera dano para a célula. Observamos que a mitocôndria permanece saudável durante todo o processo”, informa Guzzo.

No estudo, os pesquisadores sugerem testar dois tipos de uso da solução hipertônica de NaCl. Um na forma de spray nasal para a profilaxia das vias aéreas, porta de entrada do SARS-CoV-2 no organismo. “Esse tipo de spray se encontra em qualquer farmácia e poderia ser utilizado como profilaxia para as pessoas que estão na linha de frente e com maior possibilidade de contato com o vírus. Caso comprovado, ele poderia reduzir a replicação do vírus na região do nariz e da garganta”, diz Guzzo.

A outra estratégia proposta é a nebulização para levar o soro até o pulmão. Nesse caso, o uso de concentrações certas de NaCl é essencial e a eficácia do método só poderá ser avaliada por meio de testes clínicos em pacientes com COVID-19 – vale ressaltar que nebulização com solução hipertônica é uma estratégia já utilizada para tratar crianças com bronquiolite, por exemplo.

No caso do vírus sincicial respiratório, causador da bronquiolite, sabe-se que a solução salina hipertônica provoca diminuição da infecção e de respostas inflamatórias em culturas de linhagens epiteliais respiratórias humanas.

“Não se trata de uma solução única e seria um tratamento utilizado nos primeiros dias da infecção. Reduzir a replicação do vírus significa reduzir a gravidade da doença e o agravamento inflamatório. A COVID-19 é uma doença complexa, tem a parte da replicação viral – que a solução salina teria efeito – e também a da inflamação sistêmica, que vai além. Esta segunda fase, quando iniciada, pode ser intensa e gerar uma série de outras complicações em diferentes órgãos”, alerta Guzzo.

O artigo Inhibition of Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2 Replication by Hypertonic Saline Solution in Lung and Kidney Epithelial Cells pode ser lido em: https://pubs.acs.org/doi/full/10.1021/acsptsci.1c00080.

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