Nem marcianos acreditarão em memes de internet que pedem união nacional. (Fábio Pozzebom/Agência Brasil)
Bússola
Publicado em 4 de novembro de 2021 às 19h36.
Por Márcio de Freitas*
Alguns assuntos sérios do cotidiano nacional têm certa queda por ensejar piadas, nem sempre boas. Vide a construção dos nomes que pretendem liderar o país nos próximos anos. Se um chinês buscar predições sobre o país junto ao líder máximo do PDT, Ciro Gomes (CE), iniciará o diálogo vendo parte da bancada do pedetista caminhar alinhada ao governo Jair Bolsonaro, em direção oposta ao que prega o profeta de Sobral – suspenso no ar pela poeira da infidelidade partidária.
Um inglês poderia tentar melhor sorte no PSDB, onde os prévios candidatos João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS) medem o tamanho do bico num futuro possível governo. Ao mesmo tempo, a maioria dos tucanos na Câmara dos Deputados ajuda na construção, presencial, de um puxadinho no teto de gastos para dar guarida às pretensões eleitorais de Bolsonaro.
Se um marciano descesse aqui procurando o indecifrável Sérgio Moro em busca da coerência, em carne e osso, veria a pele exposta de metade dos deputados do Podemos cobrindo as partes íntimas do governo na votação da PEC dos Precatórios – um semi-calote com direito a mais gastos assistenciais em ano eleitoral. Moro é um juiz que acabou julgado por suas condenações políticas, e agora quer ser político para ser julgado inocente por seu passado de juiz.
Difícil encontrar alguém inteiro como líder na política brasileira diante das divisões infindáveis de suas próprias legendas. Essas partes nunca formam um todo, só multiplicam as individualidades em projetos personalíssimos. A fragmentação política não se traduz apenas no número absurdo de partidos no país, mas das infinitas legiões distintas dentro das agremiações. Nem Mãe Joana junta os cacos para dar forma a essa balbúrdia que desbanda para o ambiente legislativo, em resultantes legais com emendas e remendos até na Constituição.
A PEC dos Precatórios é um caso onde se exibem sofismas para evitar enfrentar os verdadeiros problemas fiscais do país. Políticos usam figuras de retórica para justificar votos e posições com argumentos falaciosos e tomar decisões com cortina de fumaça para encobrir as verdadeiras intenções. Ninguém quer enfrentar a cicuta da vida pública, escolher o caminho duro de cortar gastos, mas todos querem dar mais dinheiro para receber ainda mais votos. O governo esboçou um projeto onde se transfere a futuros governos o problema meteórico surgido das decisões judiciais terminais (onde até o próprio governo atual pode ser afetado se for reeleito). A Câmara endossou um cheque em branco, de fundos duvidosos.
O valor de metade dos precatórios deixará de ser pago em 2022, R$ 44 bilhões. O esqueleto foi enfiado no armário com 312 votos na Câmara, inclusive de remotos deputados em Glasgow, na Escócia. Coisa que nem um legítimo guerreiro imortal conseguiria fazer... Mas se fez. A rainha da Inglaterra deveria tirar o chapéu para tal obra política.
O pretexto dessa engenharia legislativa é dar o que comer (em forma de auxílio emergencial) a 17 milhões de brasileiros, com valor mínimo de R$ 400 mensais. O benefício termina em dezembro de 2022. Em cima disso, abriu-se uma nova forma de correção do orçamento para ampliar o tamanho do teto de gastos, coincidindo o período orçamentário anual com o cálculo da inflação. A inflação que tira comida da boca dos miseráveis permitirá expansão orçamentária de até R$ 50 bilhões. É até lógico, não fosse o oportunismo da forma – sem o consequente debate sobre alternativas de cortes de gastos ou economia de despesas que poderiam realmente ser adiadas, inclusive as emendas parlamentares que só interessam aos próprios parlamentares candidatos no próximo ano.
A criatividade associada à oportunidade criou uma peça legislativa que deve passar pelo crivo do judiciário. A Ordem dos Advogados do Brasil já anunciou que vai brigar pelo pagamento dos precatórios nos tribunais. Nada de trabalho voluntário, mas os advogados só recebem honorários quando os clientes embolsam seus esperados pagamentos de causídica origem. Dura lex.
O orçamento brasileiro já era peça de ficção, e ganha contornos de realidade aumentada... Crescem também as incertezas políticas. Mesmo sem óculos virtuais, é evidente a falta de identidade aos partidos políticos. E faltam líderes de fato para conduzir seus partidos em momentos cruciais. Mais ainda em ano de eleição presidencial. A votação da PEC nesta semana escancarou a dificuldade do surgimento de nomes alternativos a Bolsonaro e Lula na corrida pelo Palácio do Planalto.
Sem convencer seus próprios correligionários, fica difícil aos nomes postos na arena eleitoral pedir votos para lançar uma via alternativa aos candidatos que já estão postulando a Presidência da República. Nem marcianos acreditarão em memes de internet que pedem união nacional, mas cujos líderes não conseguem unir nem seus companheiros de executiva partidária. É piada pronta.
*Márcio de Freitas é analista político da FSB Comunicação
Este é um conteúdo da Bússola, parceria entre a FSB Comunicação e a Exame. O texto não reflete necessariamente a opinião da Exame.