Acampamento das Farc em 2016: muitos estão de volta às florestas | John Vizcaino/Reuters
Da Redação
Publicado em 20 de junho de 2019 às 05h28.
Última atualização em 25 de junho de 2019 às 14h37.
Ainda era noite quando soldados do exército colombiano chegaram à zona rural da pequena cidade de La Macarena, numa região de difícil acesso situada mais de 800 quilômetros ao sul da capital Bogotá. A bordo de helicópteros, uma unidade de elite do Exército entrou na mata. Não estava atrás de traficantes ou numa operação para destruir campos de produção da planta que dá origem à cocaína. Caçava guerrilheiros embrenhados na mata que, de acordo com informações obtidas pela inteligência colombiana, haviam iniciado a implantação de um campo de treinamento no local. Ao final daquele dia, contavam-se sete guerrilheiros mortos. Um pequeno arsenal, incluindo um rifle de calibre .50, capaz de abater um helicóptero, foi apreendido. Entre os mortos estava um combatente do alto escalão das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia — as Farc —, conhecido como Negro Gato.
Notícias de embates entre as Farc e o Exército têm se tornado cada vez mais comuns e provocado calafrios nos colombianos que acreditavam ter sido colocado um ponto-final em uma guerra civil que deixou mais de 220.000 mortos em pouco mais de meio século. Há uma década, uma operação de pequena escala, como a de Macarena, ganharia algumas poucas linhas na imprensa colombiana. Mas, agora, às vésperas do terceiro aniversário do histórico acordo de paz que pôs fim à mais longa guerrilha da América Latina, notícias como essa têm feito os colombianos perceber que a solução para um conflito tão complexo e tão cheio de ressentimentos e desejos de vingança é muito mais difícil de ser alcançada do que imaginavam. Mais do que isso. Constituem uma lembrança permanente de que as Farc continuam vivas.
Um relatório militar secreto das Forças Armadas colombianas, obtido pela agência de notícias Reuters no início de junho, estima que mais de um terço dos combatentes das Farc que entregaram suas armas após o acordo de paz em 2016 retornou para as florestas disposto a retomar a guerrilha. O levantamento mostra que pelo menos 2 300 combatentes estão ativos nas florestas colombianas. E o pior: esse número cresce de forma constante. De dezembro a maio, houve uma expansão de ao menos 30% no quadro de guerrilheiros que decidiram abandonar o acordo de paz e voltar às armas. Os dados da inteligência colombiana, no entanto, são conservadores. Há quem estime que o número de combatentes em atividade já supere a casa dos 3 000 homens.
As Farc iniciaram o processo de desmobilização em 2016 após a assinatura do acordo de paz que garantiu ao então presidente colombiano, Juan Manuel Santos, o Prêmio Nobel da Paz em 2016. Ao longo do ano seguinte, mais de 6 000 homens aceitaram entregar as armas e retornar à vida civil com a garantia de que praticamente todos os crimes cometidos antes de setembro de 2016 não resultariam em nenhum tipo de pena. O governo, por sua vez, comprometeu-se a bancar a segurança dos ex-guerrilheiros e iniciar um amplo processo de desenvolvimento das áreas rurais em que as Farc estavam instaladas. Eram exatamente as péssimas condições de vida nessas regiões que haviam propiciado o surgimento da guerrilha mais de meio século antes. Já em 2016 um grupo de poucas centenas de combatentes se recusou a aceitar o acordo e optou por continuar nas florestas, armado. Boa parte deles seguiu atuando em parceria com narcotraficantes, principal fonte de financiamento das Farc nos últimos anos.
Não demorou muito para ex-combatentes que haviam abandonado as florestas começarem a ser assassinados por grupos paramilitares, os quais aproveitaram o vácuo de poder deixado pela incapacidade do Estado colombiano de assumir as áreas que até então estavam sob o controle das Farc. Além deles, ativistas humanitários, com claro viés de esquerda, e que tinham a proteção tácita da guerrilha, começaram também a ser vítimas desses grupos. Só em 2017 houve 191 assassinatos de ativistas. Em 2018, quando a campanha presidencial para a sucessão de Santos ampliou ainda mais as tensões internas em relação ao acordo de paz, outros 252 foram mortos. As Farc estimam que, de 2017 ao início deste ano, mais de 130 ex-combatentes foram executados. “A questão da segurança não é a única que explica o retorno desses homens às armas, mas é um componente fundamental no processo”, diz o cientista político Ariel Ávila, diretor do instituto Paz e Reconciliação, um centro de estudos sobre violência e conflitos armados na Colômbia.
