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Frota de motos quintuplica, reconfigura trânsito e impõe debate sobre prevenção de acidentes

Uso como instrumento de trabalho e menor custo impulsiona salto do número de motocicletas, de 6,8 milhões em 2004 para 34,4 milhões neste ano

Em 2004, eram 6,8 milhões de motos; em 2024, o número chegou a 34,4 milhões (	Mint Images/Getty Images)

Em 2004, eram 6,8 milhões de motos; em 2024, o número chegou a 34,4 milhões ( Mint Images/Getty Images)

Agência o Globo
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Agência de notícias

Publicado em 12 de outubro de 2024 às 18h46.

Última atualização em 12 de outubro de 2024 às 18h46.

As buzinas constantes, o barulho dos canos de escapamento, as ultrapassagens pela faixa que divide as pistas e as calçadas usadas como atalho são as impressões visíveis e sonoras de um fenômeno que mudou o trânsito brasileiro neste século: o aumento do número de motocicletas. Elas eram 6,8 milhões em 2004 e, este ano, atingiram a marca de 34,4 milhões. Um contingente que pode ser explicado pelo maior emprego das motos em trabalhos como o de entregadores. Mas que também criou novos problemas em um trânsito em que o comportamento agressivo é frequente.

Uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia (SBOT), da Associação Médica Brasileira (ABM), da Associação Brasileira de Medicina de Trânsito (Abramet) e outras entidades médicas traçou em setembro um perfil dos condutores de motos.

Para 72% dos entrevistados, dos quais a maioria é motociclista, há desrespeito com as regras de trânsito. Mas 76% reconhecem que o contrário também é verdade. Dono do perfil Guerreiro sobre Rodas, Thiago Rocha concorda que há equívocos dos dois lados. O estado Alagoas, em que vive o motociclista, está entre os que mais viram crescer a frota de motos.

— Há motociclistas que arrancam de qualquer maneira e vão cortando o trânsito, e motoristas que fecham sem prestar atenção se tem alguém vindo — relata Rocha. — Tem muita gente inexperiente, que aluga moto, pega emprestada e vai trabalhar. Uns querem apressar quem está frente, mesmo com o trânsito apertado.

Wellington Rezende complementa a renda de contador em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, como motorista de aplicativo. Na segunda ocupação, sente que a qualquer momento um acidente pode acontecer:

— A relação entre carro e moto se tornou perigosa. Muitos motociclistas não respeitam as faixas. Não respeitam nem mesmo o corredor em que andam.

Nas situações mais graves, ocorrem os acidentes, que vitimam mais os motociclistas.

— Tínhamos uma moto para 15 veículos. Hoje é uma a cada três — diz o médico Marcos Musafir, da SBOT e da ONG Trânsito Amigo. — Morrem 33 motociclistas no Brasil por dia. Isso pode ser evitado e é um peso para a rede de saúde.

Instrumento de trabalho

O uso da moto como instrumento de trabalho, sobretudo no pós-pandemia, é um dos fatores que levaram a maior presença do meio de locomoção nas ruas. Dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran) indicam que o crescimento se deu principalmente no Norte e Nordeste. Entre 2004 e 2024, o salto foi de 405% no país. A pesquisa da SBOT apontou que 53% dos entrevistados usam a moto como instrumento de trabalho, e um número similar adotou o meio de transporte há três anos ou menos.

As motos passaram a desempenhar papel fundamental para o incremento do comércio, especialmente nas grandes cidades, onde a agilidade é essencial e o trânsito caótico. A equação permite que principalmente pequenos e médios comerciantes possam competir no mercado que exige rapidez — consequentemente, abrem-se mais vagas de emprego.

Além disso, a utilização de motocicletas contribui significativamente para a redução de custos operacionais, já que o consumo de combustível é geralmente menor em comparação a outros meios de transporte e a manutenção, mais econômica.

— O impacto da pandemia de Covid-19 está relacionado ao emprego. Há um aumento brutal do delivery, o que leva a uma compra considerável de motos — avalia o professor Ciro Biderman, da Fundação Getúlio Vargas, que destaca a piora do transporte público no país como outro fator a contribuir para o fenômeno. — No Norte e Nordeste, você tem uma renda mais baixa e um clima mais favorável ao uso, por conta do calor. A moto é atrativa em termos econômicos.

