Palavras publicadas, palavrões impublicáveis
Ao examinar as polêmicas literárias, é inevitável constatar: para além do embate de ideias, o motor das divergências é mesmo o ciúme profissional
Da Redação
Publicado em 16 de novembro de 2011 às 10h56.
São Paulo - A tribo dos escritores é um paiol de pólvora, perto do qual o Oriente Médio não passa de um Shangri-la. As razões para os pitis literários são inúmeras: divergências estéticas, agendas políticas, devoções religiosas, chauvinismos etc. Porém o supremo pomo da discórdia parece residir no ciúme profissional. É como se a zona mais sensível da anatomia dos literatos não fosse nem a mente nem o coração, mas o cotovelo - por vezes, a dor é tão lancinante que nem uma anestesia geral pode aliviá-la (só o coma induzido). Em último caso, os autores chegam às vias de fato. Por vezes, essas aversões começam em ternas amizades. Talvez tenha sido por isso que, quando o irlandês Bernard Shaw morreu, seu conterrâneo Oscar Wilde ciciou (enquanto enxugava uma lágrima inexistente): "Shaw não tinha nenhum inimigo neste mundo. Em compensação, nenhum de seus amigos gostava dele". Apesar de terem um componente de fofoca, as polêmicas são tão importantes para entender o mundo da cultura quanto a leitura dos bons livros - afinal, os ambientes literários saudáveis nunca são lagos pacíficos. Abaixo, uma lista dos embates mais memoráveis.
Vargas Llosa X García Márquez
Um segredo que durou mais de 30 anos foi a razão pela qual Mario Vargas Llosa esmurrou Gabriel García Márquez no dia 14 de fevereiro de 1976. Também nessa rixa a antipatia começou como empatia - tanto que o colombiano convidou o peruano para ser padrinho do seu filho Gabriel. Ambos partilharam o expatriamento em Barcelona, onde foram bons vizinhos. Até que, no dia fatídico, Llosa infligiu ao ex-cupincha um olho negro digno de um panda (há uma foto de García Márquez estropiado, feita por Rodrigo Moya).
É certo que havia potenciais melindres. Ao longo da vida, Gabo observou uma marmórea ortodoxia esquerdista, apoiando impavidamente o ditador Fidel Castro, com quem desenvolveu um afetuoso relacionamento. Justificava-se alegando que a estima transcendia ideologias: "Poucas pessoas sabem que Castro é um leitor voraz, que ama e conhece a melhor literatura universal". Reinaldo Arenas e Cabrera Infante, autores cubanos expulsos da ilha por divergência de pensamento ou comportamento, que o digam. Márquez nunca condenou a aplicação da pena de morte na ilha - sentença a que sempre se opôs em outras paragens. Recorda uma cutucada de Albert Camus em Jean-Paul Sartre (uma desavença que fica para a próxima): "Certos intelectuais progressistas são fundamentalmente benevolentes e humanos, e amam as pessoas miseráveis muito mais do que as amariam na prosperidade". Contudo, não foram as discrepâncias políticas que ditaram a pancadaria na Cidade do México. Nem o despeito literário: mais cedo ou mais tarde, ambos embolsariam o Nobel. Para decifrar o mistério, convém seguir o clichê policial: "Cherchez la femme" (procure a mulher).
O arranca-rabo ocorreu em um cinema mexicano, durante a estreia de um filme então badalado e hoje misericordiosamente esquecido. Quando acabou, Gabo avistou o amigo e se encaminhou para ele de braços escancarados. Foi recebido com uma patada no olho esquerdo. Com o sangue a jorrar-lhe, Márquez ainda conseguiu ouvir o agressor espumar: "Como se atreve, depois do que você fez a Patrícia em Barcelona?" A turma do deixa-disso entrou em cena, enquanto alguém trazia um bife cru para o olho intumescido.
Quando Gabo fez 80 anos, uma biografia esclareceu o mistério. Com a sua pinta de cantor de tango, Llosa jamais escamoteou um fraquinho pelas damas. Numa viagem aérea, apaixonou-se por uma aeromoça sueca, abandonou a mulher e tocou para Estocolmo. Furiosa, Patrícia correu para a casa de Gabo, que a consolou. Ninguém sabe a forma que o consolo assumiu. Contudo, Márquez sugeriu o divórcio. Outras fontes atribuem a Gabo a pior traição que se pode cometer contra um amigo. Eventualmente, Llosa voltou para o lar com o rabo entre as pernas, e Patrícia lhe contou o conselho de García Márquez (e talvez do efusivo consolo). Daí o murro.
Normal
0
21
false
false
false
PT-BR
X-NONE
X-NONE
/* Style Definitions */
table.MsoNormalTable
{mso-style-name:"Tabela normal";
mso-tstyle-rowband-size:0;
mso-tstyle-colband-size:0;
mso-style-noshow:yes;
mso-style-priority:99;
mso-style-parent:"";
mso-padding-alt:0cm 5.4pt 0cm 5.4pt;
mso-para-margin:0cm;
mso-para-margin-bottom:.0001pt;
mso-pagination:widow-orphan;
font-size:10.0pt;
font-family:"Calibri","sans-serif";
mso-bidi-font-family:"Times New Roman";}
Mary Mccarthy X Lillian Helman
Naturalmente, duas escritoras, quando se estranham, também rodam a baiana como um dervixe. Foi o caso das norte-americanas Mary McCarthy e Lillian Hellman. Em 1980, no programa de Dick Cavett (talvez o mais brilhante apresentador da TV norte-americana), Mary declarou que Lillian era "uma má escritora, superestimada e desonesta. Tudo que ela escreve é mentira, incluindo os 'aa' e os 'ee'."
