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Glifosato deixa de ser considerado “extremamente tóxico” no Brasil

Levantamento inédito mostra que 93 produtos com glifosato tiveram classificação reduzida — ao mesmo tempo que o cerco ao pesticida se fecha no mundo

Agrotóxicos: decisão da Anvisa, que diminuiu a classificação de risco dos produtos à base de glifosato, foi publicada em julho deste ano (Joe Raedle/Getty Images)
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Clara Cerioni

Publicado em 3 de novembro de 2019 às 08h10.

Última atualização em 4 de novembro de 2019 às 14h47.

O cenário mundial não está favorável aos fabricantes de glifosato. O herbicida enfrenta vetos em países europeus e mais de 18 mil ações nos tribunais nos Estados Unidos que relacionam o seu uso a doenças como o câncer.

Mas, no Brasil, o agrotóxico mais vendido no mundo não só teve a licença de comercialização renovada como também, oficialmente, tornou-se menos perigoso aos olhos do governo brasileiro.

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Isso porque,apósa reclassificação de toxicidade aprovada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 93 produtos formulados à base deglifosatotiveram a classificação de toxicidade reduzida, segundo um levantamento inédito realizado pelaAgência Pública e Repórter Brasil com base na publicação noDiário Oficial.

Antes, 24 produtos à base do herbicida eram considerados “ExtremamenteTóxico”. Agora não há nenhum produto enquadrado na categoria máxima de toxicidade.

O levantamento mostrou ainda que três produtos se mantiveram na mesma classe toxicológica.

“Esse alerta vai sairdaembalagem doglifosato, um produto que pode corroer a córnea. A embalagem agoraserá igual a de qualquer produto de uso doméstico. Estamos seguindo contra todos os alertas que o mundo está abrindo para oglifosato”, afirma Luiz Cláudio Meirelles, pesquisadordaFiocruz.

A portaria que diminuiu a classificação toxicológica dos produtos à base deglifosatofoi publicada em julho deste ano. Agora, só receberá o alerta máximo os pesticidas que causarem morte ao serem ingeridos ou entrarem em contato com os olhos ou pele. Especialistas acreditam que as mudanças vão afetar mais aqueles que manuseiam os produtos, porque o símbolo de perigo, a caveira, passará aserusado apenas no rótulo de produtos que causem a morte ao serem ingeridos ou entrar em contato com olhos e pele. Os demais agrotóxicos terão apenas um símbolo de atenção.

Veja as mudanças na tabela:

No Brasil e no mundo

Há mais de 40 anos no mercado mundial, oglifosatoé líder de vendas no Brasil e no mundo.

No Brasil, existem hoje 102 produtos técnicos, duas pré-misturas e 123 produtos formulados à base do ingrediente ativoglifosato. São usados para o controle de mais de 150 plantas infestantes em variados cultivos – de soja e café até feijão, maçã e uva. Em 2017, 173 mil toneladas deglifosatoforam vendidas no Brasil, segundo o Ibama.

Porém, estudos acenderam o alerta sobre a segurança, correlacionando o uso do pesticida com o aparecimento de doenças como depressão, infertilidade, Alzheimer, Parkinson e câncer em diversas partes do corpo. Em 2015,apósanálise de diversos estudos a Agência Internacional para Pesquisa sobre Câncer (Iarc)daOrganização Mundial de Saúde concluiu que oglifosatoera “provavelmente cancerígeno” para humanos.

Em fevereiro deste ano, aAnvisaconcluiu a reavaliação doglifosato, que durou 11 anos, e entendeu que o produto não se enquadra nos critérios proibitivos previstos na legislação brasileiras: não é classificado como mutagênico, carcinogênico,tóxicopara a reprodução e teratogênico (que causa malformação fetal).

“A principal conclusãodareavaliação é que oglifosatoapresenta maior risco para os trabalhadores que atuam em lavouras e para as pessoas que vivem próximas a estas áreas”, informou a agência.

Agora, não há previsão de uma nova avaliação por parte do governo, já que a legislação não estipula um novo prazo, diferentemente do que acontece na União Europeia e nos Estados Unidos.

Gerente-geral de toxicidade daagência regulatória na época do começodaação, Luiz Cláudio Meirelles conta que o produto entrou em reavaliação devido às suspeitas de doenças crônicas, como câncer. “Uma das maiores preocupações eram os efeitos crônicos, aqueles que apareceriam anos depois,apósa pessoa ter exposição contínua ao produto”, explica.

Hoje, Luiz Cláudio entende que o caminho asertomado deveriaserodaproibição. “Hoje a situação doglifosatoé um caminho sem volta. Tudo que começa aserapontado como problemático na saúde e no meio ambiente, a ciência guia para uma condenação”, explica.

Oglifosatoé defendido pela Bayer, donadaMonsanto. A reportagem questionou a empresa sobre a reavaliaçãodaAnvisa, a queda na classe toxicológica, os processos nos Estados Unidos e o banimento na Europa. No entanto, a Bayer limitou-se em comentar os dois últimos pontos. Por nota, a empresa informou que se solidariza com os demandantes e suas famílias, mas que “oglifosatonão foi a causa de suas doenças”.