O cuidado, portanto, deve ser redobrado nas pistas. Fechadas bruscas, raspões e bandalhas levam a agressões verbais, o tipo mais comum de violência no trânsito, segundo os motociclistas, pedestres e motoristas ouvidos na pesquisa. A violência pode ser pior.

Musafir lembra de um caso no fim de julho, em São Paulo, em que o motorista de um Porsche avançou sobre o motociclista Pedro Kaique Figueiredo, de 21 anos, que trabalhava como entregador. Igor Ferreira Sauceda, de 27, acabou preso. Ao depor, disse que a moto havia quebrado o retrovisor do carro. “A vida vale um retrovisor?”, questionou Alex Russo Figueiredo, o pai de Kaique, na época. Sauceda é réu por homicídio doloso triplamente qualificado.

A sondagem das entidades médicas revelou ainda que entre os motociclistas que atuam profissionalmente, cerca de 90% relataram que a segurança é afetada pela pressão por entregas rápidas.

Um boletim do Ministério da Saúde do ano passado analisou lesões de motociclistas entre 2011 e 2021 e elencou os principais fatores que contribuem para os acidentes: alta velocidade, falta de capacete, competição e a direção agressiva, além do uso de drogas e álcool e a condução em zigue-zague, estão entre eles.

— Quando a gente conversa com a vítima no hospital, em casos de amputação, lesão séria, eles (motociclistas) se arrependem. Aquele segundo de imprudência provoca algo assim — conta Musafir, acrescentando que a vergonha costuma impedir as vítimas de falarem publicamente sobre os erros.

Segundo o médico, é preciso uma série de medidas, como ações de educação no trânsito e aumento de agentes de fiscalização nas ruas, além da implementação de motovias.

'Rolézinhos'

Mas imprudências também são cometidas fora do horário de trabalho. Exemplo disso são os rolezinhos, passeios na madrugada que cortam cidades com muito barulho e manobras arriscadas. Não é incomum que nesses eventos, marcados nas redes sociais, os motoristas deem “um grau” — gíria para empinar os veículos. Eles ocorrem em São Paulo, Rio de Janeiro, Belém, Fortaleza, Recife e são gravados por moradores, acordados pelo som das descargas alteradas.

Passeios noturnos não são delitos, mas a alta velocidade e as manobras que caracterizam os rolezinhos sim, ainda que de menor potencial ofensivo, como perturbação do sossego. Costuma-se encontrar nos perfis dedicados à prática a hashtag #244NãoéCrime, referência ao artigo do Código de Trânsito que trata das manobras em motos, classificadas como infrações gravíssimas.

Mas há rolezinhos terminando em mortes. Em agosto do ano passado, um acidente em Campinas (SP), numa reunião de 200 motociclistas, terminou com três deles mortos.

Operações contra a prática já foram feitas em diversos estados. Em 13 de setembro, a Operação Rolezinho, no Piauí, prendeu 20 influenciadores por associação criminosa, perturbação ao sossego e infrações de trânsito. Um deles era suspeito de homicídio culposo durante disputa de velocidade na BR-343, em 2021.

No dia 26, o secretário de Segurança do Piauí, Chico Lucas, e o superintendente de Operações Integradas do estado, o delegado Matheus Zanatta, se encontraram com o influenciador Itallo Bruno, um dos alvos da operação, para discutir a criação de espaços exclusivos para o “grau”.

“A gente sabe que a juventude, muitos, são motoristas de aplicativos ou entregadores e com suas motocicletas usam esse momento para extravasar. Se for dentro da legalidade, vamos apoiar a prática”, disse Lucas em um vídeo divulgado por Itallo Bruno.

A ideia não é inédita. Em maio, o município de Vera (MT), inaugurou “uma pista de grau” de 150 metros de extensão e 15 metros de largura. “O objetivo é oferecer um ambiente controlado para que os motociclistas possam participar de atividades como gincanas, arrancadão de motos e outras competições de velocidade sem colocar em risco a segurança de pedestres e outros veículos”, diz uma nota.

— De qualquer forma, continua uma exposição ao risco — alerta Musafir, sobre a prática de manobras ainda que em espaços dedicados a isso. — Se fizer com equipamento, como um corredor profissional, ajuda de alguma maneira. Mas tem que ter ali uma ambulância, câmeras filmando, limite de velocidade e com o público distante. Não vejo como algo a ser replicado.

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