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Publicação mostra manipulação das consciências pelo cinema

Em O Poder das Imagens, pesquisador investiga de que forma as produções cinematográficas foram utilizadas como arma de propaganda e controle da opinião pública

Filme O Triunfo da Vontade: livro relação entre Estado, cinema, cineastas e sociedade e dos temas tratados pelos cinemas alemão e norte-americano nas décadas de 30 e 40 (Reprodução)
DR

Da Redação

Publicado em 3 de setembro de 2013 às 14h07.

São Paulo – “Uma imagem vale mais que mil palavras”: essa frase, que alguns atribuem a Confúcio, transformou-se em clichê. Repetida bem mais de mil vezes, não perdeu, por isso, sua validade. Ela é especialmente verdadeira quando se trata de cinema. E, mais ainda, quando o cinema é utilizado como arma de propaganda política e controle da opinião pública. Tal é o tema do livro O poder da imagem, de Wagner Pinheiro Pereira.

Pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) – com Bolsa da FAPESP – e professor adjunto de História da América no Instituto de História e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHC-UFRJ), Pereira investiga o assunto desde seu trabalho de iniciação científica, para o qual também teve Bolsa da FAPESP.

O tema foi tratado nesse livro a partir de um estudo de história comparada que enfocou dois regimes distintos: uma ditadura de tipo totalitário, representada pelo governo nazista na Alemanha; e uma democracia de tipo liberal, representada pelo governo de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América. Ambos tiveram 12 anos de duração; ambos se estenderam de 1933 a 1945; ambos utilizaram com mestria o cinema como instrumento de cooptação e adestramento da opinião pública, dentro e fora dos respectivos países.

“Embora o caso da Alemanha seja mais conhecido como exemplo da instrumentalização política das manifestações artístico-culturais, procurei mostrar que, em um país democrático, Roosevelt, por ter tido quatro mandados consecutivos (foi o único presidente americano a conseguir isso), também instrumentalizou os meios de comunicação, especialmente o rádio e o cinema, para fins políticos, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial”, disse Pereira à Agência FAPESP.

Segundo o autor, o livro desdobra-se em dois momentos principais: o primeiro é uma análise da relação entre Estado, cinema, cineastas e sociedade. O segundo é uma análise voltada aos principais temas tratados pelos cinemas alemão e norte-americano durante as décadas de 1930 e 1940. Essa foi considerada a idade de ouro do cinema nos dois países.


“Nessa primeira parte, minha grande preocupação foi pensar no papel das indústrias cinematográficas, lembrando que os Estados Unidos, com suas oitos companhias cinematográficas maiores, dividas em majors e minors, já dominavam a produção cinematográfica mundial; e a Alemanha, principalmente com os estúdios da UFA [Universum Film Aktien Gesellschaft], alçou-se à condição de maior produtor cinematográfico da Europa e segundo em escala planetária”, afirmou Pereira.

O pesquisador recordou que a relevância do cinema alemão foi internacionalmente reconhecida ainda antes da ascensão de Hitler, em 1933. Filmes do ciclo expressionista, como O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919), Nosferatu (Friedrich Murnau, 1922) e Metrópolis (Fritz Lang, 1927), são até hoje considerados “clássicos”. Igualmente lembrado é o O anjo azul (Josef von Sternberg, 1930), que lançou Marlene Dietrich no cenário internacional.

Instrumentalização da vida cultural

Ao assumir o poder, Hitler instituiu, como uma de suas primeiras medidas, o Ministério Nacional para Esclarecimento Público e Propaganda, que, chefiado por Joseph Goebbels, iria instrumentalizar toda a vida cultural alemã, com prioridade absoluta para o cinema.

“Tanto Hitler quanto Goebbels eram cinéfilos inveterados. Goebbels afirmou, em seus diários, que ambos viam pelo menos dois filmes por noite, fossem alemães ou estrangeiros, especialmente norte-americanos, e que ele chegou a assistir 20 vezes a Branca de Neve e os sete anões (David Hand, 1937), produzido por Walt Disney nos Estados Unidos”, informou Pereira.

Conhecedores do poder das imagens, esses dois protagonistas do regime nazista trataram de canalizar a força do cinema para fins de propaganda. Suas orientações nesse sentido, extensamente citadas no livro de Pereira, são de uma astúcia e de uma explicitação desconcertantes.


