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Para críticos, objetivo do Escola sem Partido é reescrever ditadura

Parlamentares e especialistas consideram projeto “estratégico”, que teria como meta impor versão dos militares sobre golpe de 1964

Com a eleição de Jair Bolsonaro para presidência da República, a mobilização do Escola sem Partido ganhou força (Fernando Frazão/Agência Brasil/Agência Brasil)
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Clara Cerioni

Publicado em 1 de dezembro de 2018 às 08h00.

Última atualização em 2 de dezembro de 2018 às 13h08.

São Paulo - Uma das primeiras aparições do deputado Jair Bolsonaro como presidente eleito soou como a leitura de uma ordem do dia nos quartéis e repercutiu como um surto de esquizofrenia nas redes sociais. Com um recado “a toda a garotada do Brasil”, o capitão reformado que governará o Brasil a partir de 1º de janeiro se dirigiu assim aos estudantes do ensino básico: “Vamos filmar o que acontece na sala de aula e vamos divulgar isso daí. Pais, adultos, homens de bem têm o direito de saber o que esses ‘professores’ [aspou a palavra com gestos] ficam fazendo na sala de aula. Entrem em contato com a gente”, exortou Bolsonaro.

O presidente eleito respondia a um estudante do Espírito Santo, João Vítor, que enviou ao seu QG, no Rio, um vídeo em que a professora, irritada por estar sendo gravada sem que consentisse, ameaçava processá-lo. O presidente encerrou a fala com um recado à professora: “Eu tenho uma surpresinha pra ela também. Quero ver ela processar você!”.

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A fala de Bolsonaro foi a senha que empurrou o Escola sem Partido para as redes sociais e atingiu em cheio a pauta da Câmara dos Deputados. Como num passe de mágica, a Comissão Especial criada em 2016 para avaliar o tema saiu de longa hibernação e embrenhou-se em intensos e estridentes debates.

Embalados pela vitória e ainda no clima de hostilidade pós-eleições, seguidores do presidente eleito emendaram o tom beligerante da campanha pela mobilização, incitando alunos a gravar vídeos ou mandar mensagens por e-mails com denúncias contra professores “marxistas” envolvidos na doutrinação em sala de aula.

Bolsonaro não só estimulou a guerra ideológica como colocou na linha de frente da tropa de choque pela aprovação do projeto o filho Eduardo Bolsonaro (PSL), reeleito deputado federal por São Paulo e famoso por dizer durante a campanha que, para fechar o Supremo Tribunal Federal, bastariam um cabo e um soldado. A ele juntaram-se na comissão o autor do projeto, Erivelton Santana (Patriota-BA), o relator e autor do substitutivo, deputado Flavinho (PSC-SP), e o presidente da Comissão Especial, Marcos Rogério (DEM-RO), para garantir a aprovação, caso a matéria seja votada amanhã.

Em nenhum outro período de transição, o clima foi tão favorável para um presidente eleito decidir questões polêmicas antes da posse. Além da ampla maioria na comissão, a bancada conservadora conseguiu derrubar a indicação do professor Mozart Neves, do Instituto Ayrton Senna, e influir na escolha do futuro ministro da Educação, o professor colombiano Ricardo Vélez Rodríguez, uma indicação do guru de Bolsonaro e da nova classe conservadora que chega ao poder, o filósofo Olavo de Carvalho.

Vélez Rodríguez tem o perfil que a nova ordem esperava para forçar a guinada pela direita a partir da educação: é entusiasta do projeto Escola sem Partido, crítico ferrenho do marxismo – que considera responsável por “invenções deletérias como a educação de gênero” – e professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército (Emfa), o órgão das Forças Armadas que elaborou e ajudou a executar todo o programa de governo do regime militar.

Plano meticuloso

Tanto empenho do presidente eleito para fazer aprovar um projeto no finalzinho de uma legislatura faz parte de um plano meticuloso na visão de especialistas ouvido pela Pública. Uma vez aprovado, o Escola sem Partido abriria caminho para uma reforma profunda na educação, com a substituição dos conteúdos dos livros didáticos e a implantação de novas regras de acesso à cátedra cujo objetivo seria por em curso uma revisão na história da ditadura (1964-1985), que seria recontada com a inclusão de uma versão mais palatável aos militares.

Essa é a opinião do presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Educação (CNTE), Heleno Araújo, que vê um claro movimento de Bolsonaro para usar Ministério da Educação como eixo de uma forte guinada pela direita. “Legitimado pelo voto, Jair Bolsonaro tornou-se um perigo para a educação livre. Ele vai querer usar os instrumentos do Estado para subverter ideias e tentar mudar a história. Não tenho dúvida que vão fazer uma triagem no sistema educacional para selecionar o que interessa. Os livros que falarem o que foi realmente a ditadura não serão aprovados. Assim, tentarão fazer o descarte do que não interessa ao novo sistema para colocar no lugar o que querem a direita e o militarismo”, diz Araújo, que acompanha a tramitação do projeto no Congresso.

