Ultramaratonista correu por 24 horas nas 27 capitais do país
Carlos Dias encontrou na ultramaratona o caminho para desafiar a si próprio, fazer amigos e ajudar o próximo
Da Redação
Publicado em 5 de março de 2014 às 16h54.
Ainda estava escuro, mas, às 6 da manhã de um domingo, na unidade Eldorado da academia BodyTech, em São Paulo (SP), as esteiras estavam movimentadas.
Carlos Dias "Ultra", nome pelo qual Carlos Roberto é conhecido na corrida , estava há exatas 20 horas correndo em uma esteira. Mas não pense que carregava um semblante de cansaço. Carlos ainda tinha pique para fazer piada e deixar à mostra a marca registrada: o sorriso.
Faltavam apenas 4 horas para a conclusão da última etapa do Desafio 24h das Capitais, criado pelo ultramaratonista de 41 anos. Em março de 2012, Carlos Dias decidiu que correria um dia inteiro — encarando o asfalto, a areia, a esteira... — pelas 27 capitais brasileiras para arrecadar dinheiro para o Graac (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer).
A ideia era doar à instituição 20% do valor arrecadado pelas 300 inscrições disponibilizadas por etapa, ao valor de 50 reais cada uma (com direito a camiseta, medalha e certificado de participação).
Mas o desafio só saiu do papel um ano depois, tempo suficiente para Carlos se planejar e se preparar para as 27 ultramaratonas que faria em um período de sete meses — a última etapa completada em setembro do ano passado.
Primeiros passos
A primeira etapa do desafio ocorreu no Rio de Janeiro, num sábado, 2 de março. A empreitada teve início às 10 da manhã e só terminou no domingo, 24 horas depois. Carlos repetiu esse roteiro nas outras 26 capitais, com um intervalo de uma semana entre eles.
Nos dias de descanso, relaxamento era a palavra de ordem: "Eu buscava uma equipe de fisioterapia, fazia acupuntura, alongamento... Tudo o que fosse necessário para que meu corpo minimizasse o esforço do fim de semana e ficasse pronto pra outra". E nada de treino. Nesse meio-tempo, o corredor apenas caminhava e, quando encontrava uma piscina apropriada, fazia deep running.
Para seu projeto sair do papel, Carlos contou com o auxílio de desconhecidos. Muitas vezes ele chegava às cidades sem nada preparado: nem esteira para correr nem equipe médica à disposição. "Não era sempre que dispunha de uma estrutura pronta para a prova com antecedência."
Mas as redes sociais, os patrocinadores e o blog (www.carlosdiasultra.com.br) ajudaram Carlos a se comunicar com pessoas do Brasil inteiro. "De repente, eu estava indo para alguma cidade e alguém me mandava uma mensagem oferecendo apoio em uma academia, loja de esportes, restaurantes, hotéis ou clubes", conta.
Apesar do desgaste físico, ele aponta o lado psicológico como o principal obstáculo. Foi aí que o apoio dos amigos que conquistou em cada etapa fez a diferença — um dos grandes motivos para que Carlos tivesse força mental para suportar tantas horas correndo.
"Era emocionante. Durante essas várias provas, o que me manteve em pé foram as pessoas que me acolheram. Hoje eu sei que, em qualquer lugar para onde eu vá, terei alguém para me ajudar." Se por um lado as energias eram recarregadas a cada reencontro ou nova amizade, de outro, era penoso se despedir de todos após a ultramaratona. "Foi difícil manter o controle no meio de tantas idas e vindas", diz.
Segundo o ultramaratonista, a pergunta que mais lhe fizeram durante os sete meses de corridas foi: ‘Por que você faz isso?’ E Carlos sempre tinha a resposta na ponta da língua: "Desafiar a mim mesmo constantemente, estimular as pessoas a pensar mais no coletivo e ajudar a quem precisa".