“Toda propaganda deve ser simples, emotiva e popular e estabelecer o seu nível espiritual de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir”, escreveu Hitler em seu livro Mein Kampf (Minha luta).

“A capacidade de compreensão do povo é muito limitada, mas, em compensação, a capacidade de esquecer é grande. Assim sendo, a propaganda deve restringir-se a poucos pontos. E esses deverão ser valorizados pela ação de fórmulas estereotipadas, até que o último dos ouvintes esteja em condições de assimilar a ideia”, escreveu.

Colocando no mesmo prato totalitarismo e misoginia, o líder nazista declarou: “A psique das massas é de natureza a não se deixar influenciar por meias medidas, por atos de fraqueza. Assim como as mulheres, cuja receptividade mental é determinada menos por motivos de ordem abstrata do que por uma indefinível necessidade sentimental de uma força que as complete, e que, por isso, preferem curvar-se aos fortes a dominar os fracos, assim também as massas gostam mais dos que mandam do que dos que pedem, e sentem-se mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera nenhuma outra do que com a tolerante largueza do liberalismo”.

Goebbels transformou essa orientação geral em diretrizes ainda mais explícitas e operacionais: “O propagandista tem de construir sua própria verdade”, afirmou.

“O que for útil ao progresso do partido é verdade. Se coincidir com a verdade real, tanto melhor; se não coincidir, será preciso fazer adaptações. A grande e absoluta verdade é que o Partido e o Führer estão certos. Eles sempre estão certos (...) Tudo interessa no jogo da propaganda: mentiras, calúnias. Para mentir, que seja grande a mentira, pois, assim sendo, nem passará pela cabeça das pessoas ser possível arquitetar tão profunda falsificação da verdade”, disse.

De 1933 a 1942, Goebbels comandou o processo de “nazificação” da sociedade alemã. Nesse grande empreendimento, um elemento decisivo foi a estatização das companhias cinematográficas.


Entre as muitas informações curiosas veiculadas pelo livro O poder das imagens, uma é que aquela que se tornaria, mais tarde, a grande diva do cinema norte-americano, a belíssima sueca Ingrid Bergman (filha de mãe alemã de ascendência judaica), estrela de dois “clássicos” antifascistas, Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e Por quem os sinos dobram (Sam Wood, 1943), alavancou sua carreira na Alemanha nazista, quando a indústria cinematográfica local recrutava jovens atrizes estrangeiras, que, por sua fisionomia, pudessem se fazer passar por alemãs de “puro sangue ariano”.

O cinema como mercadoria

Do outro lado do Atlântico, mais precisamente na costa do Pacífico, a indústria cinematográfica norte-americana já havia alcançado sua plena maturidade. “Essa indústria estruturou-se com base em um tripé”, disse Pereira.

Em primeiro lugar, havia um sistema de estúdios. O cinema deixou de ser pensado como arte e passou a ser considerado mercadoria, tendo seu sucesso ou fracasso medido pela bilheteria. A produção em série pôs em prática um modelo muito semelhante ao adotado por Ford na indústria automobilística.

A narrativa devia ser simples, estruturada em começo, meio e fim, e adotou-se a montagem paralela, técnica narrativa instaurada por David Griffith em o Nascimento de uma nação, de 1914, que alterna planos de duas sequências diferentes.

Outra base do tripé foi o sistema de estrelato, baseado na percepção de que os espectadores estabelecem um processo psicológico de empatia com as histórias dos filmes, passando a se identificar com determinados atores e atrizes, que, principalmente no governo Roosevelt, a partir dos papéis glamorosos que representavam, se tornaram símbolos do american way of life, o modo de vida americano.

O terceiro eixo foi o código de autocensura, pois, já que o filme não era mais visto como obra de arte, e sim como produto comercial, ele não podia correr nenhum risco de sofrer censura por parte das instituições governamentais, religiosas ou de qualquer outro setor da comunidade.

Para isso, de acordo com Pereira, o Código Hays – um conjunto de regras estabelecidas por William Harrison Hays, primeiro presidente da Associação dos Produtores e Distribuidores Cinematográficos dos Estados Unidos, que assumiu o cargo na década de 1920 com a missão de moralizar os costumes em Hollywood – normatizou o que podia e o que não podia ser dito nos filmes, consagrou o happy end, o final feliz, geralmente coroado com um beijo pudico, e proibiu tudo o que pudesse suscitar oposição: relação extraconjugal, prostituição, homossexualidade, crítica a setores religiosos etc.