“Eles querem escola de um partido só, onde prevaleça a vontade deles. Não querem que se diga que houve ditadura, tortura, mortes, banimentos. Tem gente dizendo até que nunca teve escravidão no Brasil e que os africanos que aqui chegaram compraram passagens para viajar nos navios negreiros”, cutuca o senador Cristovam Buarque (PPS-DF), professor e referência do mundo acadêmico na área da educação.

Para Cristovam, é preciso prestar atenção no que declarou o general Aléssio Ribeiro Souto, assessor de Bolsonaro e membro do grupo que estuda as mudanças na educação, ao anunciar, em entrevistas, que o futuro governo mexerá, sim, no conteúdo do ensino. O general afirmou textualmente que os livros didáticos de história “que não trazem a verdade sobre 1964 têm que ser eliminados das escolas brasileiras”.

Como “verdades” do governo eleito, segundo o general, estão também o salto desenvolvimentista que o país deu no período militar, o chamado “milagre econômico”, e a revisão dos currículos dos professores. Alinhado ao projeto, acha que escola não é lugar para discutir ideologia, religião ou comportamento sexual, tarefas que pela nova ordem, segundo ele, pertencem à família do aluno. Procurado, o general não quis falar.

“Querem apagar a violência praticada pela ditadura apresentando uma nova versão conveniente, sem consultar professores nem alunos. Sabem que as escolas e as universidades, que são bastiões contra o obscurantismo, se oporiam. Por isso querem amordaçá-las, censurando a liberdade de pensamento, para implantar um projeto de partido único”, afirma Yuri Soares, diretor de políticas sociais do Sindicato dos Professores do Distrito Federal.

Um dos fundadores da Universidade de Brasília, o professor Isaac Roitman, avalia que o Escola sem Partido é “um grande equívoco e uma discussão medieval”. É, portanto, segundo ele, conflitante com ambientes escolares, que devem se caracterizar como espaço aberto a todos os tipos de pensamentos e ideologias. “Mais tarde o aluno vai amadurecer o pensamento crítico, sem censura, com confiança e liberdade. O projeto não melhora a vida educacional. O que querem com esse projeto é formatar a próxima geração para que nada mude”, observa Roitman.

“Onde se fez o Escola sem Partido, como na Alemanha e União Soviética, não deu certo. Resultou no surgimento de gerações tristes, insatisfeitas, tão tolhidas em suas liberdades que não aprenderam a pensar”, afirma o senador Cristovam Buarque.

Politização pela direita

Aliado de Bolsonaro na Comissão Especial e um dos expoentes da bancada da bíblia, o deputado Gilberto Nascimento (PSC-SP), ainda assim, consegue enxergar “um ambiente politizado no mau sentido” e diz que a aprovação do projeto é compromisso de campanha do presidente eleito. “Crianças vão para sala de aula para aprender, não para serem politizadas”, afirma o conservador.

O argumento da “neutralidade” do ensino, porém, não convence nem os adeptos do Escola sem Partido. “Com o Bolsonaro, vamos ter uma onda mais de direita. Pode ser que daqui a quatro anos, em vez de doutrinação de extrema esquerda, tenhamos uma doutrinação de extrema direita, terrível do mesmo jeito”, admitiu o deputado Flavinho num surto de sinceridade. Procurado pela Pública, Flavinho não quis dar entrevista. Prefere falar em lives pela internet.

A expectativa do grupo de Bolsonaro é que o Escola sem Partido deve ser aprovado pela comissão especial amanhã. A bancada evangélica, capitaneada pelo deputado Eduardo Bolsonaro, quer dar ao presidente eleito o privilégio de sancionar a lei assim que ela passar pelo Senado, no primeiro trimestre do ano que vem.

Mas os indícios de inconstitucionalidade, de acordo com o que determina o artigo 286 da Constituição de 1988, que garante o ensino plural e liberdade de cátedra, indicam que o projeto pode ser derrubado quando for julgado no Supremo Tribunal Federal, antes do recesso do Judiciário. Relator de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) impetrada contra um projeto idêntico, aplicado em Alagoas, que será julgado antes do recesso e terá repercussão geral sobre 66 propostas de lei municipais em cidades de 22 estados e outras 15 estaduais, o ministro Luiz Roberto Barroso não deixa dúvida que o tema é inconstitucional. “A ideia de neutralidade política e ideológica é antagônica à de proteção ao pluralismo de ideias e de concepções pedagógica e a de promoção da tolerância, tal como previsto na Lei de Diretrizes e Bases”, escreveu o ministro no parecer.

