Carreira

Como é a rotina de um motoboy em São Paulo na quarentena

Para quem se isolou em casa, o trabalho dos entregadores por aplicativo se tornou essencial. Mas eles estão seguros?

Paulo Lima é motoboy e trabalha para três aplicativos difetentes de entrega, iFood, Uber e Rappi
 (Germano Lüders/Exame)

Paulo Lima é motoboy e trabalha para três aplicativos difetentes de entrega, iFood, Uber e Rappi (Germano Lüders/Exame)

Luísa Granato

Luísa Granato

Publicado em 28 de abril de 2020 às 14h00.

Última atualização em 28 de abril de 2020 às 18h30.

“Sou um morador comum da periferia de São Paulo. Moro em casa com minha esposa e filha, junto da minha mãe, meu pai, primos, tios e da minha avó, que tem 78 anos, e meu maior medo é com ela. Nem tenho mais contato, só vejo de longe. E tenho medo pela minha nenê. Quando chego em casa, ligo para minha esposa levar nossa filha para o quarto, se não ela já me pede um abraço. Eu tiro a roupa, coloco num saco, tomo banho para me higienizar, limpo o celular. Se [o vírus] não estiver dentro de mim, está beleza”, conta Paulo Lima, de 31 anos, sobre sua nova rotina ao chegar da rua após passar o dia entregando comida por aplicativos durante a pandemia do coronavírus.

Enquanto parte da população se isolou em casa para controlar a disseminação da doença, aumentou a demanda por serviços que facilitam a logística sem o deslocamento e aglomeração de pessoas, especialmente para a entrega de comida e bens de consumo na porta de casa.

Em março, quando começou a quarentena, o iFood fechou o mês com 158 mil restaurantes com pedidos, um aumento de 11,3% em relação ao mês anterior. No mesmo período, o número de cadastros de novos entregadores dobrou, chegando a 175 mil.

O aplicativo também registrou um aumento nas gorjetas que os clientes podem dar no final da entrega. Em março, foram R$ 735 mil pagos aos entregadores, um crescimento de 218% na comparação com fevereiro.

Os dados refletem um pouco da realidade de Paulo.

Ele percebeu um aumento nos pedidos e um aumento maior na quantidade de motoboys. “Vejo gente que tinha emprego durante o dia e ficou sem, indo para o aplicativo. A gente se arrisca e ganha menos, para ser sincero”, disse ele.

Para o dia de trabalho valer, ele normalmente precisa realizar uma jornada extensa, das 8h até às 22h. Sua meta pessoal é fazer 200 reais por dia para cobrir suas despesas como gasolina, alimentação, manutenção da moto e ainda ter uma margem de lucro para as contas da família.

“Tenho uma meta, mas normalmente não é o que acontece. Um dia ou outro, você não consegue fazer 100 reais. Tem dia que só faz 7 reais”, comenta ele.

Paulo está desemprego há mais de três anos. Quando sua filha nasceu, em 2017, ele precisava de uma fonte de renda imediata e começou a trabalhar com os aplicativos, mesmo que acidentes de trânsito no passado o tivessem afastado da rua como motoboy.

Hoje ele trabalha com três diferentes: Uber, Rappi e iFood. Durante as corridas na pandemia, não é apenas a volta para a casa que o preocupa, mas a falta de valorização dos entregadores.

O novo cenário trouxe novas dificuldades: ele não vai mais para casa para almoçar, com medo de aumentar a chance de contagiar a família, e relata que é difícil encontrar pela cidade locais para comer e fazer a higiene necessária das mãos.

“São Paulo já era uma cidade fria, agora parece congelada”, fala ele sobre o contato com os clientes, que ficam com medo de contágio. Ele vê um preconceito com o entregador e defende que ele também quer se proteger.

Enquanto os aplicativos anunciaram medidas como a distribuição de kits de álcool em gel, máscaras e material informativo pelo iFood e Rappi, Paulo afirma que não recebeu os materiais até agora.

Foi pensando nessas dificuldades de comunicação com os aplicativos que o motoboy criou uma petição no site Change.org. Lá, ele cobra a distribuição de álcool em gel e fornecimento de alimentação para os entregadores. Até a publicação da reportagem, o abaixo-assinado já havia alcançado mais de 137 mil assinaturas e recebido resposta do iFood e do Rappi.

Paulo ficou satisfeito com a visibilidade que conseguiu para o problema, mas não com o posicionamento das empresas. Para ele, com a crise de saúde, não é o momento de agitação política sobre o tema ou de incentivar protestos.

No entanto, ele fala que a discussão precisa continuar no futuro e avisa que a questão de direitos dos trabalhadores por aplicativo não deve se limitar apenas aos motoristas.

“Não podemos encarar o problema dos aplicativos como um problema nosso apenas. Amanhã um médico pode perder o emprego e se cadastrar num app de saúde, ter que aceitar em 10 segundos uma consulta de 30 reais, ou outro médico aceita e ele pode ser bloqueado o resto do dia. Isso pode valer para todos um dia: médico, advogado, jornalista... E se essas empresas dominarem o mercado de trabalho e todos viram empregados de app?”, fala ele.