“Quando Roosevelt chegou ao poder, em 1933, o país ainda enfrentava os terríveis problemas da Grande Depressão, decorrente da Crise de 1929. E ele pôde contar, já no primeiro momento, com a força do cinema para levar seu projeto de recuperação do New Deal adiante. Cineastas como Walt Disney, Frank Capra, John Ford e outros produziram filmes otimistas, reerguendo o mito, muito caro aos norte-americanos, do self-made man – aquele homem empreendedor que, a partir do trabalho árduo e da dedicação, consegue alcançar sucesso na sociedade democrática”, afirmou o professor da UFRJ.

Foram possibilitados ingressos mais baratos, duas sessões e outros atrativos para chamar o público às salas de cinema. “Um dado muito importante é que, mesmo no período da Grande Depressão, o cinema foi a única indústria norte-americana que não sofreu nenhum perigo de falência ou decréscimo de rendimento. Pelo contrário, as pessoas continuavam afluindo em massa às sessões, prendendo-se, durante duas horas, às fantasias cinematográficas, para fugir um pouco da dura realidade da vida cotidiana”, ressaltou.

Apesar do arraigado antiestatismo da sociedade norte-americana, a ingerência estatal na indústria cinematográfica intensificou-se com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

“Roosevelt criou dois órgãos estatais para monitorar o cinema: o Escritório de Informação de Guerra (que fiscalizava as produções voltadas para a Europa) e o Escritório do Coordenador para Assuntos Interamericanos, nas mãos do empresário e político Nelson Rockfeller (que cuidava do intercâmbio e da diplomacia cultural com a América Latina, condensados na chamada ‘Política da Boa Vizinhança’)”, disse Pereira.

Intercâmbio EUA-Alemanha

Até a entrada dos norte-americanos na guerra, houve um intenso intercâmbio cinematográfico entre os Estados Unidos e a Alemanha. O modelo de estrelato norte-americano foi copiado pelos alemães. Em seu primeiro discurso à comunidade cinematográfica, Goebbels apontou, entre os protótipos a serem seguidos, o filme Love (Edmund Goulding, 1927), estrelado por Greta Garbo (que voltaria a interpretar a personagem Ana Karenina na versão sonora dirigida por Clarence Brown em 1935).


Em 1939, Goebbels ficou fascinado com E o vento levou (Victor Fleming, 1939). Ao mesmo tempo, os norte-americanos se deixaram seduzir pelo monumental documentário Olympia, sobre as Olimpíadas de Berlim de 1936. Essa tradução imagética da ideologia nazista, filmada em 1936 e estreada em 1938, projetou internacionalmente o nome de sua diretora, Leni Riefenstahl.

Na segunda parte do livro, Pereira investigou como o cinema, tanto alemão quanto norte-americano, mitologizou temas como o “líder”, a “nação”, o “homem novo”, o “inimigo”, o “papel da mulher” e a “guerra”, dentre outros.

Na construção da imagem do líder, o paradigma foi criado por Leni Riefenstahl em seu filme O triunfo da vontade, de 1935. Versando sobre um acontecimento político real, o 6º Congresso do Partido Nazista, realizado em Nuremberg, Riefenstahl transformou o que deveria ser mero documentário em uma gigantesca ópera wagneriana, com quase 500 mil figurantes, entre militantes do partido e a massa de apoiadores.

Tendo como pano de fundo essa multidão anônima, geometricamente coreografada, destaca-se, em primeiro plano, a figura de Hitler, apresentado como um novo Siegfried, o herói da mitologia nórdica, ou um novo Cristo, salvador da pátria alemã. Para divinizar o personagem, realçando seu caráter sobrenatural, a diretora revolucionou a técnica cinematográfica, com novos ângulos de filmagem, enquadramentos e recursos de edição.

“É importante destacar aqui uma diferença”, sublinhou Pereira. “Em um primeiro momento, os norte-americanos tentaram copiar o modelo alemão na construção da imagem de Roosevelt. Mas logo verificaram que, devido às próprias características do sistema democrático, essa exaltação religiosa da figura do líder tinha problemas de aceitação. A partir daí, a propaganda deslocou-se do homem para a obra, passando a destacar as realizações do New Deal, o novo acordo materializado no programa de governo de Roosevelt, em lugar da personalidade do presidente.”