Em busca de aventura
Nascido e criado em São Bernardo do Campo (SP), Carlos Dias sempre foi da turma do esporte. Ainda no colégio, acordava de madrugada para correr com um amigo no quarteirão de casa.
Na época, Carlos morava com sua mãe e suas duas irmãs mais velhas — seu pai havia falecido quando ele tinha apenas 2 anos. Aos 12, começou a trabalhar informalmente, vendendo doces em empresas para conseguir alguns trocados. A cada dia o pequeno Carlos encarava cerca de 15 km caminhando.
A mãe, que trabalhava como faxineira, sempre olhou para a frente, sonhando com seus filhos formados em uma universidade. Para isso, trabalhou duro e ensinou as crianças a não desistir de nada. "Ela foi uma grande professora. Sempre falava: ‘Nunca deixe nada pela metade; se você tem um objetivo, vá até o fim’", lembra Carlos.
Em 1993, o futuro ultramaratonista começou a se dedicar mais à corrida. Antes, ele usava o esporte apenas para se preparar para a pelada de domingo ou para andar de bicicleta. Mas, aos 20 anos, decidiu participar de sua primeira prova de 5 km, organizada por uma escola na Vila Prudente, em São Paulo (SP).
"Lembro que me senti muito bem naquele dia e quis continuar treinando, dessa vez com a corrida como esporte principal", conta. Na época, Carlos cursava administração de empresas e trabalhava 8 horas por dia numa empresa de logística. Com o dia cheio de compromissos, ele encontrou na corrida a praticidade de que precisava, já que o esporte não exigia horários definidos nem colegas de treino. Ele aproveitava os 18 km entre sua casa e o trabalho para treinar.
Em menos de um ano Carlos já estava preparado para voos mais longos. "Apesar de não ter seguido planilhas de treino, acabei evoluindo rápido. Em 1994, estreei na Maratona Internacional de São Paulo, com 5h40."
As ultras viriam três anos depois. Fascinado por desafios, Carlos queria experimentar o novo, ir além do normal. "A ultramaratona me dá a oportunidade de aprender muito sobre a natureza, sobre as pessoas e sobre mim mesmo. Ela foi minha amiga nos momentos mais difíceis da minha vida", conta.
Os primeiros 100 km foram feitos em Cubatão (SP), no fim de 1997. No ano seguinte, Carlos comprou uma passagem para a África do Sul para participar da lendária corrida de montanha Comrades Marathon, de 90 km, a qual afirma ter concluído em 11h01. Desde então, as provas longas se tornaram um grande vício.
"A vida tem que ser feita de desafios e inovações, e a ultra me dá isso. Não preciso ficar fechado numa pista, numa cidade. Posso desbravar o planeta correndo", fala Carlos, com euforia.
Hoje, ele já perdeu a conta de quantas provas fez: foram corridas de 24, 30, 48, 72, 144 horas (veja o quadro "Papa-asfalto", na pág. 52). Mas ele ainda sentia que faltava algo pelo que lutar. O estalo apareceu apenas em 2008, após conhecer o Graac.
Do oiapoque ao chuí por uma boa causa
Onze anos após sua primeira ultramaratona, Carlos já tinha encarado de tudo: correu 500 km, do Rio de Janeiro (RJ) a São Caetano do Sul (SP), em seis dias; fez 1000 milhas, de Porto Seguro (BA) a São Bernardo do Campo (SP), em 22 dias; e até entrou no Guinness Book, o livro dos recordes, ao correr o Brasil de norte a sul com as próprias pernas, encarando 9000 km em 100 dias.
Além dessas (e outras) corridas, Carlos ainda participou da Copa do Mundo dos Desertos. Passou pelos desertos de Gobi, do Saara, da Antártica e do Atacama, tornando-se o primeiro sul-americano a correr os quatro desertos mais extremos do planeta em dez meses (entrando novamente para o livro dos recordes).
