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Antonio Fagundes estreia peça "Vermelho" com filho

Na peça "Vermelho", Antonio Fagundes contracena com o filho e reascende uma velha discussão: Jovens artistas precisam renegar seus mestres?

Antonio Fagundescom o filho Bruno.O ator de 22 anos fazo assistente de Mark Rothko no espetáculo  (Valeria Mendonça/Contigo)

Antonio Fagundescom o filho Bruno.O ator de 22 anos fazo assistente de Mark Rothko no espetáculo (Valeria Mendonça/Contigo)

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Da Redação

Publicado em 30 de abril de 2012 às 14h43.

São Paulo - Está quase na hora do almoço quando Ken – um garoto de 20 anos, prestativo, arguto e inquiridor – adentra o ateliê de Mark Rothko. O rapaz trabalha há alguns meses como assistente do renomado pintor. Limpa pincéis, mistura pigmentos, carrega quadros pesados, aplica a cor de base sobre as telas e faz compras. Nenhuma das obrigações, porém, parece tão ingrata quanto suportar o temperamento do chefe, um cinquentão taciturno, de cabelos escassos e óculos redondos, que fuma e bebe desbragadamente, se enfurece à toa e usa blazer ou terno mesmo em ocasiões pouco solenes.

O estúdio que ambos compartilham todos os dias entre 9 da manhã e 5 da tarde é, na realidade, um antigo ginásio da Associação Cristã de Moços. Fica em Nova York e abriga um andaime extenso, além de prateleiras com latas de tinta. O espaço não poderia se mostrar mais adequado para a tarefa que Rothko assumiu naquele verão de 1958: produzir uma série de murais abstratos em que o vermelho, o alaranjado, o negro, o marrom e o castanho se revezam.

Ken traz comida chinesa da rua e, mal abre a porta do ginásio, avista o patrão reflexivo, ouvindo música clássica. “Visitei a exposição de Pablo Picasso ontem à noite”, conta o funcionário, que sonha virar pintor. Rothko, desdenhoso, apregoa que o artista espanhol já atravessou fases melhores.

“Agora se contenta em bancar o charlatão. Confecciona vasinhos horrorosos e põe o nome em menus para sobreviver.” O assistente não diz nada. Rothko prossegue: “Trágico é se tornar supérfluo em plena existência... Nós destruímos Picasso e o cubismo. Pisoteamos aquela dupla infernal até a morte. Hoje ninguém ousa esboçar um quadro cubista, sob o risco de cair no ridículo.”

A primeira pessoa do plural, aqui, se refere à ruidosa turma de pintores que entrou para a história como artífice do expressionismo abstrato: Jackson Pollock, Willem de Kooning, Barnett Newman, Clyfford Still, Franz Kline e o próprio Rothko, entre outros. O grupo nova-iorquino despontou imediatamente depois da Segunda Guerra e logo alcançou reconhecimento internacional.

Ganhou o rótulo de “expressionista abstrato” por causa de criações não figurativas, que questionam o racionalismo e exalam uma intensidade emocional semelhante à do expressionismo alemão – movimento estético que sacudiu a Europa no começo do século 20.


“Você se orgulha disso, não? De ter pisoteado o cubismo até a morte”, indaga Ken, antevendo a resposta. “Todo filho deve banir o pai”, sentencia Rothko. “Respeitá-lo, mas matá-lo.” O diálogo constitui um dos pontos altos de Vermelho, peça do norte-americano John Logan que estreia em São Paulo após passagens bem-sucedidas pela Inglaterra e pelos Estados Unidos.

Se já soava representativa nas encenações de fora, a conversa adquire força ainda maior na versão paulistana, dirigida por Jorge Takla. Afinal, os atores que a protagonizam são, de fato, pai e filho: Antonio e Bruno Fagundes, um com 62 anos, o outro com 22.

O dramaturgo e roteirista de Chicago – que assinou um sem-número de filmes badalados (A Invenção de Hugo Cabret, O Aviador, O Último Samurai, Gladiador e Sweeney Todd) – lançou o espetáculo em dezembro de 2009 num teatro londrino. Depois de três meses, o levou para a Broadway, colecionou elogios e acabou faturando os prêmios mais importantes da temporada.

Parte do que se desenrola no palco aconteceu de verdade. Em 1958, Rothko realmente ocupou um velho ginásio de Nova York, onde se dedicava à composição de 27 telas, tão grandes e impactantes que ele preferia chamá-las de murais. O artista pensava e agia de maneira similar à figura irascível que Logan desenhou. Em compensação, não consta que dispusesse de assistentes na época. Ken, portanto, é fictício – e o único personagem que contracena com o pintor.