O maior êxito do cinema hollywoodiano foi na construção do mito do “homem novo”, personificação dos valores democráticos e encarnação do sonho americano. Ela será o protagonista de vários filmes, como O galante Mr. Deeds (Frank Capra, 1936) ou A mulher faz o homem (Frank Capra, 1939), o primeiro estrelado por Gary Cooper e o segundo por James Stewart.

“Trata-se do surgimento daquele personagem que, na historiografia dos Estados Unidos, recebeu o nome de ‘Adão americano’, um ser puro, um ser bom, repleto de valores democráticos, que vai entregar sua vida a uma causa nobre. Os inimigos internos são os ‘capitalistas desonestos’. Há uma crítica às imperfeições das instituições. Mas, ao mesmo tempo, assegura-se que a democracia liberal é o melhor regime possível. E que, uma vez entregues aos ‘homens novos’, suas instituições serão salvas”, analisou o pesquisador.

Com a evolução da Segunda Guerra Mundial, a instrumentalização cinematográfica das consciências tornou-se mais intensa nos dois países, apoiando-se na construção das imagens dos “inimigos” e nas representações da guerra.

Na Alemanha, surgem filmes como o pseudodocumentário O judeu eterno (Fritz Hippler, 1940), uma nauseante apologia do racismo antissemita. Com imagens reais, filmadas no Gueto de Varsóvia, na Polônia ocupada por tropas alemãs, mas uma montagem e uma narrativa que distorcem grosseiramente o significado das imagens, o filme compara os judeus a ratos e instila nos espectadores o ódio antissemita, amestrando a opinião pública para a política de extermínio em massa, que seria inaugurada exatamente naquele ano, no campo de Auschwitz-Birkenau.

Nos Estados Unidos, o governo cria um manual para a indústria cinematográfica, mostrando como deveriam ser apresentados, nos filmes, os inimigos, os aliados, o esforço de guerra etc. Os grandes inimigos são o “alemão nazista”, o “italiano fascista” e o “japonês sanguinário”.


“No caso do alemão, há uma diferenciação. Nem todo alemão é ruim, apenas os nazistas, podendo os demais serem recuperados. Já os japoneses são apresentados de forma homogênea, como seres fanáticos e sanguinários”, sublinhou Pereira.

“O filme Um Punhado de Bravos (Raoul Walsh, 1945) termina com a mensagem de que todos os japoneses deveriam ser eliminados da face da Terra. Pouco depois, foram despejadas as duas bombas atômicas sobre o Japão, em Hiroshima e Nagasaki.”

O retrato heroico da guerra foi outro tema recorrente na cinematografia alemã e americana da década de 1940. Os romances, que exaltavam o papel da mulher e a mobilização do “fronte interno”, e os filmes de reconstituição histórica – como o clássico ...E o Vento Levou (Victor Flemming, 1939) –, que estimulavam o “espírito militar”, foram os gêneros mais populares sobre o tema. Ao mesmo tempo, os cinejornais (Die Deutsche Wochenschau e The March of Time) e os documentários apresentavam a guerra como um espetáculo bélico.

Os filmes nazistas afirmavam que as democracias ocidentais eram nações demoníacas, que pretendiam destruir a Alemanha. Por isso, os alemães viam-se obrigados a atacar primeiro. Já Hollywood mostrava os Estados Unidos enfrentando uma árdua luta do “bem contra o mal”, em que os heroicos e simpáticos soldados norte-americanos travavam uma longa batalha contra os inescrupulosos e malvados nazistas, na frente ocidental, e os sanguinários e suicidas japoneses, na frente oriental.

Para o historiador, “a relevância desse estudo se justificou não só pela tentativa de compreensão mais aprofundada da utilização do cinema como arma de propaganda de ditaduras totalitárias e de governos democráticos, mas também pela atualidade do tema, ou seja, o uso de imagens para fins políticos”.

“As imagens adquiriram um papel de destaque na sociedade contemporânea, em que tudo se tornou direta ou indiretamente mediado por elas. Após a guerra de imagens empreendida entre os governos de George W. Bush e Saddam Hussein, parece que as táticas de propaganda desenvolvidas pelos governos de Hitler e Roosevelt ainda não foram ultrapassadas”, destacou Pereira.