Na plataforma Change.org, já existem mais de 2.500 petições relacionadas ao coronavírus. Dessas, 210 já somam mais 3,5 milhões de assinaturas. Entre os temas, há campanhas pedindo por quarentena remunerada para empregadas domésticas, pela paralisação de atividades de call center e por um pagamento adicional para profissionais de saúde por insalubridade.

O desafio para as empresas

Como outras empresas no Brasil, e em São Paulo, onde se iniciou o contágio local por coronavírus, a Loggi precisou criar um comitê para gerir a crise e organizar ações que garantissem a segurança dos colaboradores e entregadores.

O primeiro passo para eles foi abrir um canal de comunicação com os funcionários, motoboys e clientes para passar todas as informações sobre medidas de saúde e ações de segurança.

São mais de 40 mil entregadores cadastrados na plataforma da startup, e a maior dificuldade para a empresa tem sido a obtenção e distribuição de luvas, máscaras e álcool em gel para todos, de acordo com Vitor Magnani, head de Políticas Públicas da Loggi.

“Toda a sociedade brasileira está encontrando dificuldade para adquirir itens de proteção. Nós conseguimos renovar o estoque agora e estamos fazendo o controle de quem receberá o kit”, disse ele.

Além dessas medidas iniciais, a Loggi também tem uma ação de auxílio aos motoristas que ficarem doentes ou apresentarem sintomas suspeitos de covid-19. Eles fizeram um questionário para manter atualizações sobre a saúde deles, oferecendo orientações, fazendo medições de temperatura nas agências da empresa e disponibilizando vouchers para o Dr. Consulta, empresa de serviços de saúde e ambulatoriais.

“Fizemos a parceria com o Dr. Consulta para dar a segurança e apoio médico sobre a covid-19 e seus sintomas”, comenta ele.

Segundo informações enviadas pelo iFood, mais de 60 mil entregadores de São Paulo receberam o convite para retirar seu álcool em gel.

Eles afirmam que não tiveram motoboys diagnosticados com covid-19. Caso o entregador tenha sintomas ou esteja dentro de grupos de risco, a empresa preparou dois fundos solidários com R$ 2 milhões para dar auxílio àqueles que necessitarem ficar em quarentena.

A Rappi também relatou que está trabalhando para intensificar a distribuição de máscaras e álcool em gel para seus entregadores. Se apresentarem sintomas da doença, os motoboys podem notificar a empresa por um botão específico no aplicativo e terão apoio financeiro por 14 dias para ficarem afastados.

“A Rappi importou máscaras e conta com parcerias estratégicas no abastecimento de álcool, como Salon Line e Motul, além da aquisição via fornecedores, para que não faltem esses itens aos seus entregadores parceiros”, comentou Fernando Vilela, head de Growth e Marketing da Rappi no Brasil.

E o que diz a lei?

O novo modelo de relação de trabalho dos aplicativos, a chamada “Uberização” da mão de obra que Paulo Lima alerta em seu relato, tem recebido atenção na Justiça. No entanto, diferentes juízes e instâncias chegam a conclusões distintas sobre o vínculo e responsabilidades das empresas sobre os trabalhadores.

Em janeiro, a Justiça Trabalhista de São Paulo negou ação civil pública que pedia vínculo empregatício entre o iFood e entregadores. Em dezembro de 2019, a decisão para a Loggi foi oposta: a 8ª Vara do Trabalho de São Paulo decidiu que a empresa deveria contratar os motoristas como CLT. A medida foi suspensa semanas depois.

Hoje, a Loggi exige que os motoristas tenham registro como MEI (Microempreendedor individual), que garante nota fiscal e benefícios do INSS para os trabalhadores.

Independentemente das ações na justiça, a advogada Camila Kojima, sócia do escritório Filhorini Advogados Associados, esclarece que mesmo sem o vínculo de emprego, com os entregadores registrados como autônomos, as empresas ainda têm uma função social e devem medir os riscos inerentes ao trabalho.

“É um direito constitucional, eles devem cumprir esse papel de prevenção”, fala ela.

Ela esclarece que as empresas podem conceder e combinar auxílios sem que os benefícios configurem qualquer subordinação do trabalhador. “Em todos os processos, o principal ponto de discussão é se tem ou não a subordinação ao empregador”, comenta ela.

Nesse ponto de controvérsia, o tribunal pode entender que a ampla flexibilidade para determinar a rotina de trabalha livra os aplicativos de um vínculo de emprego. A avaliação dos motoristas também foi colocada com uma forma de controle e punição, mas já foi interpretada como uma ferramenta de feedback do cliente por juízes.

“Existem projetos de lei sobre o tema. No cenário que temos hoje, a subordinação é a mais difícil de ser comprovada. Mesmo em outras formas de contrato, não temos a mesma subordinação de antes, que a entende como em casos de ordem direta e determinação de horários fixos. Essa questão vem sendo discutida nos processos de justiça”, fala a advogada.

Segundo ela, há também a ideia de subordinação estrutural, que mostra que o trabalhador está inserido na cadeira de produção da empresa e tem um papel fundamental para sua operação.

Kojima diz que as discussões sobre o assunto tendem a aumentar, assim como o número de ações trabalhistas na área.

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