O feito fez Carlos Dias ser eleito um "super--humano" pelo programa Super-Humanos: América Latina, do canal The History Channel. Outra característica que o aproxima dos super-heróis: até hoje Carlos não sofreu nenhuma lesão.
Foi durante a preparação para a etapa do Deserto de Gobi que Carlos conheceu o Graac. Em 2008, o atleta estava fazendo alguns exames pré-corrida próximo ao prédio da instituição, em São Paulo, e teve a curiosidade de conhecer o trabalho realizado.
A partir daquele dia, ele virou um voluntário. "Foi incrível perceber a luta daquelas crianças, ver quanto elas eram fortes. Eu precisava divulgar aquilo, aquela força", diz.
Então, em 2009, ele decidiu cruzar os Estados Unidos em 59 dias e tentar vender cada quilômetro por 20 reais. Vinte por cento do valor seria doado para o hospital do câncer mantido pelo Graac. Carlos correu 5100 km, saindo de Nova York e chegando a São Francisco, na Califórnia, passando por 11 estados em condições climáticas diversas: neve, chuva, temperaturas elevadas...
Mesmo não alcançando o valor esperado, o esforço valeu a pena: foram arrecadados 4500 reais. Ao concluir o desafio, o corredor estava determinado a fazer o mesmo no Brasil, dessa vez passando por todos os 26 estados mais o Distrito Federal em 325 dias.
Pouco tempo antes da Volta ao Brasil Desafio Passos Solidários, sua mãe faleceu, em agosto de 2010. "Perdi meu chão. Minha estreia estava programada para setembro daquele ano. Mas pensei em tudo o que ela me ensinou e não desisti. A corrida foi uma grande psicóloga."
Cada um dos 18250 km foi vendido a 2 reais. No total, Carlos arrecadou mais de 36000 reais para o Graac. "Foi como se eu tivesse ganhado a Copa do Mundo", relembra. Apesar de todas as dificuldades pelas quais Carlos passou nessa sequência de provas, ele sabia que o esforço era por um bem maior:
"No Brasil, não há uma cultura de ajudar os outros por meio do esporte. Eu quero chamar a atenção das pessoas para o coletivo". Seu último grande ato beneficente foi concluído em setembro do ano passado, na derradeira etapa do Desafio 24h das Capitais.
24 horas finais
Faltavam poucos minutos para o fim do desafio. Quando o relógio marcasse 10 da manhã do dia 1º de setembro, Carlos teria corrido 24 horas em todas as capitais brasileiras por uma boa causa. O som de Bob Marley embalava os últimos passos do atleta na esteira. Aliás, a música foi o único pedido de Carlos para a última etapa em São Paulo.
"Peço sempre para mudarem o estilo musical para eu não ficar enjoado. O cérebro não consegue receber o mesmo estímulo por muito tempo, a rotina cansa. Se algo fica monótono, você pode ter uma queda no desempenho." Mas, para sua sorte, não havia nada de monótono ali. Tudo podia mudar conforme as necessidades do corredor, desde o ritmo até a alimentação —passando pela roupa que vestia.
Para aguentar o desafio, Carlos corria e andava. A alternância, segundo ele, era comandada pelo corpo: "Se eu sentia que precisava diminuir o ritmo, caminhava; se estava bem, voltava a correr".
Mas seu ritmo foi tranquilo durante a prova inteira. A velocidade média não passou dos 7 km/h, e a frequência cardíaca ficou em torno de 142 bpm. Na etapa de São Paulo, Carlos aproveitou para participar de outra ação solidária: com os 52 corredores que o acompanhavam, durante o almoço, foi até o McDonald’s mais próximo — correndo, claro.
Era um McDia Feliz, data em que a rede de fast-food faz uma campanha em prol de crianças e adolescentes com câncer. Bermuda de compressão, camiseta, meias e tênis também eram substituídos quando ele achava necessário.