O Poder das Imagens
Autor: Wagner Pinheiro Pereira
Lançamento: 2012
Preço: R$ 76,00
Páginas: 699

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São Paulo – “Uma imagem vale mais que mil palavras”: essa frase, que alguns atribuem a Confúcio, transformou-se em clichê. Repetida bem mais de mil vezes, não perdeu, por isso, sua validade. Ela é especialmente verdadeira quando se trata de cinema. E, mais ainda, quando o cinema é utilizado como arma de propaganda política e controle da opinião pública. Tal é o tema do livro O poder da imagem, de Wagner Pinheiro Pereira.

Pós-doutor pela Universidade de São Paulo (USP) – com Bolsa da FAPESP – e professor adjunto de História da América no Instituto de História e no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IH/PPGHC-UFRJ), Pereira investiga o assunto desde seu trabalho de iniciação científica, para o qual também teve Bolsa da FAPESP.

O tema foi tratado nesse livro a partir de um estudo de história comparada que enfocou dois regimes distintos: uma ditadura de tipo totalitário, representada pelo governo nazista na Alemanha; e uma democracia de tipo liberal, representada pelo governo de Franklin Delano Roosevelt nos Estados Unidos da América. Ambos tiveram 12 anos de duração; ambos se estenderam de 1933 a 1945; ambos utilizaram com mestria o cinema como instrumento de cooptação e adestramento da opinião pública, dentro e fora dos respectivos países.

“Embora o caso da Alemanha seja mais conhecido como exemplo da instrumentalização política das manifestações artístico-culturais, procurei mostrar que, em um país democrático, Roosevelt, por ter tido quatro mandados consecutivos (foi o único presidente americano a conseguir isso), também instrumentalizou os meios de comunicação, especialmente o rádio e o cinema, para fins políticos, antes mesmo da Segunda Guerra Mundial”, disse Pereira à Agência FAPESP.

Segundo o autor, o livro desdobra-se em dois momentos principais: o primeiro é uma análise da relação entre Estado, cinema, cineastas e sociedade. O segundo é uma análise voltada aos principais temas tratados pelos cinemas alemão e norte-americano durante as décadas de 1930 e 1940. Essa foi considerada a idade de ouro do cinema nos dois países.


“Nessa primeira parte, minha grande preocupação foi pensar no papel das indústrias cinematográficas, lembrando que os Estados Unidos, com suas oitos companhias cinematográficas maiores, dividas em majors e minors, já dominavam a produção cinematográfica mundial; e a Alemanha, principalmente com os estúdios da UFA [Universum Film Aktien Gesellschaft], alçou-se à condição de maior produtor cinematográfico da Europa e segundo em escala planetária”, afirmou Pereira.

O pesquisador recordou que a relevância do cinema alemão foi internacionalmente reconhecida ainda antes da ascensão de Hitler, em 1933. Filmes do ciclo expressionista, como O gabinete do Dr. Caligari (Robert Wiene, 1919), Nosferatu (Friedrich Murnau, 1922) e Metrópolis (Fritz Lang, 1927), são até hoje considerados “clássicos”. Igualmente lembrado é o O anjo azul (Josef von Sternberg, 1930), que lançou Marlene Dietrich no cenário internacional.

Instrumentalização da vida cultural

Ao assumir o poder, Hitler instituiu, como uma de suas primeiras medidas, o Ministério Nacional para Esclarecimento Público e Propaganda, que, chefiado por Joseph Goebbels, iria instrumentalizar toda a vida cultural alemã, com prioridade absoluta para o cinema.

“Tanto Hitler quanto Goebbels eram cinéfilos inveterados. Goebbels afirmou, em seus diários, que ambos viam pelo menos dois filmes por noite, fossem alemães ou estrangeiros, especialmente norte-americanos, e que ele chegou a assistir 20 vezes a Branca de Neve e os sete anões (David Hand, 1937), produzido por Walt Disney nos Estados Unidos”, informou Pereira.

Conhecedores do poder das imagens, esses dois protagonistas do regime nazista trataram de canalizar a força do cinema para fins de propaganda. Suas orientações nesse sentido, extensamente citadas no livro de Pereira, são de uma astúcia e de uma explicitação desconcertantes.


“Toda propaganda deve ser simples, emotiva e popular e estabelecer o seu nível espiritual de acordo com a capacidade de compreensão do mais ignorante dentre aqueles a quem ela pretende se dirigir”, escreveu Hitler em seu livro Mein Kampf (Minha luta).