Barroso critica indiretamente a tentativa de restringir às famílias o controle sobre orientação de gênero, política ou religiosa, como quer o deputado Flavinho no substitutivo: “Os pais não podem pretender limitar o universo informacional de seus filhos ou impor à escola que não vincule qualquer conteúdo com o qual não estejam de acordo”. Segundo o ministro, isso impediria o acesso dos jovens “ao domínio inteiro da vida”, caracterizando, frisa, “evidente violação ao pluralismo e ao seu direito de aprender”.

Bancada evangélica

Inspirado no movimento organizado pelo advogado Miguel Nagib, o Escola sem Partido prega que o professor deve se limitar a ensinar matérias como biologia, matemática, português, mas é a família que deve se responsabilizar pelas bases morais, políticas, sexuais e religiosas dos alunos. Ou seja, ficaria proibido discutir numa sala de aula temas como aborto, gravidez na adolescência ou aids, apesar do caráter epidêmico da doença.

O Projeto de Lei 7.180 deu entrada na Câmara em 2014. Em 2016, já com outras nove propostas apensadas, a Mesa criou a Comissão Especial para tratar do tema, que só ganhou celeridade nos últimos 30 dias, com a eleição de Bolsonaro. A bancada evangélica, que domina a comissão, quer aprovar o projeto na Câmara antes da posse do novo governo.

A rapidez com que a matéria passou a tramitar nos últimos 30 dias foi criticada até pelo guru do presidente eleito, o filósofo Olavo de Carvalho. Em vídeo distribuído na internet, ele desautorizou o uso de seu nome e ainda chamou de “burros” os apoiadores de uma eventual mudança que comece pelo Legislativo. Ele disse que o projeto deveria se chamar “Escola sem Censura”, mas que a ideia foi atropelada pela pressa dos apoiadores.

Toda a proposta da Câmara está baseada em reclamações isoladas e genéricas, que chegaram à comissão nos últimos dois anos através de relatos de deputados conservadores, e de e-mails ou vídeos repassados por seguidores de Bolsonaro. No total são cerca de 60 casos, mas a bancada evangélica trata com relevância extrema episódios esparsos dentro de um sistema que, apenas no ensino básico, tem 48,6 milhões de alunos e 2,2 milhões de professores distribuídos em 184,1 mil escolas, conforme o censo de 2017 do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep).

As pesquisas que chegaram à Comissão Especial assustam os conservadores. Por elas, a predominância da “doutrinação ideológica” nas escolas é da esquerda, em cujo campo se situam 84,5% dos professores, entre os quais figuras como Ernesto Che Guevara são vistas positivamente por 86% e Vladimir Lênin por 65%, conforme apontamento do Instituto Census.

Outras reclamações registradas pela comissão estão relacionadas a manifestações em ambientes escolares pedindo o “Fora Temer”, vídeos em que professores se manifestam pelo aborto, mães reclamando da politização, drag queen fazendo dança sensual ao som de Pabllo Vittar e páginas de livros didáticos em que o aluno é instado a falar sobre a gestão de Lula. Há uma única reclamação contra a “doutrinação” da direita: cartazes no Colégio Militar de Salvador convidando Bolsonaro “a salvar essa nação”.

O deputado Flavinho parte do pressuposto de que, em vez de ensinar, a maioria dos professores está contaminada pelo vírus do “marxismo radical” e faz “doutrinação comunista” nas salas de aula. Num dos vídeos que divulgou nas redes sociais, o deputado diz que o objetivo da esquerda é destruir os valores basilares da família e, numa outra via, “comprometendo o futuro dos alunos”, preparar a volta do “salvador da pátria que agora está na cadeia” – referência, é claro, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, preso em Curitiba.

A própria comissão não fez sequer uma pesquisa para identificar quem são e onde estão os “comunistas marxistas doutrinadores”. Os deputados conservadores não escondem que um dos objetivos é desconstruir o método do pensador Paulo Freire para que a direita assuma o controle da cátedra e do conteúdo didático para uma reforma no sistema educacional.

Se for aprovado na Câmara, em votação na Comissão Especial, que tem caráter conclusivo, o projeto segue para o Senado, onde seu destino, pelo menos na legislatura atual, dificilmente será decidido. “Não há a menor chance de ser aprovado no Senado antes da posse do futuro governo”, sustenta Cristovam Buarque.

Reportagem foi publicada originalmente pela Agência Pública

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