Adivinhem quem estava assistindo e rangendo os dentes? Hellman, claro. De todos os autores que a acusaram de desonestidade intelectual, Mary McCarthy foi a única que ela decidiu processar por difamação, exigindo uma indenização de 2 milhões e 225 mil dólares. McCarthy estava num hotel em Londres quando recebeu a notícia - e caiu na gargalhada. Riu mais ainda ao ser informada daquela quantia - embora não fosse rica. Quando o advogado da adversária lhe pediu que apresentasse exemplos da desonestidade intelectual de Hellman, ela citou, entre outras coisas, a alegação de Lillian de que foi a primeira a recusar delatar nomes ao Comitê de Atividades Anti-Americanas e a falsificação deliberada dos fatos em Pentimento, outra parte das memórias de Lillian, na qual esta desempenha um papel heroico.
Mary McCarthy comprou a briga, argumentando que pretendia fazer aquilo que censurava Hellman por nunca ter feito: apresentar as acusações enquanto o acusado estava vivo para se defender. Amigos de Lillian aconselharam-na a desistir da ação judicial, ponderando que, "durante o julgamento, muita roupa suja será lavada e, ora bolas, quem é que jamais contou uma mentirinha?" Hoje está estabelecido que (com o perdão do trocadilho) Hellman viajou na maionese e mentiu mais do que o Pinóquio. Sorte ou azar, morreu durante o processo, que ficou indefinido.
Ernest Hemingway X As mulheres
Ernest Hemingway, como a quinta-essência do macho alfa, dava uma manada de touros miúra para entrar em uma briga de foice no escuro. Os seus quatro casamentos, por exemplo, terminaram em armagedom, mas de Martha Gellhorn ele levou o troco. Uma das melhores repórteres de guerra de todos os tempos, ela estava calejada em carnificinas. Escreveu sobre a Guerra Civil espanhola, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã. Numa trincheira, sentia-se como em uma jacuzzi. Não, não era nenhum bibelô. Sempre se recusou a ter um filho de Hemingway e mais tarde adotou um: "Não há necessidade de parir quando se pode comprar uma criança". Nas suas memórias, não esbanja romantismo ao evocar o ex-marido: "Ernest foi o homem menos gentil que conheci, um verdadeiro suíno". Em 1942, ao saírem de uma festa na qual enchera a cara, Hemingway teimava em guiar. Quando Martha ocupou o volante e arrancou, ele a esbofeteou. Ela fez pontaria com o adorado (e novinho em folha) carro do romancista contra uma árvore. Deixou o marido lá e pegou um táxi.
Outra mulher que fez Hemingway baixar a bola foi Zelda Fitzgerald. Está certo que ela morreu doida varrida (em um incêndio no hospício), mas escrevia muito bem. Ernest, um verdadeiro amigo da onça de F. Scott Fitzgerald (talvez desconfiasse que a posteridade fosse preferir este), escreveu no livro Paris É Uma Festa que o autor de O Grande Gatsby não aguentava a bebida e nem tinha confiança no seu pênis. Zelda cuspiu fogo: Hemingway não passava de "bullfighting, bullslinging and bullshit" (tourada, fanfarronice e mentira).
Martin Amis X Terry Eagleton
Os chiliques literários atestam que até os fleumáticos ingleses têm nas veias sangue suficiente para engordar toda a Transilvânia. Um belo dia, Martin Amis, um dos mais midiáticos escritores britânicos, deu uma entrevista ao jornal The Times. Fazia um mês que tinha sido desmantelado um plano terrorista para explodir aviões que cruzassem o Atlântico. Amis, que estava nos EUA, rosnou: "A comunidade islâmica tem que sofrer as consequências até conseguir arrumar sua casa. Como? Restringindo-lhes as viagens. Deportando-os. Limitando-lhes as liberdades. Revistando as pessoas com aparência árabe". Na reedição de uma obra, Terry Eagleton, um dos mais proeminentes acadêmicos marxistas, molhou a pena em nitroglicerina. Tais reflexões eram "bárbaras e dignas não de um dos expoentes da literatura inglesa, mas de um troglodita do Partido Nacional Britânico (extrema-direita)". Aliás, o defeito era mal de família: "Martin puxou seu pai, Kingsley Amis, um bebum racista, um caipira antissemita, obcecado contra as mulheres, os gays e os esquerdistas. A única coisa que o filho não herdou dele foi o talento literário". A batalha campal estendeu-se a todos os arraiais da intelligentsia britânica. The Guardian acusou Martin de "preguiça intelectual". Eagleton bufou que os comentários do Amis eram "um vômito". Amis chamou Eagleton de "ideólogo jeca".
Enfim, é como já alertava o francês Jacques Prévert: "Não se deve deixar os intelectuais brincarem com fósforos".
É jornalista e escritor, autor de O Suicida Feliz, entre outros romances.