“A capacidade de compreensão do povo é muito limitada, mas, em compensação, a capacidade de esquecer é grande. Assim sendo, a propaganda deve restringir-se a poucos pontos. E esses deverão ser valorizados pela ação de fórmulas estereotipadas, até que o último dos ouvintes esteja em condições de assimilar a ideia”, escreveu.

Colocando no mesmo prato totalitarismo e misoginia, o líder nazista declarou: “A psique das massas é de natureza a não se deixar influenciar por meias medidas, por atos de fraqueza. Assim como as mulheres, cuja receptividade mental é determinada menos por motivos de ordem abstrata do que por uma indefinível necessidade sentimental de uma força que as complete, e que, por isso, preferem curvar-se aos fortes a dominar os fracos, assim também as massas gostam mais dos que mandam do que dos que pedem, e sentem-se mais satisfeitas com uma doutrina que não tolera nenhuma outra do que com a tolerante largueza do liberalismo”.

Goebbels transformou essa orientação geral em diretrizes ainda mais explícitas e operacionais: “O propagandista tem de construir sua própria verdade”, afirmou.

“O que for útil ao progresso do partido é verdade. Se coincidir com a verdade real, tanto melhor; se não coincidir, será preciso fazer adaptações. A grande e absoluta verdade é que o Partido e o Führer estão certos. Eles sempre estão certos (...) Tudo interessa no jogo da propaganda: mentiras, calúnias. Para mentir, que seja grande a mentira, pois, assim sendo, nem passará pela cabeça das pessoas ser possível arquitetar tão profunda falsificação da verdade”, disse.

De 1933 a 1942, Goebbels comandou o processo de “nazificação” da sociedade alemã. Nesse grande empreendimento, um elemento decisivo foi a estatização das companhias cinematográficas.


Entre as muitas informações curiosas veiculadas pelo livro O poder das imagens, uma é que aquela que se tornaria, mais tarde, a grande diva do cinema norte-americano, a belíssima sueca Ingrid Bergman (filha de mãe alemã de ascendência judaica), estrela de dois “clássicos” antifascistas, Casablanca (Michael Curtiz, 1942) e Por quem os sinos dobram (Sam Wood, 1943), alavancou sua carreira na Alemanha nazista, quando a indústria cinematográfica local recrutava jovens atrizes estrangeiras, que, por sua fisionomia, pudessem se fazer passar por alemãs de “puro sangue ariano”.

O cinema como mercadoria

Do outro lado do Atlântico, mais precisamente na costa do Pacífico, a indústria cinematográfica norte-americana já havia alcançado sua plena maturidade. “Essa indústria estruturou-se com base em um tripé”, disse Pereira.

Em primeiro lugar, havia um sistema de estúdios. O cinema deixou de ser pensado como arte e passou a ser considerado mercadoria, tendo seu sucesso ou fracasso medido pela bilheteria. A produção em série pôs em prática um modelo muito semelhante ao adotado por Ford na indústria automobilística.

A narrativa devia ser simples, estruturada em começo, meio e fim, e adotou-se a montagem paralela, técnica narrativa instaurada por David Griffith em o Nascimento de uma nação, de 1914, que alterna planos de duas sequências diferentes.

Outra base do tripé foi o sistema de estrelato, baseado na percepção de que os espectadores estabelecem um processo psicológico de empatia com as histórias dos filmes, passando a se identificar com determinados atores e atrizes, que, principalmente no governo Roosevelt, a partir dos papéis glamorosos que representavam, se tornaram símbolos do american way of life, o modo de vida americano.

O terceiro eixo foi o código de autocensura, pois, já que o filme não era mais visto como obra de arte, e sim como produto comercial, ele não podia correr nenhum risco de sofrer censura por parte das instituições governamentais, religiosas ou de qualquer outro setor da comunidade.

Para isso, de acordo com Pereira, o Código Hays – um conjunto de regras estabelecidas por William Harrison Hays, primeiro presidente da Associação dos Produtores e Distribuidores Cinematográficos dos Estados Unidos, que assumiu o cargo na década de 1920 com a missão de moralizar os costumes em Hollywood – normatizou o que podia e o que não podia ser dito nos filmes, consagrou o happy end, o final feliz, geralmente coroado com um beijo pudico, e proibiu tudo o que pudesse suscitar oposição: relação extraconjugal, prostituição, homossexualidade, crítica a setores religiosos etc.