Patrocinado pela marca Skechers, Carlos tinha três pares disponíveis durante o desafio, que ele variava conforme a necessidade do corpo: do mais flexível e leve ao com maior amortecimento. As roupas, mesmo sendo leves e de rápida absorção de suor, precisaram ser trocadas pelo menos três vezes na última etapa.
Como ele não podia perder muito peso durante a prova, alimentava-se frequentemente. Não contava calorias. Nem comia apenas barrinhas de cereais e ingeria géis de carboidrato. Carlos comeu tudo o que deu vontade.
"Eu mudava os sabores constantemente: pão, castanha batata, açaí, sorvete... Tudo o que você imaginar que seja gostoso [risos]. É tanto desgaste que você não pode consumir o que não gosta." Havia paradas fixas para jantar e almoçar, quando ele investia em "comida de verdade", como macarrão no almoço e pizza no jantar. "Mas, ao longo do dia, fazia lanches com castanha, água de coco ou sucos."
Até que finalmente o ponteiro marcou 10h. Carlos desceu da esteira, deu uma volta pelo shopping no qual a BodyTech está localizada e voltou à academia com uma bandeira do Brasil — acessório que ele carregou em todas as etapas, assinada por incontáveis fãs, amigos e desconhecidos que o apoiaram.
Muito emocionado, agradeceu a presença de todos que acompanharam o desafio e dos que compraram o kit da prova em prol do Graac: "Fiz tudo isso para divulgar o trabalho da instituição e comemorar meus 20 anos de carreira. Uma forma de agradecer tudo o que a corrida me deu".
Carlos serviu de exemplo para muitos. Não pensou em recorde ou em medalhas. Para ele, os verdadeiros vencedores são as crianças que lutam contra o câncer e as pessoas que correram com ele. "Alguns diziam que só concluiriam 5 km e, no fim, correram 30 km. Isso foi incrível."
Com bom humor e garra, Carlos finalizou mais um capítulo das inúmeras histórias que coleciona para contar. Tantas, que decidiu reuni-las num livro, que está quase pronto, à espera de uma editora.
Ainda estava escuro, mas, às 6 da manhã de um domingo, na unidade Eldorado da academia BodyTech, em São Paulo (SP), as esteiras estavam movimentadas.
Carlos Dias "Ultra", nome pelo qual Carlos Roberto é conhecido na corrida , estava há exatas 20 horas correndo em uma esteira. Mas não pense que carregava um semblante de cansaço. Carlos ainda tinha pique para fazer piada e deixar à mostra a marca registrada: o sorriso.
Faltavam apenas 4 horas para a conclusão da última etapa do Desafio 24h das Capitais, criado pelo ultramaratonista de 41 anos. Em março de 2012, Carlos Dias decidiu que correria um dia inteiro — encarando o asfalto, a areia, a esteira... — pelas 27 capitais brasileiras para arrecadar dinheiro para o Graac (Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer).
A ideia era doar à instituição 20% do valor arrecadado pelas 300 inscrições disponibilizadas por etapa, ao valor de 50 reais cada uma (com direito a camiseta, medalha e certificado de participação).
Mas o desafio só saiu do papel um ano depois, tempo suficiente para Carlos se planejar e se preparar para as 27 ultramaratonas que faria em um período de sete meses — a última etapa completada em setembro do ano passado.
Primeiros passos
A primeira etapa do desafio ocorreu no Rio de Janeiro, num sábado, 2 de março. A empreitada teve início às 10 da manhã e só terminou no domingo, 24 horas depois. Carlos repetiu esse roteiro nas outras 26 capitais, com um intervalo de uma semana entre eles.
Nos dias de descanso, relaxamento era a palavra de ordem: "Eu buscava uma equipe de fisioterapia, fazia acupuntura, alongamento... Tudo o que fosse necessário para que meu corpo minimizasse o esforço do fim de semana e ficasse pronto pra outra". E nada de treino. Nesse meio-tempo, o corredor apenas caminhava e, quando encontrava uma piscina apropriada, fazia deep running.