Ora cáusticas e sufocantes, ora espirituosas e amenas, as conversas entre veterano e novato espelham as múltiplas faces de uma relação quase sempre desigual. Há momentos em que a autoridade de Rothko predomina. O mestre, então, orienta o discípulo. O empregador humilha o empregado. O patriarca educa o herdeiro.

O gênio consagrado esmaga o reles mortal. Em outras cenas, no entanto, o assistente toma as rédeas e se agarra à petulância da juventude para afrontar ou reverter as certezas de Rothko. Sobressaem também os (poucos) instantes em que o relacionamento parece menos assimétrico, como se amigos papeassem dentro de um bar. Às vezes, tem-se igualmente a impressão de que Ken se transforma no alter ego do pintor. Em tais circunstâncias, o diálogo lembra uma espécie de solilóquio. Rothko fala com o assistente na ânsia de falar consigo mesmo e se escutar.

Futurismo

Quando proclama que “o filho deve matar o pai”, o pintor ecoa uma das ideias mais emblemáticas do século 20, muitíssimo cara às artes e à psicanálise. Em 1897, o médico austríaco Sigmund Freud escreveu para o colega alemão Wilhelm Fliess e lhe apresentou uma hipótese polêmica: a de que os bebês, por nutrirem imensa paixão pela mãe, tomam o progenitor como rival e sentem ódio dele.


Ao longo das três décadas seguintes, o psiquiatra aprofundaria o raciocínio e refletiria sobre a paternidade tanto nos ensaios que definem o complexo de Édipo quanto nos livros Totem e Tabu (1913) e Moisés e o Monoteísmo (1938). Dos estudos, resultou a tese de que todo filho, inconformado por dividir a mãe com o pai, precisa assassiná-lo simbolicamente para se afirmar como sujeito – ou melhor, para se apoderar da própria individualidade e, assim, fundar uma nova família.

Ainda no final do século 19 e início do 20, eclodiram os célebres movimentos de vanguarda, que inauguraram o modernismo e corroeram o establishment político-cultural da Europa. Seus integrantes defendiam posturas e conceitos ousados. Julgavam-se precursores de uma sociedade diferente, utópica, e abraçavam a missão de guiar os contemporâneos rumo às mudanças. Pregavam, acima de tudo, a ruptura com o passado.

“Queremos destruir os museus, as bibliotecas, as academias”, alardeava em fevereiro de 1909 Filippo Tommaso Marinetti, o poeta italiano que engendrou o futurismo, um dos primeiros levantes vanguardistas. Treze meses depois, os pintores Umberto Boccioni, Luigi Russolo e Carlo Carrá puseram mais lenha na fogueira. Redigiram, com o apoio de Marinetti, um manifesto que propunha “o varrer geral dos assuntos velhos e gastos, a fim de expressar a voragem do moderno”.

Em outras palavras: à sua moda, as vanguardas também preconizavam a “morte do pai”. Para futuristas, dadaístas, cubistas e surrealistas, não bastava erigir uma nova ordem. Era preciso soterrar a antiga.

Difícil negar que pensamentos do gênero continuam presentes na seara das artes ou mesmo no cotidiano. Há, inclusive, quem classifique a atualidade de “hipermoderna”, um período em que tudo – crenças, reflexões, objetos, comportamentos – fica obsoleto rapidamente e nunca consegue virar tradição. O passado, de acordo com essa ótica, se converteu num mal tão daninho que requer enfrentamento ininterrupto e veloz.

Certos teóricos, por outro lado, argumentam que nos encontramos em plena “pós-modernidade”. O passado já não se configuraria propriamente como inimigo. Daí minguarem as razões para rejeitá-lo e extingui-lo. Trata-se, agora, de superá-lo, sem jamais o apagar. Ou, então, de reinterpretá-lo, imitá-lo, celebrá-lo, parodiá-lo. Vide o advento do YouTube, máquina do tempo em que ontem e hoje se enlaçam harmoniosamente.


Por volta de 1945, entretanto, a chama da iconoclastia ainda flamejava com vigor, sobretudo nos Estados Unidos. A Segunda Guerra deixara a Europa em ruínas e evidenciara a terrível crise moral do continente que servira de berço para o nazifascismo. Os norte-americanos, vitoriosos na luta contra Adolf Hitler e Benito Mussolini, almejavam liderar um mundo que abolisse os paradigmas anteriores.

Sob tal impulso, mecenas e galeristas de Nova York, como Peggy Guggenheim e Betty Parsons, resolveram financiar talentos emergentes. As inquietas senhoras desejavam promover no país o surgimento de um estilo pictórico inédito, que se projetasse internacionalmente. Foi muito por causa delas que o expressionismo abstrato avançou durante os anos 50.