“Quando Roosevelt chegou ao poder, em 1933, o país ainda enfrentava os terríveis problemas da Grande Depressão, decorrente da Crise de 1929. E ele pôde contar, já no primeiro momento, com a força do cinema para levar seu projeto de recuperação do New Deal adiante. Cineastas como Walt Disney, Frank Capra, John Ford e outros produziram filmes otimistas, reerguendo o mito, muito caro aos norte-americanos, do self-made man – aquele homem empreendedor que, a partir do trabalho árduo e da dedicação, consegue alcançar sucesso na sociedade democrática”, afirmou o professor da UFRJ.

Foram possibilitados ingressos mais baratos, duas sessões e outros atrativos para chamar o público às salas de cinema. “Um dado muito importante é que, mesmo no período da Grande Depressão, o cinema foi a única indústria norte-americana que não sofreu nenhum perigo de falência ou decréscimo de rendimento. Pelo contrário, as pessoas continuavam afluindo em massa às sessões, prendendo-se, durante duas horas, às fantasias cinematográficas, para fugir um pouco da dura realidade da vida cotidiana”, ressaltou.

Apesar do arraigado antiestatismo da sociedade norte-americana, a ingerência estatal na indústria cinematográfica intensificou-se com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial.

“Roosevelt criou dois órgãos estatais para monitorar o cinema: o Escritório de Informação de Guerra (que fiscalizava as produções voltadas para a Europa) e o Escritório do Coordenador para Assuntos Interamericanos, nas mãos do empresário e político Nelson Rockfeller (que cuidava do intercâmbio e da diplomacia cultural com a América Latina, condensados na chamada ‘Política da Boa Vizinhança’)”, disse Pereira.

Intercâmbio EUA-Alemanha

Até a entrada dos norte-americanos na guerra, houve um intenso intercâmbio cinematográfico entre os Estados Unidos e a Alemanha. O modelo de estrelato norte-americano foi copiado pelos alemães. Em seu primeiro discurso à comunidade cinematográfica, Goebbels apontou, entre os protótipos a serem seguidos, o filme Love (Edmund Goulding, 1927), estrelado por Greta Garbo (que voltaria a interpretar a personagem Ana Karenina na versão sonora dirigida por Clarence Brown em 1935).


Em 1939, Goebbels ficou fascinado com E o vento levou (Victor Fleming, 1939). Ao mesmo tempo, os norte-americanos se deixaram seduzir pelo monumental documentário Olympia, sobre as Olimpíadas de Berlim de 1936. Essa tradução imagética da ideologia nazista, filmada em 1936 e estreada em 1938, projetou internacionalmente o nome de sua diretora, Leni Riefenstahl.

Na segunda parte do livro, Pereira investigou como o cinema, tanto alemão quanto norte-americano, mitologizou temas como o “líder”, a “nação”, o “homem novo”, o “inimigo”, o “papel da mulher” e a “guerra”, dentre outros.

Na construção da imagem do líder, o paradigma foi criado por Leni Riefenstahl em seu filme O triunfo da vontade, de 1935. Versando sobre um acontecimento político real, o 6º Congresso do Partido Nazista, realizado em Nuremberg, Riefenstahl transformou o que deveria ser mero documentário em uma gigantesca ópera wagneriana, com quase 500 mil figurantes, entre militantes do partido e a massa de apoiadores.

Tendo como pano de fundo essa multidão anônima, geometricamente coreografada, destaca-se, em primeiro plano, a figura de Hitler, apresentado como um novo Siegfried, o herói da mitologia nórdica, ou um novo Cristo, salvador da pátria alemã. Para divinizar o personagem, realçando seu caráter sobrenatural, a diretora revolucionou a técnica cinematográfica, com novos ângulos de filmagem, enquadramentos e recursos de edição.

“É importante destacar aqui uma diferença”, sublinhou Pereira. “Em um primeiro momento, os norte-americanos tentaram copiar o modelo alemão na construção da imagem de Roosevelt. Mas logo verificaram que, devido às próprias características do sistema democrático, essa exaltação religiosa da figura do líder tinha problemas de aceitação. A partir daí, a propaganda deslocou-se do homem para a obra, passando a destacar as realizações do New Deal, o novo acordo materializado no programa de governo de Roosevelt, em lugar da personalidade do presidente.”