Para seu projeto sair do papel, Carlos contou com o auxílio de desconhecidos. Muitas vezes ele chegava às cidades sem nada preparado: nem esteira para correr nem equipe médica à disposição. "Não era sempre que dispunha de uma estrutura pronta para a prova com antecedência."
Mas as redes sociais, os patrocinadores e o blog (www.carlosdiasultra.com.br) ajudaram Carlos a se comunicar com pessoas do Brasil inteiro. "De repente, eu estava indo para alguma cidade e alguém me mandava uma mensagem oferecendo apoio em uma academia, loja de esportes, restaurantes, hotéis ou clubes", conta.
Apesar do desgaste físico, ele aponta o lado psicológico como o principal obstáculo. Foi aí que o apoio dos amigos que conquistou em cada etapa fez a diferença — um dos grandes motivos para que Carlos tivesse força mental para suportar tantas horas correndo.
"Era emocionante. Durante essas várias provas, o que me manteve em pé foram as pessoas que me acolheram. Hoje eu sei que, em qualquer lugar para onde eu vá, terei alguém para me ajudar." Se por um lado as energias eram recarregadas a cada reencontro ou nova amizade, de outro, era penoso se despedir de todos após a ultramaratona. "Foi difícil manter o controle no meio de tantas idas e vindas", diz.
Segundo o ultramaratonista, a pergunta que mais lhe fizeram durante os sete meses de corridas foi: ‘Por que você faz isso?’ E Carlos sempre tinha a resposta na ponta da língua: "Desafiar a mim mesmo constantemente, estimular as pessoas a pensar mais no coletivo e ajudar a quem precisa".
Em busca de aventura
Nascido e criado em São Bernardo do Campo (SP), Carlos Dias sempre foi da turma do esporte. Ainda no colégio, acordava de madrugada para correr com um amigo no quarteirão de casa.
Na época, Carlos morava com sua mãe e suas duas irmãs mais velhas — seu pai havia falecido quando ele tinha apenas 2 anos. Aos 12, começou a trabalhar informalmente, vendendo doces em empresas para conseguir alguns trocados. A cada dia o pequeno Carlos encarava cerca de 15 km caminhando.
A mãe, que trabalhava como faxineira, sempre olhou para a frente, sonhando com seus filhos formados em uma universidade. Para isso, trabalhou duro e ensinou as crianças a não desistir de nada. "Ela foi uma grande professora. Sempre falava: ‘Nunca deixe nada pela metade; se você tem um objetivo, vá até o fim’", lembra Carlos.
Em 1993, o futuro ultramaratonista começou a se dedicar mais à corrida. Antes, ele usava o esporte apenas para se preparar para a pelada de domingo ou para andar de bicicleta. Mas, aos 20 anos, decidiu participar de sua primeira prova de 5 km, organizada por uma escola na Vila Prudente, em São Paulo (SP).
"Lembro que me senti muito bem naquele dia e quis continuar treinando, dessa vez com a corrida como esporte principal", conta. Na época, Carlos cursava administração de empresas e trabalhava 8 horas por dia numa empresa de logística. Com o dia cheio de compromissos, ele encontrou na corrida a praticidade de que precisava, já que o esporte não exigia horários definidos nem colegas de treino. Ele aproveitava os 18 km entre sua casa e o trabalho para treinar.
Em menos de um ano Carlos já estava preparado para voos mais longos. "Apesar de não ter seguido planilhas de treino, acabei evoluindo rápido. Em 1994, estreei na Maratona Internacional de São Paulo, com 5h40."
As ultras viriam três anos depois. Fascinado por desafios, Carlos queria experimentar o novo, ir além do normal. "A ultramaratona me dá a oportunidade de aprender muito sobre a natureza, sobre as pessoas e sobre mim mesmo. Ela foi minha amiga nos momentos mais difíceis da minha vida", conta.