De linguagem heterogênea, os artistas que o representavam possuíam em comum não só o olhar crítico sobre a Europa. Questionavam igualmente a prosperidade dos Estados Unidos, o triunfo do capitalismo e suas consequências: “a paranoia anticomunista; o sonho suburbano de vestido xadrez e meia soquete; o carrão na garagem; mamãe assando torta; o pequeno Billy jogando futebol, motivado pela torcida calorosa de Susie sardenta; papai saindo para o escritório de terno alinhadíssimo; a família inteira ofegando e saltando de alegria, como Rex, o labrador feliz, e sempre tendo ao fundo a TV cintilante”, conforme a descrição avassaladora do historiador britânico Simon Schama no livro O Poder da Arte.

Por meio de trabalhos não ilustrativos, que enfatizassem a vitalidade da cor e do traço, os expressionistas abstratos pretendiam despertar a América, arrancá-la da zona de conforto em que aportara. Desenvolveram, para tanto, técnicas que frequentemente tiravam os pintores da atitude contemplativa habitual e lhes exigiam um esforço físico incomum. Jackson Pollock, por exemplo, abolia o cavalete e deitava as enormes telas sobre o chão. A seguir, caminhava ao redor ou em cima de cada quadro e gotejava ou atirava tinta nele.

O resultado, caótico e desconcertante, evidenciava o potencial criativo da improvisação e do gesto espontâneo. Em 1952, o crítico Harold Rosenberg cunhou um termo para abarcar as obras que derivavam de procedimentos como aquele: action paintings (pinturas de ação).

Lenço Kleenex

Nenhum dos expressionistas abstratos aceitou com tanto empenho a ambiciosa tarefa de acordar os Estados Unidos e lhes devolver o sangue às veias quanto Marcus Rothkomitz. Judeu nascido em setembro de 1903 na Letônia, ele migrou para Portland quando criança. Mais tarde, trocou a Costa Oeste por Nova York, adquiriu a cidadania norte-americana e simplificou o nome. Tornou-se apenas Mark Rothko. Paralelamente às investidas como pintor, construiu uma frutífera carreira de professor, lecionando arte. Iniciou-se nos pincéis com naturezas-mortas, paisagens e nus, influenciado pelo francês Paul Cézanne (1839-1906).


Retratou ainda grupos familiares, mascates, quartetos de corda e o metrô de Manhattan. Depois, bebendo do surrealismo, concebeu seres mitológicos e criaturas invertebradas, de feições pré-históricas. Até que, em 1949, finalmente descobriu a pólvora – achou o estilo que lhe garantiria fama e dinheiro.

Dali para a frente, abdicou por completo da figuração e assinou telas que ostentam somente blocos de cor, às vezes quadrados, às vezes retangulares. O modo como organizava os elementos e associava as tintas gera um efeito peculiaríssimo. À primeira vista, as áreas coloridas parecem imóveis, pacíficas. Mas, de repente, após dois ou três minutos de olhar atento, um milagre acontece. Os trabalhos passam a nítida sensação de que pulsam, como se respirassem.

Ou, novamente nas palavras de Simon Schama, “como se irradiassem um magnetismo estranho, tão intenso que, mesmo quando lhes damos as costas, é impossível escapar de tamanha luminosidade”. Sem medo do exagero, o historiador compara os melhores quadros do artista – “complexos, espantosos, de contemplação inesgotável” – às maravilhas de Rembrandt (1606-1669) e William Turner (1775-1851).

Consciente do impacto que provocava,Rothko não se julgava um pintor abstrato. “Minhas cores são mais do que cores”, esclarecia. “São atrizes.” Intérpretes dedicadas e habilidosas, que buscam instigar o público e exprimir “a tragédia humana, as emoções elementares”. Ele tinha, segundo vários depoimentos, uma relação obsessiva com as próprias criações, frutos de muito cálculo. Sofria ao vê-las “sair pelo mundo” e, não raro, chorava diante da separação. Também reivindicava de museus e galerias condições perfeitas para exibi-las. Tentava controlar os mínimos detalhes: a intensidade da luz, o posicionamento das obras na parede, a distância que o observador deveria manter de cada quadro.

Se não o atendessem, armava um fuzuê ou cancelava a exposição. Quando recebia elogios do tipo “você faz pinturas lindas”, se exasperava. Não queria que o confundissem com “um decorador de interiores”. À semelhança de outros papas da abstração, torcia o nariz para os antecessores – ícones das vanguardas como Picasso e Salvador Dalí.

“Envelheceram mal. Acomodaram-se”, bradava. Tampouco livrava a cara da geração que o sucederia (e ofuscaria), a de Andy Warhol, Robert Rauschenberg, Jasper Johns e Roy Lichtenstein, astros da pop art. Taxava todos de superficiais, lacaios da cultura de massa, tão descartáveis “quanto um lenço Kleenex”. Não satisfeito em matar os pais, desejava trucidar os próprios descendentes.