O maior êxito do cinema hollywoodiano foi na construção do mito do “homem novo”, personificação dos valores democráticos e encarnação do sonho americano. Ela será o protagonista de vários filmes, como O galante Mr. Deeds (Frank Capra, 1936) ou A mulher faz o homem (Frank Capra, 1939), o primeiro estrelado por Gary Cooper e o segundo por James Stewart.

“Trata-se do surgimento daquele personagem que, na historiografia dos Estados Unidos, recebeu o nome de ‘Adão americano’, um ser puro, um ser bom, repleto de valores democráticos, que vai entregar sua vida a uma causa nobre. Os inimigos internos são os ‘capitalistas desonestos’. Há uma crítica às imperfeições das instituições. Mas, ao mesmo tempo, assegura-se que a democracia liberal é o melhor regime possível. E que, uma vez entregues aos ‘homens novos’, suas instituições serão salvas”, analisou o pesquisador.

Com a evolução da Segunda Guerra Mundial, a instrumentalização cinematográfica das consciências tornou-se mais intensa nos dois países, apoiando-se na construção das imagens dos “inimigos” e nas representações da guerra.

Na Alemanha, surgem filmes como o pseudodocumentário O judeu eterno (Fritz Hippler, 1940), uma nauseante apologia do racismo antissemita. Com imagens reais, filmadas no Gueto de Varsóvia, na Polônia ocupada por tropas alemãs, mas uma montagem e uma narrativa que distorcem grosseiramente o significado das imagens, o filme compara os judeus a ratos e instila nos espectadores o ódio antissemita, amestrando a opinião pública para a política de extermínio em massa, que seria inaugurada exatamente naquele ano, no campo de Auschwitz-Birkenau.

Nos Estados Unidos, o governo cria um manual para a indústria cinematográfica, mostrando como deveriam ser apresentados, nos filmes, os inimigos, os aliados, o esforço de guerra etc. Os grandes inimigos são o “alemão nazista”, o “italiano fascista” e o “japonês sanguinário”.


“No caso do alemão, há uma diferenciação. Nem todo alemão é ruim, apenas os nazistas, podendo os demais serem recuperados. Já os japoneses são apresentados de forma homogênea, como seres fanáticos e sanguinários”, sublinhou Pereira.

“O filme Um Punhado de Bravos (Raoul Walsh, 1945) termina com a mensagem de que todos os japoneses deveriam ser eliminados da face da Terra. Pouco depois, foram despejadas as duas bombas atômicas sobre o Japão, em Hiroshima e Nagasaki.”

O retrato heroico da guerra foi outro tema recorrente na cinematografia alemã e americana da década de 1940. Os romances, que exaltavam o papel da mulher e a mobilização do “fronte interno”, e os filmes de reconstituição histórica – como o clássico ...E o Vento Levou (Victor Flemming, 1939) –, que estimulavam o “espírito militar”, foram os gêneros mais populares sobre o tema. Ao mesmo tempo, os cinejornais (Die Deutsche Wochenschau e The March of Time) e os documentários apresentavam a guerra como um espetáculo bélico.

Os filmes nazistas afirmavam que as democracias ocidentais eram nações demoníacas, que pretendiam destruir a Alemanha. Por isso, os alemães viam-se obrigados a atacar primeiro. Já Hollywood mostrava os Estados Unidos enfrentando uma árdua luta do “bem contra o mal”, em que os heroicos e simpáticos soldados norte-americanos travavam uma longa batalha contra os inescrupulosos e malvados nazistas, na frente ocidental, e os sanguinários e suicidas japoneses, na frente oriental.

Para o historiador, “a relevância desse estudo se justificou não só pela tentativa de compreensão mais aprofundada da utilização do cinema como arma de propaganda de ditaduras totalitárias e de governos democráticos, mas também pela atualidade do tema, ou seja, o uso de imagens para fins políticos”.

“As imagens adquiriram um papel de destaque na sociedade contemporânea, em que tudo se tornou direta ou indiretamente mediado por elas. Após a guerra de imagens empreendida entre os governos de George W. Bush e Saddam Hussein, parece que as táticas de propaganda desenvolvidas pelos governos de Hitler e Roosevelt ainda não foram ultrapassadas”, destacou Pereira.

O Poder das Imagens
Autor: Wagner Pinheiro Pereira
Lançamento: 2012
Preço: R$ 76,00
Páginas: 699

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