“Há um extenso trabalho de pesquisas sobre oglifosatoe os herbicidas à base do mesmo, incluindo mais de 800 estudos analisados pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA), por agências europeias e outros reguladores no momento do registro dessa molécula. Todas as agências regulatórias que analisaram estes estudos chegaram à mesma conclusão: produtos à base deglifosatosão seguros quando usados conforme as instruções”, disse em nota.

Confira na íntegra os questionamentos e a nota divulgada pela Bayer.

Segundo Ricardo Carmona, professor de Produção Vegetal na Faculdade de Agronomia e Medicina VeterináriadaUniversidade de Brasília (UnB), ainda não há no mercado um herbicida capaz de substituir oglifosato. “Se oglifosatofosse proibido, não teríamos outro herbicida de ação tão ampla que sozinho pudesse substituí-lo. Teríamos que aplicar pelo menos dois, para controlar tipos diferentes de ervas daninhas, que possivelmente seriam mais tóxicos, e aumentaria o uso dos agrotóxicos e causaria consequências a saúde e ao meio ambiente”, diz.

Cerco aoglifosatopelo mundo

Nos estados Unidos, a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos (EPA) avaliou, em 2017, que oglifosatoé “provavelmente não cancerígeno para humanos”. No entanto, a Justiça americana tem decidido de maneira oposta.

A Bayer — donadaMonsanto, primeira empresa a vender agrotóxicos à base deglifosato— responde a mais de 18 mil ações contra oglifosato, sendo que 5 mil dessas foram registradas apenas em abril deste ano.

Em agosto e 2018 a Monsanto perdeu uma ação na JúridaCalifórnia e foi condenada a pagar US$ 289 milhões ao jardineiro Dewayne Johnson. A vítima enfrenta um linfoma. Segundo a defesa, ele teria desenvolvido a doença por utilizar nos jardins de uma escola na Califórnia os herbicidas Roundup e RangerPro, feito à base deglifosato.

Em março deste ano, o Júri Federal de São Francisco entendeu que a exposição aoglifosatofoi um fator significativo para que o aposentado Edwin Hardeman desenvolvesse câncer, e determinou que a Bayer pague mais de R$ 80 milhões em indenização a vítima.

Edwin enfrenta um linfoma não-Hodgkin, um tipo de câncer que tem origem nas células do sistema linfático. Durante 20 anos ele utilizou o herbicida Roundup, à base deglifosato,em sua propriedade. O produto édaempresa Bayer/Monsanto.

Na Europa, o debate ocorre no sentido de retirar oglifosatodo mercado. Em julho deste ano, o ParlamentodaÁustria baniu o uso deglifosatono país, o tornando o primeiro membrodaUnião Europeia a tomar a medida.

Em 2017, o presidentedaFrança, Emmanuel Macron, prometeu proibir oglifosatono país até o fim de 2020. Porém, no começo deste ano, afirmou que não seria possível banir o produto do mercado dentro do prazo estipulado. Até o momento o herbicida já está fora de 20 municípios franceses devido a leis municipais.

Na Alemanha, o governo se comprometeu a retirar oglifosatodo mercado até 31 de dezembro de 2023, como parte de um programa de proteção de insetos lançado neste ano.

Ações no Brasil

Em agosto deste ano, o Ministério Público do Trabalho (MPT-MT), Ministério Público Federal (MPF-MT) e o Ministério Público Estadual (MP-MT) do Mato Grosso iniciaram uma ação civil pública para proibir a utilização de qualquer agrotóxico à base deglifosatono estado.

O Mato Grosso é o maior exportador de soja do Brasil, com mais de 16,2 milhões de toneladas apenas entre janeiro e julho deste ano. As culturas do grão são as que mais usam herbicidas à base deglifosato.

Segundo o MPT, a ação tem como enfoque defender a saúde dos produtores rurais e o direito à vida. Os promotores justificam que as condições climáticas do Mato Grosso não são adequadas à bula de alguns dos principais produtos à base deglifosato, que tem como especificações, por exemplo, que a aplicação seja feita com a umidade relativa do ar mínima de 55% e com temperatura máxima de 28Cº, condições que não coincidem com o clima do estado em grande parte do ano.

A próxima audiênciadaação está marcada para 13 de novembro.

Atualização (04/11/2019 às 12h04): A reportagem afirmava anteriormente que o contato com glifosato poderia causar autismo. A afirmação veio a partir de uma análise apresentada em 2014 por Stephanie Seneff, pesquisadora do Massachusetts Institute of Technology. No entanto, após consultar especialistas, constatou-se que o trabalho não apresenta estudo ou pesquisa com base científica, o que para a comunidade científica torna insustentável a afirmação da pesquisadora. Com isso, o trecho foi retirado.

A reportagem também errou ao encaixar o autismo na categoria de doenças, quando o correto é transtorno neurológico.

*Reportagem publicada originalmente no site da Agência Pública

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