Ávila atribui o retorno acentuado das Farc neste início de 2019 às tentativas reiteradas do presidente Ivan Duque de alterar pontos fundamentais do acordo de paz assinado pelo antecessor. Eleito no ano passado, Duque apostou em uma agenda conservadora na campanha presidencial, a mesma de seu padrinho político, o ex-presidente Álvaro Uribe, o mais radical crítico do acordo de paz. Prometeu rever diversos pontos do acordo que considerava lenientes demais com as Farc. As investidas de Duque, que defende a extradição para os Estados Unidos de ex-líderes guerrilheiros acusados de tráfico de cocaína, e a dificuldade dos combatentes em se adaptar à vida civil criaram as condições para o retorno às armas de muitos ex-guerrilheiros. “A verdade é que Duque e Uribe querem o retorno das Farc para assegurar seu poder político”, diz Ávila. “É importante para eles ter um inimigo para combater e dispersar a atenção dos problemas do país.”
Há mais de uma década, a Colômbia tem registrado taxas de crescimento superiores às de outros países da América Latina. Nos últimos dez anos, o produto interno bruto cresceu, em média, 3,5%. No entanto, a queda do valor das commodities também cobrou seu preço. Em 2015, o PIB começou a perder fôlego, até cair para 1,4% de expansão em 2017. Foi nesse contexto de retração econômica que se desenrolou a última campanha presidencial. Neste ano, Duque espera ver o PIB crescer 3,5% e tem concentrado investimentos em áreas que podem trazer retorno rápido à economia, deixando de lado os investimentos prometidos em zonas rurais que estavam nas mãos das Farc — e ampliando ainda mais a insatisfação de antigos guerrilheiros. “A implementação do acordo tem sido muito lenta, quase nula. Não há vontade política”, diz a socióloga Sara Tufano. “Duque, como Uribe, quer acabar com o sistema judicial que foi criado para lidar com os ex-combatentes. Isso significaria o fim do acordo.”
Neste mês, o presidente colombiano sofreu uma derrota importante exatamente do Poder Judiciário, que libertou o ex-guerrilheiro Jesús Santrich e permitiu que ele assumisse uma das dez cadeiras a que o partido das Farc tem direito no Parlamento. Santrich foi preso no ano passado, acusado de ter participado do envio de 10 toneladas de cocaína aos Estados Unidos.
A prisão de Santrich, um dos principais líderes das Farc e um dos negociadores do acordo de paz, foi um duro golpe para o partido da antiga guerrilha e uma vitória de Duque e seus apoiadores. No entanto, no dia 13 de junho, Santrich assumiu sua cadeira no Parlamento, mostrando que há um embate feroz entre o Executivo e o Judiciário colombianos. Para analistas, se Santrich de fato fosse extraditado para os Estados Unidos, um número ainda maior de ex-guerrilheiros voltaria às armas. “A condenação e o envio de Santrich aos Estados Unidos acenderiam um importante sinal de alarme aos ex-comandantes, aqueles que de fato têm poder não só de mobilização mas também de aglutinação dos grupos que estão atuando ainda de forma independente”, afirma Ávila.
Hoje, estima-se que existam 31 grupos de diferentes ex-combatentes das Farc operando em diversas regiões da Colômbia. Boa parte deles continua atuando em conjunto com o narcotráfico; outros se transformaram em simples gangues de bandoleiros, realizando associações até mesmo com grupos paramilitares contra os quais lutavam e que assumiram os territórios antes comandados pelas Farc.
“O maior risco que esses grupos apresentam para a estabilidade da Colômbia está no crescimento do crime organizado”, diz Allison Fedirka, analista da consultoria de risco Geopolitical Futures. “A ideia das Farc como um movimento ideológico é hoje mais uma relíquia da Guerra Fria, uma fantasia”, diz ela. “O que estamos vendo na Colômbia, e que é muito preocupante, é a chegada dos cartéis mexicanos. Eles perceberam que, com a saída das Farc, largas parcelas das áreas produtoras ficaram desorganizadas.” No ano passado, a produção de cocaína foi recorde no país. O temor, segundo Allison, não é que a Colômbia ganhe feições venezuelanas ou cubanas, como tem sido alardeado por grupos de extrema direita. O grande risco, segundo ela, é que o país andino, líder mundial na produção de cocaína, fique cada vez mais parecido com o México.