Os primeiros 100 km foram feitos em Cubatão (SP), no fim de 1997. No ano seguinte, Carlos comprou uma passagem para a África do Sul para participar da lendária corrida de montanha Comrades Marathon, de 90 km, a qual afirma ter concluído em 11h01. Desde então, as provas longas se tornaram um grande vício.
"A vida tem que ser feita de desafios e inovações, e a ultra me dá isso. Não preciso ficar fechado numa pista, numa cidade. Posso desbravar o planeta correndo", fala Carlos, com euforia.
Hoje, ele já perdeu a conta de quantas provas fez: foram corridas de 24, 30, 48, 72, 144 horas (veja o quadro "Papa-asfalto", na pág. 52). Mas ele ainda sentia que faltava algo pelo que lutar. O estalo apareceu apenas em 2008, após conhecer o Graac.
Do oiapoque ao chuí por uma boa causa
Onze anos após sua primeira ultramaratona, Carlos já tinha encarado de tudo: correu 500 km, do Rio de Janeiro (RJ) a São Caetano do Sul (SP), em seis dias; fez 1000 milhas, de Porto Seguro (BA) a São Bernardo do Campo (SP), em 22 dias; e até entrou no Guinness Book, o livro dos recordes, ao correr o Brasil de norte a sul com as próprias pernas, encarando 9000 km em 100 dias.
Além dessas (e outras) corridas, Carlos ainda participou da Copa do Mundo dos Desertos. Passou pelos desertos de Gobi, do Saara, da Antártica e do Atacama, tornando-se o primeiro sul-americano a correr os quatro desertos mais extremos do planeta em dez meses (entrando novamente para o livro dos recordes).
O feito fez Carlos Dias ser eleito um "super--humano" pelo programa Super-Humanos: América Latina, do canal The History Channel. Outra característica que o aproxima dos super-heróis: até hoje Carlos não sofreu nenhuma lesão.
Foi durante a preparação para a etapa do Deserto de Gobi que Carlos conheceu o Graac. Em 2008, o atleta estava fazendo alguns exames pré-corrida próximo ao prédio da instituição, em São Paulo, e teve a curiosidade de conhecer o trabalho realizado.
A partir daquele dia, ele virou um voluntário. "Foi incrível perceber a luta daquelas crianças, ver quanto elas eram fortes. Eu precisava divulgar aquilo, aquela força", diz.
Então, em 2009, ele decidiu cruzar os Estados Unidos em 59 dias e tentar vender cada quilômetro por 20 reais. Vinte por cento do valor seria doado para o hospital do câncer mantido pelo Graac. Carlos correu 5100 km, saindo de Nova York e chegando a São Francisco, na Califórnia, passando por 11 estados em condições climáticas diversas: neve, chuva, temperaturas elevadas...
Mesmo não alcançando o valor esperado, o esforço valeu a pena: foram arrecadados 4500 reais. Ao concluir o desafio, o corredor estava determinado a fazer o mesmo no Brasil, dessa vez passando por todos os 26 estados mais o Distrito Federal em 325 dias.
Pouco tempo antes da Volta ao Brasil Desafio Passos Solidários, sua mãe faleceu, em agosto de 2010. "Perdi meu chão. Minha estreia estava programada para setembro daquele ano. Mas pensei em tudo o que ela me ensinou e não desisti. A corrida foi uma grande psicóloga."
Cada um dos 18250 km foi vendido a 2 reais. No total, Carlos arrecadou mais de 36000 reais para o Graac. "Foi como se eu tivesse ganhado a Copa do Mundo", relembra. Apesar de todas as dificuldades pelas quais Carlos passou nessa sequência de provas, ele sabia que o esforço era por um bem maior:
"No Brasil, não há uma cultura de ajudar os outros por meio do esporte. Eu quero chamar a atenção das pessoas para o coletivo". Seu último grande ato beneficente foi concluído em setembro do ano passado, na derradeira etapa do Desafio 24h das Capitais.