No verão de 1958, aceitou a encomenda que o espetáculo de John Logan menciona. A destilaria canadense Seagram planejava revestir três paredes do restaurante Four Seasons com murais do artista. O luxuoso estabelecimento de Manhattan, que continua funcionando, abriu em 1959 e se localiza no edifício-sede da empresa.

Projetado por uma dupla de exímios arquitetos, o alemão Mies van der Rohe e o norte-americano Philip Johnson, costuma reunir a nata financeira da cidade. O pintor ganharia US$ 35 mil pela empreitada – cifra que, atualmente, se aproxima dos US$ 2 milhões. Durante meses de trabalho exaustivo, confeccionou 27 quadros. Do conjunto, pretendia extrair os nove do restaurante. “Vou tirar o apetite dos ricos calhordas que frequentam o lugar”, trombeteava enquanto preparava a série.

Não se tratava de mera bravata. Ele realmente acreditava que os comensais esqueceriam o menu quando avistassem as pinturas e vivenciariam algo como uma epifania – o início de uma transformação moral, impulsionada pelos sentimentos que as telas despertariam.

Ocorre que, tão logo o Four Seasons inaugurou, Rothko o visitou e... “Quem aprecia aquela comida, quem paga aquele preço nunca colocará os olhos num quadro meu!”, rosnou para um amigo, ao telefone. “Era uma descrição ou uma prescrição? Uma triste constatação ou uma ameaça?”, pergunta-se Simon Schama. O pintor jamais respondeu. Apenas abriu mão da ­incumbência e devolveu o adiantamento de US$ 7 mil.

A partir de então, se deixou tragar por ondas gigantescas e periódicas de melancolia. Acabou cortando os pulsos em 25 de fevereiro de 1970. Suicidou-se horas antes de os nove murais do Four Seasons chegarem à Tate Gallery, de Londres (hoje Tate Britain), onde ainda ocupam uma sala.

Coragem

Na peça, o jovem Ken, antagonista de Rothko e admirador da pop art, se revela fundamental para que o pintor abandone o projeto da Seagram. Os confrontos que a plateia testemunha modificam os dois personagens. Fora do palco, no entanto, Antonio e Bruno Fagundes dão respostas parcimoniosas, quase evasivas, quando lhes indagam se Vermelho reflete também as diferenças entre ambos – não só as estéticas como as inerentes à relação de parentesco.


Um e outro parecem comprometidos em refutar a ideia (simplória, acreditam) de que a montagem estimularia uma catarse familiar. “Claro que o espetáculo possibilita incontáveis leituras. Entre todas, me agradam especialmente as relativas à arte. Qual o papel de um cineasta, um escultor, um bailarino, um romancista, um ator? Vermelho nos lança a questão o tempo inteiro. O texto de John Logan mostra que Rothko almejava mudar as pessoas por meio da pintura.

À minha maneira, creio que o teatro possa alcançar o mesmo”, diz Antonio Fagundes. O intérprete, que já soma 46 anos de carreira, investiu R$ 1 milhão na montagem em sociedade com o diretor Jorge Takla. “Conseguimos permissão para captar dinheiro via Lei Rouanet, mas não encontramos patrocinadores”, explica.

Diplomado em relações públicas, Bruno é também filho da atriz e dramaturga Mara Carvalho, segunda mulher de Antonio. O casamento durou pouco mais de uma década. “Convivo com artistas desde cedo. Recordo-me vagamente de ver meus pais em Macbeth quando beirava os 5 anos. Foi a primeira vez que entrei numa coxia. Não me soa impróprio ou esquisito, portanto, trabalhar em família. Pelo contrário: acho bacana que a gente reúna forças, sem nenhum tipo de competição.”

O rapaz, que canta e pinta nas horas vagas, estreou profissionalmente como ator em 2006 e, além de Vermelho, participou de três peças. “Ele vem demonstrando muita coragem”, avalia Jorge Takla. “É um risco dividir a cena com o pai famoso. Volta e meia, o aconselho: ‘Prepare-se, menino. Por melhor que você faça, provavelmente sofrerá cobranças pesadas’.” Talvez tão ferozes quanto as que Rothko impingiu à turma da pop art.

A PEÇA

Vermelho, de John Logan. Tradução: Rachel Ripani. Direção: Jorge Takla. Com Antonio Fagundes e Bruno Fagundes. Teatro Geo (r. Coropés, 88, Pinheiros, SP, tel. 0++/11/3728-4930). 5ª e sáb., às 21h; 6ª, às 21h30; dom., às 18h. De R$ 100 a R$ 120.

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