24 horas finais
Faltavam poucos minutos para o fim do desafio. Quando o relógio marcasse 10 da manhã do dia 1º de setembro, Carlos teria corrido 24 horas em todas as capitais brasileiras por uma boa causa. O som de Bob Marley embalava os últimos passos do atleta na esteira. Aliás, a música foi o único pedido de Carlos para a última etapa em São Paulo.
"Peço sempre para mudarem o estilo musical para eu não ficar enjoado. O cérebro não consegue receber o mesmo estímulo por muito tempo, a rotina cansa. Se algo fica monótono, você pode ter uma queda no desempenho." Mas, para sua sorte, não havia nada de monótono ali. Tudo podia mudar conforme as necessidades do corredor, desde o ritmo até a alimentação —passando pela roupa que vestia.
Para aguentar o desafio, Carlos corria e andava. A alternância, segundo ele, era comandada pelo corpo: "Se eu sentia que precisava diminuir o ritmo, caminhava; se estava bem, voltava a correr".
Mas seu ritmo foi tranquilo durante a prova inteira. A velocidade média não passou dos 7 km/h, e a frequência cardíaca ficou em torno de 142 bpm. Na etapa de São Paulo, Carlos aproveitou para participar de outra ação solidária: com os 52 corredores que o acompanhavam, durante o almoço, foi até o McDonald’s mais próximo — correndo, claro.
Era um McDia Feliz, data em que a rede de fast-food faz uma campanha em prol de crianças e adolescentes com câncer. Bermuda de compressão, camiseta, meias e tênis também eram substituídos quando ele achava necessário.
Patrocinado pela marca Skechers, Carlos tinha três pares disponíveis durante o desafio, que ele variava conforme a necessidade do corpo: do mais flexível e leve ao com maior amortecimento. As roupas, mesmo sendo leves e de rápida absorção de suor, precisaram ser trocadas pelo menos três vezes na última etapa.
Como ele não podia perder muito peso durante a prova, alimentava-se frequentemente. Não contava calorias. Nem comia apenas barrinhas de cereais e ingeria géis de carboidrato. Carlos comeu tudo o que deu vontade.
"Eu mudava os sabores constantemente: pão, castanha batata, açaí, sorvete... Tudo o que você imaginar que seja gostoso [risos]. É tanto desgaste que você não pode consumir o que não gosta." Havia paradas fixas para jantar e almoçar, quando ele investia em "comida de verdade", como macarrão no almoço e pizza no jantar. "Mas, ao longo do dia, fazia lanches com castanha, água de coco ou sucos."
Até que finalmente o ponteiro marcou 10h. Carlos desceu da esteira, deu uma volta pelo shopping no qual a BodyTech está localizada e voltou à academia com uma bandeira do Brasil — acessório que ele carregou em todas as etapas, assinada por incontáveis fãs, amigos e desconhecidos que o apoiaram.
Muito emocionado, agradeceu a presença de todos que acompanharam o desafio e dos que compraram o kit da prova em prol do Graac: "Fiz tudo isso para divulgar o trabalho da instituição e comemorar meus 20 anos de carreira. Uma forma de agradecer tudo o que a corrida me deu".
Carlos serviu de exemplo para muitos. Não pensou em recorde ou em medalhas. Para ele, os verdadeiros vencedores são as crianças que lutam contra o câncer e as pessoas que correram com ele. "Alguns diziam que só concluiriam 5 km e, no fim, correram 30 km. Isso foi incrível."
Com bom humor e garra, Carlos finalizou mais um capítulo das inúmeras histórias que coleciona para contar. Tantas, que decidiu reuni-las num livro, que está quase pronto, à espera de uma editora.